De Olho na Mídia

 
22.06.2004  
   

Pelo fim do vestibular

Há tempos que Aloísio Teixeira, reitor da UFRJ, defende a reserva de vagas nas universidades federais e estaduais para os estudantes da rede pública. Ele é contra a cota racial, mas vê com simpatia a reserva de caráter democrático, tanto que solicitou uma pesquisa no Fundão que acabou por provar que, caso passe pelo Congresso, a reserva não favorecerá em demasia os estudantes originários da rede pública. A qualidade do aluno de classe alta ou média não seria assim tão melhor do que a do estudante de baixa renda, com a diferença de notas entre eles sendo mínima. Só que Aloísio quer mais, muito mais. Sonha com o fim do vestibular. O aluno deveria ser aceito na universidade a partir de seu desempenho na vida escolar, o que o obrigaria a estudar sempre.

Você tinha uma proposta de trocar as cotas para pardos e negros por uma reserva para a escola pública. O projeto do ministro Tarso Genro se assemelha ao que você, Aloísio, vem defendendo há meses, mas mesmo assim você diz que ainda não está totalmente dentro de suas expectativas. Por quê?

ALOÍSIO TEIXEIRA: Eu diria que não é exatamente a proposta que eu fiz naquela ocasião, mas devo reconhecer que há um avanço importante na formulação, porque o MEC, ao fazer a proposta de uma reserva de 50% de vagas para estudantes provenientes da escola pública, ou seja, que fizeram ensino médio na escola pública, desloca o foco da questão para o problema verdadeiro. Pois nosso problema central — e, veja bem, digo isso não para dizer que não há racismo no país, mas as manifestações de racismo no Brasil são sem dúvida alguma diferentes da de outros países, como nos EUA —- é o enfrentamento da miséria, da absurda pobreza, da questão social.

Um sério problema social que neste país desigual, sobretudo após a Abolição, inclui os pardos e os negros....

ALOÍSIO: Sim, é claro...Mas, do meu ponto de vista, a dificuldade que eles têm de acesso à universidade é a mesma que enfrenta qualquer parcela da população pobre no Brasil. Há, quando se leva em consideração apenas os aspectos raciais, um deslocamento da questão central. Por quê? Porque os jovens desfavorecidos, de famílias de baixa renda, estudam em escola pública. Se temos a perspectiva de fomentar o ingresso nas universidades de estudantes provenientes da rede pública, isso fará com que o país progressivamente avance na direção de ter uma população universitária com a verdadeira cara de nosso povo...

Vai democratizando....

ALOÍSIO: Sim, vai democratizando. E essa mudança de enfoque é muito importante.

Há pessoas que, quando lêem sobre esses 50% para a rede pública, comentam que favorecerão estudantes despreparados e que a qualidade das universidades vai piorar ainda mais. O que acha?

ALOÍSIO: Só queria ressaltar mais um aspecto positivo, que está na entrevista que o ministro Tarso Genro concedeu ao GLOBO, no dia 7, que é a idéia de que esse sistema possa ser progressivamente desativado, na medida em que os investimentos públicos na rede básica de ensino comecem a surtir efeito. Isso dá a idéia de que o MEC investirá na qualidade do ensino público nos níveis pré-universitários. Se esse investimento acontecer e o ensino público melhorar, a cota ou reserva se tornará desnecessária.

Mas isso não aconteceria a curto prazo, não é? E a longo prazo todos estaremos mortos...

ALOÍSIO: O ministro estima que serão necessários uns 5 a 10 anos para que os investimentos façam efeito e para que o sistema de reserva possa ser desmontado. De qualquer forma, há uma posição mais correta do Governo em direção ao reforço do ensino público, principalmente nos níveis pré-universitários, e no que diz respeito ao foco no problema social e não mais no racial.

Então o enfoque do Governo realmente melhorou?

ALOÍSIO: O enfoque melhorou, sim. Em relação à capacidade dos estudantes, fizemos na UFRJ um estudo com uma simulação do que teria ocorrido no último vestibular se tivéssemos reservado 20% das vagas para os provenientes da rede pública. Quando fizemos esse estudo, ainda não havia sido definido o percentual de 50%, e trabalhamos com apenas 20%. O que observamos foi o seguinte: a diferença de nota entre o estudante que entrou efetivamente e o que faria jus à vaga se valesse a reserva de 20% é mínima. Ou seja, as diferenças de notas entre o estudante da rede privada e o da rede pública foram muito pequenas, mínimas até.

