Olho no Olho
17.05.2005
O pós abolição e a comunidade afrodescendente          
Diego do Carmo

Será...
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será...
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão


Os versos acima são do samba-enredo da Mangueira de 1988, ano em que se completou o primeiro centenário da assinatura da Lei Áurea, marco máximo da abolição da escravatura no Brasil. Já nessa época, era questionada a emancipação do negro após um século da aprovação da Lei. Hoje, 17 anos depois desses versos ecoarem na Marquês de Sapucaí, ainda permanece o questionamento. O Olhar Virtual ouviu a opinião de dois especialistas indagando se a liberdade realmente já raiou para o negro no Brasil.

 
     

Alberto Cláudio dos Santos
Chefe de Recursos Humanos da Decania do CCJE/UFRJ e membro do IPCN (Instituto de Pesquisa de Culturas Negras)

"Infelizmente esses versos são muito atuais e digo que pouca coisa mudou para o negro no Brasil. Vou usar a violência para exemplificar esse pensamento. No último final de semana, no Paraná, um jovem negro de 20 anos foi espancado por policiais após ter sua casa invadida por eles para dar cabo a uma festa que fazia com amigos. Esse tipo de atitude mostra que o negro continua sendo tratado como indigente, sendo pisado em nossa sociedade. Claro, muitas conquistas foram alcançadas. Hoje temos um ministro, vários negros venceram na vida após muitas dificuldades, mas ainda é muito pouco dentro do ideário de liberdade de 117 anos atrás. Os versos desse samba dizem que o negro samba e joga a capoeira na Mangueira, lá na favela. E fora dela? São muitas dificuldades. Existe um preconceito muito velado em nosso país e eu mesmo sou vítima. Recentemente, fui numa loja de um shopping na Zona Sul comprar um DVD da Norah Jones. A vendedora, que era negra também, me olhou de cima a baixo como que duvidasse de que pudesse querer adquirir um produto caro e de qualidade. Veja só a gravidade do problema. Ela, sendo negra, tem em sua cabeça, os preconceitos que a sociedade pratica e perpetua; no caso, de que o negro sempre é marginal, está à margem da sociedade. O negro não pode se apequenar diante dessas situações. Tem de levantar a cabeça e vencer por seus próprios méritos, como muitos conseguiram em nossa história. É preciso que o negro denuncie todos os abusos que sofre.
Contudo, acho que muita coisa vem sendo feita, pelos próprios negros, para que acabemos com essa situação. O movimento negro é importantíssimo nessa luta. Queremos ver atores negros em papéis que não sejam de empregados e escravos; queremos ver comerciais de artigos de luxo, como um BMW com atores negros, não só com artigos de limpeza. E, acima de tudo, queremos poder chegar num restaurante e pagar com cartão de crédito, sem precisar checar se é um cartão roubado, como aconteceu comigo e minha família em uma ocasião. Os ideais de maio de 1888 não foram ilusão.
"

 

Denise Góes
Coordenadora Geral do SINTUFRJ e trabalhadora técnica administrativa da Faculdade de Odontologia da UFRJ

"Depois de 117 anos de assinatura da Lei Áurea temos que refletir seriamente os efeitos dessa “libertação” para os escravos e, conseqüentemente, para seus descendentes.
O Brasil que escraviza africanos foi o último país a abolir a escravidão no mundo e o fez porque o modo de produção escravista não mais correspondia às necessidades do processo de industrialização. O Brasil negou-lhes a própria cultura e religiosidade, consideradas criminosas; negou-lhes o uso da terra, optando dá-las aos europeus que hoje formam prósperas colônias; negou-lhes acesso aos processos de produção; de desenvolvimento e de educação. Apostou numa ideologia de embranquecimento e europeização pela cultura e pela miscigenação, acreditando que ao final do séc. XX não mais existiriam negros por aqui.
Mas depois de 350 anos sustentando a economia meio a “liberdade”, através de uma lei que não garantia nenhuma possibilidade de sobrevivência, as dificuldades enfrentadas pelos descendentes de escravos estão explícitas em todos os campos. Aparecem expressas na pobreza da maioria da população negra e nas dificuldades cotidianas escamoteadas atrás de um perverso racismo velado presente na sociedade brasileira.
O Brasil é um território demarcado para os brancos e para a elite brasileira e, sem dúvida nenhuma, as condições (ou melhor a falta delas) dadas na assinatura da Lei Áurea colaboraram, e muito, para que a população afrodescendente se encontre neste patamar. Continuamos sendo elementos das estatísticas criminais como autores e vítimas, sendo subjugados a dita “boa aparência” que, através desse instrumento, nos nega a possibilidade de emprego e, conseqüentemente, de melhores condições de vida; nos nega acesso às universidades que ajudamos a manter – alegando que estaríamos fazendo racismo às avessas – quando na verdade o Estado Brasileiro têm uma dívida com esta parcela da população.
Portanto, nesses 117 anos de abolição, nada temos a comemorar. Muito pelo contrário, a situação da maioria da população afrodescendente continua permeada pelas dificuldades de acesso à educação, moradia, emprego e saúde.
"

     
         
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