Olho no Olho
14.12.2004
MPB: geração ou estilo musical?        
Ana Carolina Alves

Falar de MPB e ritmos populares mais difundidos comercialmente, como o funk ou o hip hop, suscita, na maioria das vezes, opiniões diversas e até antagônicas. “Gosto não se discute”, é como se costuma finalizar esse tipo de discussão. O que vale, não é tanto o que se gosta ou não, mas sim a reflexão possível acerca da nossa cultura popular que temas como estes podem deflagrar. Com exatamente este intuito, o Olhar Virtual preparou para esta edição um “olho no olho” entre a professora e pesquisadora em cultura, da Escola de Comunicação da UFRJ, Liv Rebecca Sovik, e o grande maestro e professor da Escola de Música da UFRJ, José Rua.

 
     
 

Liv Rebecca Sovik
Professora do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ

A MPB se tornou uma rubrica de vendas de discos. É um termo que vem dos anos 60 (alguns chamavam a nova onda de "moderna música popular brasileira” — MMPB) e que hoje se identifica com Chico, Caetano, Gil, Gal, Elis Regina e figuras mais novas como Adriana Calcanhoto, Ana Carolina e Zélia Duncan. No entanto, tornou-se, neste processo, um rótulo incômodo: é o “não-rock”, o “não-brega”, o “não-pagode”, o “não-samba de raiz”, o “não-axé”. Pretende-se de bom gosto, o que cria resistências. Caetano, por exemplo, nega pertencer à categoria. Paulo César Araújo escreveu um livro (Eu não sou cachorro não) para mostrar que não há muita diferença ideológica entre o brega e a MPB de Chico e Caetano, música considerada muito mais crítica à ditadura.
Situando a MPB no contexto histórico, percebemos que se trata de um rótulo que surgiu em um momento específico: no início do governo militar, quando surgiu novo mercado para a música. É de uma geração posterior à Bossa Nova — que se distinguia da música da “Era do Rádio” — que cantava em festivais transmitidos pela televisão, propunha a modernização do samba e algum discurso sobre a tradição musical e a situação política do país. A MPB, nesse sentido, é rótulo que designa uma música cujo mercado (o crescente setor de jovens urbanos, muitas vezes, com formação superior) não é mais novidade, como o era nos anos 60, é agora, inclusive, um mercado envelhecido.
Quando se fala em "atingir as camadas populares", precisamos pensar sobre o que realmente é isso. Se significa vender discos, a MPB nunca foi hegemônica nas camadas populares. No entanto, teve sua influência além das suas vendas, ajudando a formar uma tradição de discussão da música em um país que sempre se glorificou por uma singularidade brasileira, do popular, mesmo que este rótulo não se traduza como o preferido pela “camadas mais populares”.
Quanto à autenticidade, na discussão inicial da MPB, houve a tentativa de se entender o que seria, realmente, a música popular brasileira — uma busca ou uma afirmação do nacional ou de alguma singularidade brasileira. Hoje, me parece que é generalizada a desistência desse projeto de isolamento da singularidade. Tal desistência, no entanto, acaba tornando-se condição favorável à ampliação do espaço de sons como o funk e o rap. Há, cada vez mais, uma sensação crescente de pertencimento a um mundo maior em que, por exemplo, seria impossível se efetuar a separação entre Brasil e economia mundial. Afinal, as novidades culturais estrangeiras chegam instantaneamente de algum lugar que não é exatamente "fora", através, como o caso da Internet. Isso tudo facilita trocas culturais entre setores negros das Américas e, inclusive, da Europa. A cultura desses setores se tornara paradigmática do novo pertencimento global.
O funk e o rap dependem de um aparato tecnológico imprescindível — o DJ — que é interessante em si para uma geração ligada a essas possibilidades. A grande divisão brasileira não é mais urbano-rural, ou nacional-estrangeiro, como foi nos anos 60, nos primórdios da MPB. A grande divisão agora é da desigualdade social dentro das cidades. O funk e o rap dão à classe média a possibilidade de dar nome a essa situação e, aparentemente, dominá-la ou participar de ambos lados dessa divisão. Contudo, esses são apenas alguns motivos possíveis, são mais postulados do que conclusões de pesquisa. Na verdade, não acredito que o funk ou o hip-hop sejam movimentos populares, embora possuam elementos destes.