Mínimas como?

ALOÍSIO: Como 0,01 ou 0,03. O risco de que sejam aproveitados estudantes menos qualificados não é verdadeiro. E isso tem uma explicação que faz com que esse projeto não dê conta, realmente, do problema que ele pretende resolver. Mas antes de falar disso eu quero dizer o seguinte: o próprio projeto tem que ser melhorado. Em duas direções. Uma é definir com clareza se esta cota de 50% vale para a totalidade das vagas que uma universidade oferece ou se é por curso. Há cursos como medicina e odontologia que são muito caros, cujo custo para o aluno é muito alto, mesmo na universidade pública. Não tem pobre estudando odontologia, medicina ou engenharia de produção. É diferente de quando você observa os cursos de formação de professores, como letras, história, geografia, matemática. São cursos nos quais a participação proporcional de estudantes da rede pública já é mais alta. Uma universidade qualquer pode, por exemplo, expandir cursos noturnos e, com isso, preencher o critério de 50% das vagas, sem mexer na estrutura dos cursos dos estudantes com maior poder aquisitivo. Será preciso dizer: o curso de medicina terá de ter 50% de vagas para estudantes...

Você é a favor disso?

ALOÍSIO: Sou a favor. Se é para fazer, é para fazer por curso. Senão teremos curso para pobre e curso para rico. Agravaremos o problema que já existe de ter curso para pobre e curso para rico. E um outro ponto em que o projeto deve ser melhorado é o de que tem que ser acompanhado de uma política ativa que garanta a manutenção do estudante na universidade. Isso implica bolsas de estudo, alojamento, alimentação, investimentos em biblioteca, equipamentos de laboratório ou próprios da formação de cada ramo do conhecimento, para que o aluno entre para a universidade e fique.

Implica dinheiro e a universidade federal não tem dinheiro.

ALOÍSIO: Não tem. Então tem de haver um política ativa de recursos, de custeio para as universidades que estão abrindo vagas de acordo com o projeto de lei. Senão você faz com que o estudante entre na universidade e, em seis meses, vá embora. Haverá mais vagas ociosas do que hoje. O projeto está na direção certa, mas pede melhorias.

O detalhamento já não faria parte da regulamentação?

ALOÍSIO: Ainda que faça, a questão de ser por curso ou por universidade tem que constar da lei. E o MEC tem que garantir que haverá uma política de bolsa efetiva. Por que o projeto não dá conta da nossa realidade? Objetiva democratizar o acesso. Mas qual é a realidade hoje? Apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos cursam universidade, um percentual humilhante.

Tem como comparar com outros países?

ALOÍSIO: Nos EUA já está chegando a 60%. Países da Europa também já estão na faixa de 50%. Esses países vivem um processo de universalização do ensino superior. A educação superior, daqui a alguns anos, será um direito da cidadania, como a educação fundamental. Na América Latina, o Brasil é um dos países com percentual mais baixo.

Em educação, infelizmente, somos ruins em tudo.

ALOÍSIO: Somos ruins, sim. Enquanto tivermos apenas 9% da população de 18 a 24 anos na universidade, não teremos democratizado o acesso. Quer dizer, não é com cota que se faz a mudança. Enquanto continuarmos com este percentual de apenas 9%, não haverá democratização do acesso. Desses 9%, uns 2% devem ser da universidade pública e 7% do ensino superior privado. Com 2%, pode ter a cota que tiver que a universidade continuará sendo uma universidade de elite. O problema é a expansão desse sistema. Volto à minha idéia original: combinar um programa de expansão do número de vagas no sistema público com a extinção do vestibular. As universidades públicas fariam um programa para em 10 anos passarem dos 2% da população de 18 a 24 anos para 10%.

E isso dependeria da diminuição da evasão?

ALOÍSIO: E da busca de um outro modelo de funcionamento para o sistema público de ensino superior. O que seria, na prática, a extinção do vestibular? Teríamos formas diferenciadas de ingresso, através da vinculação orgânica entre a universidade pública e a rede pública de ensino pré-universitário. A universidade faria um sistema de acompanhamento e avaliação dos estudantes ao longo do seu curso. Poderia começar pelo ensino médio e progressivamente ir abarcando todo o ensino básico.

