Pelo
fim do vestibular
Há
tempos que Aloísio Teixeira, reitor da UFRJ, defende a reserva
de vagas nas universidades federais e estaduais para os estudantes
da rede pública. Ele é contra a cota racial, mas vê
com simpatia a reserva de caráter democrático, tanto
que solicitou uma pesquisa no Fundão que acabou por provar
que, caso passe pelo Congresso, a reserva não favorecerá
em demasia os estudantes originários da rede pública.
A qualidade do aluno de classe alta ou média não seria
assim tão melhor do que a do estudante de baixa renda, com
a diferença de notas entre eles sendo mínima. Só
que Aloísio quer mais, muito mais. Sonha com o fim do vestibular.
O aluno deveria ser aceito na universidade a partir de seu desempenho
na vida escolar, o que o obrigaria a estudar sempre.
Você
tinha uma proposta de trocar as cotas para pardos e negros por uma
reserva para a escola pública. O projeto do ministro Tarso
Genro se assemelha ao que você, Aloísio, vem defendendo
há meses, mas mesmo assim você diz que ainda não
está totalmente dentro de suas expectativas. Por quê?
ALOÍSIO TEIXEIRA: Eu diria que não é exatamente
a proposta que eu fiz naquela ocasião, mas devo reconhecer
que há um avanço importante na formulação,
porque o MEC, ao fazer a proposta de uma reserva de 50% de vagas
para estudantes provenientes da escola pública, ou seja,
que fizeram ensino médio na escola pública, desloca
o foco da questão para o problema verdadeiro. Pois nosso
problema central — e, veja bem, digo isso não para
dizer que não há racismo no país, mas as manifestações
de racismo no Brasil são sem dúvida alguma diferentes
da de outros países, como nos EUA —- é o enfrentamento
da miséria, da absurda pobreza, da questão social.
Um
sério problema social que neste país desigual, sobretudo
após a Abolição, inclui os pardos e os negros....
ALOÍSIO: Sim, é claro...Mas, do meu ponto de vista,
a dificuldade que eles têm de acesso à universidade
é a mesma que enfrenta qualquer parcela da população
pobre no Brasil. Há, quando se leva em consideração
apenas os aspectos raciais, um deslocamento da questão central.
Por quê? Porque os jovens desfavorecidos, de famílias
de baixa renda, estudam em escola pública. Se temos a perspectiva
de fomentar o ingresso nas universidades de estudantes provenientes
da rede pública, isso fará com que o país progressivamente
avance na direção de ter uma população
universitária com a verdadeira cara de nosso povo...
Vai
democratizando....
ALOÍSIO:
Sim, vai democratizando. E essa mudança de enfoque é
muito importante.
Há
pessoas que, quando lêem sobre esses 50% para a rede pública,
comentam que favorecerão estudantes despreparados e que a
qualidade das universidades vai piorar ainda mais. O que acha?
ALOÍSIO:
Só queria ressaltar mais um aspecto positivo, que está
na entrevista que o ministro Tarso Genro concedeu ao GLOBO, no dia
7, que é a idéia de que esse sistema possa ser progressivamente
desativado, na medida em que os investimentos públicos na
rede básica de ensino comecem a surtir efeito. Isso dá
a idéia de que o MEC investirá na qualidade do ensino
público nos níveis pré-universitários.
Se esse investimento acontecer e o ensino público melhorar,
a cota ou reserva se tornará desnecessária.
Mas
isso não aconteceria a curto prazo, não é?
E a longo prazo todos estaremos mortos...
ALOÍSIO:
O ministro estima que serão necessários uns 5 a 10
anos para que os investimentos façam efeito e para que o
sistema de reserva possa ser desmontado. De qualquer forma, há
uma posição mais correta do Governo em direção
ao reforço do ensino público, principalmente nos níveis
pré-universitários, e no que diz respeito ao foco
no problema social e não mais no racial.
Então
o enfoque do Governo realmente melhorou?
ALOÍSIO:
O enfoque melhorou, sim. Em relação à capacidade
dos estudantes, fizemos na UFRJ um estudo com uma simulação
do que teria ocorrido no último vestibular se tivéssemos
reservado 20% das vagas para os provenientes da rede pública.
Quando fizemos esse estudo, ainda não havia sido definido
o percentual de 50%, e trabalhamos com apenas 20%. O que observamos
foi o seguinte: a diferença de nota entre o estudante que
entrou efetivamente e o que faria jus à vaga se valesse a
reserva de 20% é mínima. Ou seja, as diferenças
de notas entre o estudante da rede privada e o da rede pública
foram muito pequenas, mínimas até.