Talvez a MPB não seja importante em si, no que diz respeito à forma em que se fragilizou como categoria. Não é mais tão fácil identificar o que é. É, sim, resultado de um processo cultural, político, social e, inclusive, tecnológico, de agregação e diferenciação de estilos musicais, lugares de produção e públicos consumidores de música. A MPB talvez não seja mais o nome de um território tão importante para a nova produção, no mapa da cultura musical brasileira. Mesmo assim, deixou marcas e coordenadas a partir das quais é possível pensar a atualidade.

 
   

José Rua
Maestro da UFRJazz Ensemble e professor da Escola de Música da UFRJ

A MPB constitui um movimento muito importante no Brasil. O que está acontecendo no momento é a influência de muitas idéias novas. Idéias essas que estão surgindo a partir de pessoas ótimas. Na minha área, por exemplo, que é a MPB instrumental, há muita gente nova; é uma outra geração em que temos músicos alunos que estão vindo de universidades, ou mesmo, estudando música — o que é uma coisa rara. Na minha cabeça, nunca existiu a diferença entre popular e erudito. Essa diferença somente se dá aqui no Brasil. Esta situação está mudando muito em decorrência da educação do povo.
Há a idéia de que a música popular brasileira atinge as camadas média e alta da sociedade, mas não é verdade. Acho que o consumo que é desigual, mas isso depende do que se toca no mercado. Mas existe mercado nesta área, para este tipo de música. Ao menos, os mercados existem. A questão é valorizar e dar conta desses mercados. Eu acho que esse mercado nunca foi tão valorizado. Contudo, se formos pensar em outros países como os Estados Unidos, por exemplo, veremos que eles têm o mesmo problema. A música americana jazz é mais valorizada fora dos Estados Unidos. Então, os artistas americanos têm que ir para fora de seu país para mostrarem seus trabalhos. O mesmo que ocorre aqui; os brasileiros também vão para fora do Brasil para apresentarem seus trabalhos.
O que falta no Brasil, é se ter, nas escolas de primeiro e segundo graus, “aulas de música” de verdade. Por isso, a MPB não pode ser tão difundida nas camadas ditas “populares” porque nunca se apresentou a elas esse tipo de música, nunca se ensinou o que representa essa música; nada disso é visto nas escolas.
A UFRJazz, que é uma entidade que vem crescendo cada vez mais nos últimos dez anos, mas ainda está restrita a Universidade. O ideal era que se fizesse em todas as escolas do Brasil, o que já acontece na Inglaterra, Holanda e outros lugares da Europa — onde todas as escolas têm bandas. Assim, se cria um mercado para se ter uma MPB legal. Sem existir o mercado, não há possibilidade de se difundir essa música.
funks de boa qualidade e de péssima qualidade, assim como acontece com a música clássica. Todo e qualquer ritmo criado para o povo é música brasileira. Enquanto não se criar esse mercado de trabalho, não se acabar com essa lacuna entre as camadas sociais, a música não vai atingir a todos. Devemos brigar com o governo e insistir para que aulas de música façam parte do currículo das escolas. No Japão, de cada 3000 violinistas que se formam, somente dez a treze deles se tornam profissionais. Isso demonstra a quantidade de gente que está produzindo e a quantidade maravilhosa de platéia. No Brasil, ao contrário, não produzimos nada. Poucas pessoas entram nas universidades para estudar música. Por quê? Porque não temos aula de música nas escolas.
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