Se a pessoa tivesse bom desempenho, teria a vaga?

ALOÍSIO: Entraria direto. Começaríamos pelo ensino público. A universidade poderia fazer um mapeamento das carências do ensino público. O que falta? Qualificação do professor? A universidade teria, então, programas de qualificação do professor. A falta é de professor? Podemos incentivar, através dos Colégios de Aplicação, a formação de professores para o ensino médio. Falta material didático? A universidade pode produzir material didático. Desta forma, haveria uma parceria, uma vinculação orgânica da universidade com os outros níveis de ensino, e a universidade iria introduzindo vetores de melhoria no ensino fundamental e médio. Se esse sistema se expandir, as próprias escolas privadas de qualidade vão pedir para entrar nele. Por que vão querer que seus estudantes sejam submetidos ao processo de vestibular, quando há um outro processo muito mais racional em vigor? Com isso, daqui a alguns anos teríamos um sistema de acesso inteiramente diferente. Mais justo. Um sistema que valorizaria o conjunto das atividades do estudante ao longo da sua vida escolar, e não mais o vestibular, uma excrescência brasileira. O aumento planejado do número de vagas seria destinado, a cada ano, a essas novas formas de ingresso sem vestibular.

Não teme o lobby agressivo dos cursinhos de vestibular?

ALOÍSIO: Hoje você já encontra nos jornais pessoas entoando loas ao vestibular como um sistema que premia o mérito. Não há mérito no vestibular. Não há possibilidade de você fazer uma comparação de mérito entre um estudante que percorreu os melhores colégios da Zona Sul, foi duas vezes à Europa e três aos EUA, com o estudante que veio da rede pública, não teve professor de física, química, matemática e acesso ao aparato cultural. A ele, por sua própria origem, foi negada a boa educação, e o vestibular é um sistema que reproduz isso. Então eu digo que, simultaneamente ao processo de expansão, devemos criar uma forma de acesso diferente.

No orçamento, educação só perde verba. E você quer mais dinheiro para a educação.

ALOÍSIO: Como é que foi constituído no Brasil esse sistema público universitário? De uma forma um pouco estranha. Entrei para a universidade em 1963. Era muito ruinzinha. Havia umas poucas universidades federais, não havia pesquisa, professor de tempo integral, pós-graduação. Quinze anos depois, tínhamos o melhor sistema de pós-graduação da América Latina.

Durante a ditadura?

ALOÍSIO: Sim, a mudança ocorreu na ditadura. Houve uma aliança implícita entre uma parte da burocracia estatal e a comunidade científica brasileira.

Mas tanta gente foi embora...

ALOÍSIO: Teve uma primeira leva em 64, uma segunda depois do AI-5. Mas a comunidade científica entrou nessa proposta. Houve a reestruturação do CNPq, da Capes, a criação da Finep, do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) . Quando foi o auge disso? No Governo Geisel. Esse modelo teve êxito? Teve. Quer dizer, a universidade se transformou, passou a ter pós-graduação, pesquisa, tempo integral. Mas o que caracteriza esse sistema? É elitista, fechado e autoritário. Não há nenhum controle social dos mecanismos de distribuição de recursos para a pesquisa científica e tecnológica no Brasil. E como é que se respondeu à demanda social por vagas? Criando uma imensa rede privada de ensino superior. Foram afrouxadas as exigências feitas pelo Conselho Federal de Educação para a criação de novas faculdades privadas. E criou-se um monstrengo: 80% dos estudantes do ensino superior estão em escolas privadas, que nem sempre podem garantir uma qualidade de ensino razoável e, em contrapartida, existe um sistema público atrofiado, onde há o melhor ensino, pesquisa, formação permanente. É preciso mudar tudo isso. Corrigir os erros, criar um novo sistema. No Rio, temos quatro federais, um Centro de Educação Tecnológica e duas universidades estaduais. É preciso pensar esse sistema como uma rede de universidades, explorando sinergias, convergências, complementaridades.

Cecilia Costa e Daniela Birman
O Globo - Prosa & Verso - Capa/1
Rio de Janeiro, 19 de junho de 2004

 

 

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