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Será...
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será...
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Os versos acima são do samba-enredo da Mangueira de 1988, ano em
que se completou o primeiro centenário da assinatura da Lei Áurea,
marco máximo da abolição da escravatura no Brasil.
Já nessa época, era questionada a emancipação
do negro após um século da aprovação da Lei.
Hoje, 17 anos depois desses versos ecoarem na Marquês de Sapucaí,
ainda permanece o questionamento. O Olhar Virtual ouviu a opinião
de dois especialistas indagando se a liberdade realmente já raiou
para o negro no Brasil. |
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Alberto
Cláudio dos Santos
Chefe de Recursos Humanos da Decania do CCJE/UFRJ e membro
do IPCN (Instituto de Pesquisa de Culturas Negras)
"Infelizmente
esses versos são muito atuais e digo que pouca coisa mudou
para o negro no Brasil. Vou usar a violência para exemplificar
esse pensamento. No último final de semana, no Paraná,
um jovem negro de 20 anos foi espancado por policiais após
ter sua casa invadida por eles para dar cabo a uma festa que fazia
com amigos. Esse tipo de atitude mostra que o negro continua sendo
tratado como indigente, sendo pisado em nossa sociedade. Claro,
muitas conquistas foram alcançadas. Hoje temos um ministro,
vários negros venceram na vida após muitas dificuldades,
mas ainda é muito pouco dentro do ideário de liberdade
de 117 anos atrás. Os versos desse samba dizem que o negro
samba e joga a capoeira na Mangueira, lá na favela. E fora
dela? São muitas dificuldades. Existe um preconceito muito
velado em nosso país e eu mesmo sou vítima. Recentemente,
fui numa loja de um shopping na Zona Sul comprar um DVD da Norah
Jones. A vendedora, que era negra também, me olhou de cima
a baixo como que duvidasse de que pudesse querer adquirir um produto
caro e de qualidade. Veja só a gravidade do problema. Ela,
sendo negra, tem em sua cabeça, os preconceitos que a sociedade
pratica e perpetua; no caso, de que o negro sempre é marginal,
está à margem da sociedade. O negro não pode
se apequenar diante dessas situações. Tem de levantar
a cabeça e vencer por seus próprios méritos,
como muitos conseguiram em nossa história. É preciso
que o negro denuncie todos os abusos que sofre.
Contudo, acho que muita coisa vem sendo feita, pelos próprios
negros, para que acabemos com essa situação. O movimento
negro é importantíssimo nessa luta. Queremos ver
atores negros em papéis que não sejam de empregados
e escravos; queremos ver comerciais de artigos de luxo, como um
BMW com atores negros, não só com artigos de limpeza.
E, acima de tudo, queremos poder chegar num restaurante e pagar
com cartão de crédito, sem precisar checar se é
um cartão roubado, como aconteceu comigo e minha família
em uma ocasião. Os ideais de maio de 1888 não foram
ilusão."
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Denise
Góes
Coordenadora
Geral do SINTUFRJ e trabalhadora técnica administrativa
da Faculdade de Odontologia da UFRJ
"Depois de 117 anos de assinatura da Lei
Áurea temos que refletir seriamente os efeitos dessa “libertação”
para os escravos e, conseqüentemente, para seus descendentes.
O Brasil que escraviza africanos foi o último país
a abolir a escravidão no mundo e o fez porque o modo de
produção escravista não mais correspondia
às necessidades do processo de industrialização.
O Brasil negou-lhes a própria cultura e religiosidade,
consideradas criminosas; negou-lhes o uso da terra, optando dá-las
aos europeus que hoje formam prósperas colônias;
negou-lhes acesso aos processos de produção; de
desenvolvimento e de educação. Apostou numa ideologia
de embranquecimento e europeização pela cultura
e pela miscigenação, acreditando que ao final do
séc. XX não mais existiriam negros por aqui.
Mas depois de 350 anos sustentando a economia meio a “liberdade”,
através de uma lei que não garantia nenhuma possibilidade
de sobrevivência, as dificuldades enfrentadas pelos descendentes
de escravos estão explícitas em todos os campos.
Aparecem expressas na pobreza da maioria da população
negra e nas dificuldades cotidianas escamoteadas atrás
de um perverso racismo velado presente na sociedade brasileira.
O Brasil é um território demarcado para os brancos
e para a elite brasileira e, sem dúvida nenhuma, as condições
(ou melhor a falta delas) dadas na assinatura da Lei Áurea
colaboraram, e muito, para que a população afrodescendente
se encontre neste patamar. Continuamos sendo elementos das estatísticas
criminais como autores e vítimas, sendo subjugados a dita
“boa aparência” que, através desse instrumento,
nos nega a possibilidade de emprego e, conseqüentemente,
de melhores condições de vida; nos nega acesso às
universidades que ajudamos a manter – alegando que estaríamos
fazendo racismo às avessas – quando na verdade o
Estado Brasileiro têm uma dívida com esta parcela
da população.
Portanto, nesses 117 anos de abolição, nada temos
a comemorar. Muito pelo contrário, a situação
da maioria da população afrodescendente continua
permeada pelas dificuldades de acesso à educação,
moradia, emprego e saúde."
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