Olho no Olho
03.05.2005

Qualquer semelhança não é mera coincidência
Aborto de fetos anencefálicos

     
Luciana de Freitas


Excepcionalmente, nosso olho no olho sai com apenas um artigo escrito pelo professor Sérgio Zaidhaft sobre o polêmico tema da liberação do aborto de fetos anencefálicos. Presidente da Comissão de Bioética do Hospital Universitário, Zaidhaft nos oferece um pequeno ensaio que nos remete a uma reflexão crítica sobre a interferência das leis na liberdade de escolha pessoal. A narrativa ficcional nos instiga a uma reflexão ética. Qual a sua opinião?

"Era uma vez... Num país e num tempo não muito distantes...
Duas mulheres, chamemos de Ana e Marta. Ambas são casadas, adoram seus maridos, são felizes com eles, têm por volta de 30 anos, cuidam de casa com o maior esmero e trabalham, digamos que Ana como comerciária e Marta como secretária.
Pois bem, após uns 5 a 6 anos anos de casadas, as duas resolvem, é claro que após conversarem com os respectivos maridos, que está na hora de ter o primeiro filho (dos dois que ambas desejam ter), afinal já estão com 30 anos, depois fica mais difícil ter saúde para cuidar dos filhos, sempre quiseram engravidar mais jovens, mas temiam ter que parar de trabalhar (as duas não acreditavam muito nas garantias dadas naquele país que mulheres não perdem os empregos ao engravidar).
Após alguns meses de tentativas infrutíferas, ambas ficam grávidas praticamente ao mesmo tempo (naquele país alguns acreditam em influência da Lua nas marés e nos ciclos menstruais, daí o maior número de fecundações em alguns períodos do ano).
Ficam exultantes, os maridos idem, o desejo acalentado por tantos anos de gerar um filho, gestá-lo, criá-lo com todo o amor possível, finalmente se realiza. Sonham com seus bebês, sonham com pães no forno de padarias, com peixinhos nadando, imaginam a decoração do quarto, o nome que vão dar aos filhos, se submetem a todas as crendices que tentam prever se o bebê é menino ou menina, têm desejos estranhos de comidas exóticas a que os maridos atendem com toda a compreensão possível. Estão radiantes e seus rostos e seus corpos transmitem isto a todos.
Como moram no mesmo bairro, ambas são atendidas no mesmo posto de saúde e se submetem num certo dia, uma logo depois da outra, a exames de ultra-sonografia para ver as condições de seus bebês. Eis que, por uma desgraça da sorte, Ana e Marta ficam sabendo que seus bebês não têm o encéfalo e que, por este motivo, morrerão logo após nascer.
O desespero se instala nas casas de ambas. Choram e sofrem terrivelmente, assim como seus maridos, seus pais, suas mães, seus amigos. Ambas são muito queridas por todos e todos lamentam a injustiça de as duas terem que passar por esta tragédia que junta, num paradoxo quase impossível de se compreender e se superar, esperança de vida e certeza de morte.
Passados alguns dias do impacto da notícia, Ana e Marta vão a uma consulta médica acompanhadas de seus respectivos maridos. O médico que as atende é atencioso, explica o resultado do exame com calma e responde a todas as perguntas que elas lhe fazem de modo que não reste qualquer dúvida quanto ao que ocorrerá com seus bebês.
O médico também informa a elas que a legislação em vigor naquele país obriga que fetos anencéfalos sejam abortados. Como se acredita que a vida somente passe a existir após o nascimento e que, além disso, manter uma gravidez cujo resultado inevitável é a morte do filho em algumas horas é uma afronta à saúde e à vida da mãe, os legisladores resolveram que toda e qualquer mãe, concordando ou não com isso, é obrigada a abortar caso se descubra que o feto é anencéfalo.
Ana e seu marido, bastante emocionados, mas conformados e concordando que esta é a melhor opção, marcam o aborto com o médico para a semana seguinte. Afinal, eles pensam, para que serviria carregar um filho por tantos meses já que sabidamente ele morrerá poucas horas após nascer? Prometem um ao outro que, depois de algum pouco tempo para digerir o sofrimento, tentarão novamente engravidar.
Já Marta e o marido, ao serem informados pelo médico sobre a legislação, reagem indignados, dizem que querem ter o filho de qualquer jeito, que jamais o abortariam, que isto seria contra tudo em que sempre acreditaram. Marta diz que sente o filho se mexendo dentro dela, sabe que ele está vivo, que tem esperança de que ele nasça bem e que, mesmo que isto não seja possível e que ele morra logo, prefere tê-lo com ela o maior tempo possível e vê-lo nascer e que jamais se perdoaria se não fizesse as coisas deste jeito. O médico ouve Marta e diz a ela que infelizmente neste caso ele não poderia ajudá-la a manter a gestação, pois ele estaria contra a lei. Marta pergunta se ele não conhece algum médico que possa acompanhá-la no pré-natal e o médico responde que infelizmente não é possível encaminhá-la a qualquer colega, mas não pode deixar de lembrar que a própria paciente e seu marido devem ter informação de clínicas clandestinas que existem naquele país, onde grávidas que querem manter a gestação são atendidas, mas que ele não sabe onde ficam e não pode dizer mais que isto.
Marta ainda argumenta que afinal o corpo pertence a ela e não ao Estado, que ela é dona de sua vontade e que ninguém é capaz de saber o que ela sente, que ela tem o livre arbítrio de decidir o que é melhor para ela e seu filho, que ninguém sabe o sofrimento que é gestar um filho anencéfalo e ter que abortá-lo contra a sua vontade, que esta é uma imposição absurda e arbitrária de quem nunca passou por isso, que a lei atende a crenças de parte da população, mas não às suas próprias crenças, que ela nunca cometeu qualquer crime, que além da dor de carregar um filho anencéfalo e perdê-lo logo após nascer ainda por cima vai se sentir uma criminosa por levar a gestação clandestinamente a termo, chora, se desespera, pede que o médico a ajude, mas este diz que infelizmente não pode fazer nada.
O que Marta resolverá fazer?
Enquanto isso, se Ana e Marta vivessem no Brasil atualmente..."


 
     



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