Mínimas
como?
ALOÍSIO:
Como 0,01 ou 0,03. O risco de que sejam aproveitados estudantes
menos qualificados não é verdadeiro. E isso tem uma
explicação que faz com que esse projeto não
dê conta, realmente, do problema que ele pretende resolver.
Mas antes de falar disso eu quero dizer o seguinte: o próprio
projeto tem que ser melhorado. Em duas direções. Uma
é definir com clareza se esta cota de 50% vale para a totalidade
das vagas que uma universidade oferece ou se é por curso.
Há cursos como medicina e odontologia que são muito
caros, cujo custo para o aluno é muito alto, mesmo na universidade
pública. Não tem pobre estudando odontologia, medicina
ou engenharia de produção. É diferente de quando
você observa os cursos de formação de professores,
como letras, história, geografia, matemática. São
cursos nos quais a participação proporcional de estudantes
da rede pública já é mais alta. Uma universidade
qualquer pode, por exemplo, expandir cursos noturnos e, com isso,
preencher o critério de 50% das vagas, sem mexer na estrutura
dos cursos dos estudantes com maior poder aquisitivo. Será
preciso dizer: o curso de medicina terá de ter 50% de vagas
para estudantes...
Você
é a favor disso?
ALOÍSIO:
Sou a favor. Se é para fazer, é para fazer por curso.
Senão teremos curso para pobre e curso para rico. Agravaremos
o problema que já existe de ter curso para pobre e curso
para rico. E um outro ponto em que o projeto deve ser melhorado
é o de que tem que ser acompanhado de uma política
ativa que garanta a manutenção do estudante na universidade.
Isso implica bolsas de estudo, alojamento, alimentação,
investimentos em biblioteca, equipamentos de laboratório
ou próprios da formação de cada ramo do conhecimento,
para que o aluno entre para a universidade e fique.
Implica
dinheiro e a universidade federal não tem dinheiro.
ALOÍSIO:
Não tem. Então tem de haver um política ativa
de recursos, de custeio para as universidades que estão abrindo
vagas de acordo com o projeto de lei. Senão você faz
com que o estudante entre na universidade e, em seis meses, vá
embora. Haverá mais vagas ociosas do que hoje. O projeto
está na direção certa, mas pede melhorias.
O
detalhamento já não faria parte da regulamentação?
ALOÍSIO:
Ainda que faça, a questão de ser por curso ou por
universidade tem que constar da lei. E o MEC tem que garantir que
haverá uma política de bolsa efetiva. Por que o projeto
não dá conta da nossa realidade? Objetiva democratizar
o acesso. Mas qual é a realidade hoje? Apenas 9% dos jovens
de 18 a 24 anos cursam universidade, um percentual humilhante.
Tem
como comparar com outros países?
ALOÍSIO:
Nos EUA já está chegando a 60%. Países da Europa
também já estão na faixa de 50%. Esses países
vivem um processo de universalização do ensino superior.
A educação superior, daqui a alguns anos, será
um direito da cidadania, como a educação fundamental.
Na América Latina, o Brasil é um dos países
com percentual mais baixo.
Em
educação, infelizmente, somos ruins em tudo.
ALOÍSIO:
Somos ruins, sim. Enquanto tivermos apenas 9% da população
de 18 a 24 anos na universidade, não teremos democratizado
o acesso. Quer dizer, não é com cota que se faz a
mudança. Enquanto continuarmos com este percentual de apenas
9%, não haverá democratização do acesso.
Desses 9%, uns 2% devem ser da universidade pública e 7%
do ensino superior privado. Com 2%, pode ter a cota que tiver que
a universidade continuará sendo uma universidade de elite.
O problema é a expansão desse sistema. Volto à
minha idéia original: combinar um programa de expansão
do número de vagas no sistema público com a extinção
do vestibular. As universidades públicas fariam um programa
para em 10 anos passarem dos 2% da população de 18
a 24 anos para 10%.
E
isso dependeria da diminuição da evasão?
ALOÍSIO:
E da busca de um outro modelo de funcionamento para o sistema público
de ensino superior. O que seria, na prática, a extinção
do vestibular? Teríamos formas diferenciadas de ingresso,
através da vinculação orgânica entre
a universidade pública e a rede pública de ensino
pré-universitário. A universidade faria um sistema
de acompanhamento e avaliação dos estudantes ao longo
do seu curso. Poderia começar pelo ensino médio e
progressivamente ir abarcando todo o ensino básico.
