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Excepcionalmente, nosso olho no olho sai com apenas um artigo escrito
pelo professor Sérgio Zaidhaft sobre o polêmico
tema da liberação do aborto de fetos anencefálicos.
Presidente da Comissão de Bioética do Hospital Universitário,
Zaidhaft nos oferece um pequeno ensaio que nos remete a uma reflexão
crítica sobre a interferência das leis na liberdade de escolha
pessoal. A narrativa ficcional nos instiga a uma reflexão ética.
Qual a sua opinião?
"Era
uma vez... Num país e num tempo não muito distantes...
Duas mulheres, chamemos de Ana e Marta. Ambas são casadas, adoram
seus maridos, são felizes com eles, têm por volta de 30 anos,
cuidam de casa com o maior esmero e trabalham, digamos que Ana como comerciária
e Marta como secretária.
Pois bem, após uns 5 a 6 anos anos de casadas, as duas resolvem,
é claro que após conversarem com os respectivos maridos,
que está na hora de ter o primeiro filho (dos dois que ambas desejam
ter), afinal já estão com 30 anos, depois fica mais difícil
ter saúde para cuidar dos filhos, sempre quiseram engravidar mais
jovens, mas temiam ter que parar de trabalhar (as duas não acreditavam
muito nas garantias dadas naquele país que mulheres não
perdem os empregos ao engravidar).
Após alguns meses de tentativas infrutíferas, ambas ficam
grávidas praticamente ao mesmo tempo (naquele país alguns
acreditam em influência da Lua nas marés e nos ciclos menstruais,
daí o maior número de fecundações em alguns
períodos do ano).
Ficam exultantes, os maridos idem, o desejo acalentado por tantos anos
de gerar um filho, gestá-lo, criá-lo com todo o amor possível,
finalmente se realiza. Sonham com seus bebês, sonham com pães
no forno de padarias, com peixinhos nadando, imaginam a decoração
do quarto, o nome que vão dar aos filhos, se submetem a todas as
crendices que tentam prever se o bebê é menino ou menina,
têm desejos estranhos de comidas exóticas a que os maridos
atendem com toda a compreensão possível. Estão radiantes
e seus rostos e seus corpos transmitem isto a todos.
Como moram no mesmo bairro, ambas são atendidas no mesmo posto
de saúde e se submetem num certo dia, uma logo depois da outra,
a exames de ultra-sonografia para ver as condições de seus
bebês. Eis que, por uma desgraça da sorte, Ana e Marta ficam
sabendo que seus bebês não têm o encéfalo e
que, por este motivo, morrerão logo após nascer.
O desespero se instala nas casas de ambas. Choram e sofrem terrivelmente,
assim como seus maridos, seus pais, suas mães, seus amigos. Ambas
são muito queridas por todos e todos lamentam a injustiça
de as duas terem que passar por esta tragédia que junta, num paradoxo
quase impossível de se compreender e se superar, esperança
de vida e certeza de morte.
Passados alguns dias do impacto da notícia, Ana e Marta vão
a uma consulta médica acompanhadas de seus respectivos maridos.
O médico que as atende é atencioso, explica o resultado
do exame com calma e responde a todas as perguntas que elas lhe fazem
de modo que não reste qualquer dúvida quanto ao que ocorrerá
com seus bebês.
O médico também informa a elas que a legislação
em vigor naquele país obriga que fetos anencéfalos sejam
abortados. Como se acredita que a vida somente passe a existir após
o nascimento e que, além disso, manter uma gravidez cujo resultado
inevitável é a morte do filho em algumas horas é
uma afronta à saúde e à vida da mãe, os legisladores
resolveram que toda e qualquer mãe, concordando ou não com
isso, é obrigada a abortar caso se descubra que o feto é
anencéfalo.
Ana e seu marido, bastante emocionados, mas conformados e concordando
que esta é a melhor opção, marcam o aborto com o
médico para a semana seguinte. Afinal, eles pensam, para que serviria
carregar um filho por tantos meses já que sabidamente ele morrerá
poucas horas após nascer? Prometem um ao outro que, depois de algum
pouco tempo para digerir o sofrimento, tentarão novamente engravidar.
Já Marta e o marido, ao serem informados pelo médico sobre
a legislação, reagem indignados, dizem que querem ter o
filho de qualquer jeito, que jamais o abortariam, que isto seria contra
tudo em que sempre acreditaram. Marta diz que sente o filho se mexendo
dentro dela, sabe que ele está vivo, que tem esperança de
que ele nasça bem e que, mesmo que isto não seja possível
e que ele morra logo, prefere tê-lo com ela o maior tempo possível
e vê-lo nascer e que jamais se perdoaria se não fizesse as
coisas deste jeito. O médico ouve Marta e diz a ela que infelizmente
neste caso ele não poderia ajudá-la a manter a gestação,
pois ele estaria contra a lei. Marta pergunta se ele não conhece
algum médico que possa acompanhá-la no pré-natal
e o médico responde que infelizmente não é possível
encaminhá-la a qualquer colega, mas não pode deixar de lembrar
que a própria paciente e seu marido devem ter informação
de clínicas clandestinas que existem naquele país, onde
grávidas que querem manter a gestação são
atendidas, mas que ele não sabe onde ficam e não pode dizer
mais que isto.
Marta ainda argumenta que afinal o corpo pertence a ela e não ao
Estado, que ela é dona de sua vontade e que ninguém é
capaz de saber o que ela sente, que ela tem o livre arbítrio de
decidir o que é melhor para ela e seu filho, que ninguém
sabe o sofrimento que é gestar um filho anencéfalo e ter
que abortá-lo contra a sua vontade, que esta é uma imposição
absurda e arbitrária de quem nunca passou por isso, que a lei atende
a crenças de parte da população, mas não às
suas próprias crenças, que ela nunca cometeu qualquer crime,
que além da dor de carregar um filho anencéfalo e perdê-lo
logo após nascer ainda por cima vai se sentir uma criminosa por
levar a gestação clandestinamente a termo, chora, se desespera,
pede que o médico a ajude, mas este diz que infelizmente não
pode fazer nada.
O que Marta resolverá fazer?
Enquanto isso, se Ana e Marta vivessem no Brasil atualmente..."
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