Se
a pessoa tivesse bom desempenho, teria a vaga?
ALOÍSIO:
Entraria direto. Começaríamos pelo ensino público.
A universidade poderia fazer um mapeamento das carências do
ensino público. O que falta? Qualificação do
professor? A universidade teria, então, programas de qualificação
do professor. A falta é de professor? Podemos incentivar,
através dos Colégios de Aplicação, a
formação de professores para o ensino médio.
Falta material didático? A universidade pode produzir material
didático. Desta forma, haveria uma parceria, uma vinculação
orgânica da universidade com os outros níveis de ensino,
e a universidade iria introduzindo vetores de melhoria no ensino
fundamental e médio. Se esse sistema se expandir, as próprias
escolas privadas de qualidade vão pedir para entrar nele.
Por que vão querer que seus estudantes sejam submetidos ao
processo de vestibular, quando há um outro processo muito
mais racional em vigor? Com isso, daqui a alguns anos teríamos
um sistema de acesso inteiramente diferente. Mais justo. Um sistema
que valorizaria o conjunto das atividades do estudante ao longo
da sua vida escolar, e não mais o vestibular, uma excrescência
brasileira. O aumento planejado do número de vagas seria
destinado, a cada ano, a essas novas formas de ingresso sem vestibular.
Não
teme o lobby agressivo dos cursinhos de vestibular?
ALOÍSIO:
Hoje você já encontra nos jornais pessoas entoando
loas ao vestibular como um sistema que premia o mérito. Não
há mérito no vestibular. Não há possibilidade
de você fazer uma comparação de mérito
entre um estudante que percorreu os melhores colégios da
Zona Sul, foi duas vezes à Europa e três aos EUA, com
o estudante que veio da rede pública, não teve professor
de física, química, matemática e acesso ao
aparato cultural. A ele, por sua própria origem, foi negada
a boa educação, e o vestibular é um sistema
que reproduz isso. Então eu digo que, simultaneamente ao
processo de expansão, devemos criar uma forma de acesso diferente.
No
orçamento, educação só perde verba.
E você quer mais dinheiro para a educação.
ALOÍSIO:
Como é que foi constituído no Brasil esse sistema
público universitário? De uma forma um pouco estranha.
Entrei para a universidade em 1963. Era muito ruinzinha. Havia umas
poucas universidades federais, não havia pesquisa, professor
de tempo integral, pós-graduação. Quinze anos
depois, tínhamos o melhor sistema de pós-graduação
da América Latina.
Durante
a ditadura?
ALOÍSIO:
Sim, a mudança ocorreu na ditadura. Houve uma aliança
implícita entre uma parte da burocracia estatal e a comunidade
científica brasileira.
Mas
tanta gente foi embora...
ALOÍSIO:
Teve uma primeira leva em 64, uma segunda depois do AI-5. Mas a
comunidade científica entrou nessa proposta. Houve a reestruturação
do CNPq, da Capes, a criação da Finep, do FNDCT (Fundo
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
. Quando foi o auge disso? No Governo Geisel. Esse modelo teve êxito?
Teve. Quer dizer, a universidade se transformou, passou a ter pós-graduação,
pesquisa, tempo integral. Mas o que caracteriza esse sistema? É
elitista, fechado e autoritário. Não há nenhum
controle social dos mecanismos de distribuição de
recursos para a pesquisa científica e tecnológica
no Brasil. E como é que se respondeu à demanda social
por vagas? Criando uma imensa rede privada de ensino superior. Foram
afrouxadas as exigências feitas pelo Conselho Federal de Educação
para a criação de novas faculdades privadas. E criou-se
um monstrengo: 80% dos estudantes do ensino superior estão
em escolas privadas, que nem sempre podem garantir uma qualidade
de ensino razoável e, em contrapartida, existe um sistema
público atrofiado, onde há o melhor ensino, pesquisa,
formação permanente. É preciso mudar tudo isso.
Corrigir os erros, criar um novo sistema. No Rio, temos quatro federais,
um Centro de Educação Tecnológica e duas universidades
estaduais. É preciso pensar esse sistema como uma rede de
universidades, explorando sinergias, convergências, complementaridades.
Cecilia
Costa e Daniela Birman
O Globo - Prosa & Verso - Capa/1
Rio de Janeiro, 19 de junho de 2004
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