Olho no Olho
23.11.2004
Cotas: democratização ou demagogia?        
Ana Carolina Alves e Bruno Franco

Debater sobre a adoção da política de cotas de acesso à rede pública de ensino superior não é clichê. Sabemos que a polêmica suscitada por essa temática envolve interesses de diversos setores da sociedade. O que talvez não saibamos é que dentro de um mesmo centro da Universidade há divergências gritantes em torno das disparidades sociais. O Instituto de Ciências Biológicas e a Faculdade de Medicina, ambos do Centro de Ciências da Saúde (CCS), apontam divergências entre as respectivas congregações, quando o assunto é a adoção da política de cotas pela UFRJ. O Olhar Virtual foi atrás dessas posições e convidou os professores Orlando Martins e Rubem David Azulay para debater essa questão.

 
     
 

Professor Orlando Martins
Instituto de Ciências Biomédicas (ICB)

“A situação atual das políticas de acesso às universidades públicas é, infelizmente, muito pouco democrática. Primeiramente, devido ao reduzido número de vagas existentes já que o gargalo no acesso traz como conseqüência natural a exclusão de grande parcela da sociedade. Além do mais, a amostra que logra ingressar nas carreiras de maior procura, possui um perfil étnico-sócio-econômico que não corres-ponde ao da população brasileira em geral. Portanto, sou favorável às políticas de cotas como instrumento neutralizante da perversa e injusta tendência da nossa estrutura sócio-cultural. Não acho justo que pessoas tratadas com tamanha desigualdade ao longo da vida tenham que competir em “igualdade de condições” pelo acesso às universidades públicas. A experiência recente do regime de cotas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) nos mostra que a implementação de bolsas de fixação dos cotistas é fundamental. Como a nossa reitoria já previu no orçamento de 2005 um aumento significativo no número de bolsas de monitoria, acho que a adequação destas bolsas aos cotistas não seria uma tarefa muito difícil. A melhoria das bibliotecas (com aquisição de acervo compatível com o número de alunos) e a inauguração do “bandejão” são também medidas de ordem prática muito importantes. Acho importante citar e sugerir a re-edição do POA (Programa de Orientação Acadêmica) implementado no CCS na administração da então decana Nilma Fontanive. Este programa, de inegável sucesso na época, tem como ponto alto a forte participação dos pós-graduandos na complementação tutorial dos alunos, além de permitir a horizontalização do aprendizado. A política de cotas, além de temporária (já que estudos mostram
que ela se corrompe quando prolongada), deve levar em consideração que, em curto prazo (um a dois anos), devemos modificar radicalmente a forma de acesso à Universidade. As soluções se dariam de diversas formas: desde a análise étnico-sócio-econômica dos candidatos, em que se poderia atribuir pontos extras para correção de distorções (medida esta recém aprovada pela UNICAMP, por exemplo) até a criação de uma nota mínima, a partir da qual todos teriam direito ao ingresso na universidade e, desta forma, as vagas poderiam ser preenchidas por sorteio. Considero vivermos um momento histórico. O grande mérito do governo estadual, e agora federal, foi trazer este assunto à tona para discussão da sociedade. A constatação do problema da falta de democracia no acesso às universidades públicas deve vir acompanhada de soluções de curto (cotas) e médio prazo (melhoria nas condições de ensino fundamental e médio). No entanto, não acredito que apenas a melhoria no ensino de primeiro e segundo graus nas escolas públicas gere uma verdadeira inclusão social. É incontestável que, nos anos 60 e 70, tínhamos excelentes escolas publicas, no entanto, isto não era refletido no acesso à universidade pública das classes menos favorecidas. Esta inclusão, contudo, só será efetiva com mudanças profundas nos critérios de seleção para o ingresso nas universidades públicas”.

 
   

Professor Rubem David Azulay
Faculdade de Medicina (FM)

Os movimentos sociais que clamam por ações afirmativas, como a adoção de cotas sociais e/ou raciais, alegam que elas aperfeiçoariam a democracia, na medida em que corrigiriam injustiças históricas. No entanto, a pedra fundamental da construção do Estado democrático é a garantia de direitos iguais para todos. Direitos universais, intrínsecos, irrevogáveis e imprescritíveis. Estabelecer facilidades para grupos sociais específicos, ou seja, não extensíveis a todos, é, em essência, antidemocrático. O indivíduo deve ingressar, no ensino superior federal, por suas aptidões intelectuais, pelos méritos de sua inteligência. Quem fizer por onde, tiver bom desempenho no processo seletivo, entra. Caso contrário, não. O processo seletivo pode não ser o ideal. Talvez não retrate, de forma fidedigna, o histórico e a qualidade dos alunos do Ensino Médio, mas o acesso é justo. É meritocrático. As condições são as mesmas para todos. É claro que as possibilidades são diferentes para alunos de escolas particulares e públicas, de baixo ou elevado poder de consumo, de diferentes padrões culturais. Entretanto, essas distorções não são engendradas pelo ensino superior, portanto, não cabe à Universidade corrigi-las. Este é um problema afeto à incipiente gestão de investimentos públicos no Brasil, principalmente no que tange à Saúde e à Educação. Este é o principal argumento que desautoriza a adoção de cotas, como política de acesso. Há outras questões, evidentemente. Os alunos cotistas teriam necessidades extras, que não poderiam deixar de ser atendidas, tais como bolsas e bandejão. Os alunos, com reais dificuldades financeiras, precisam minimizar seus gastos e conciliar trabalho com estudo. A abertura de cursos noturnos atenderia a esta demanda com mais eficiência do que a criação de uma rede de benefícios em um curso de tempo integral. Haveria, também, um impacto negativo na excelência acadêmica, ao admitirem-se alunos de desempenho inferior, e isto foi abordado nos colegiados. Esta abordagem de ação afirmativa beneficiaria alguns afortunados em um universo amplo. Seria um paliativo, e não uma solução estruturante. Mas, é cômodo buscar corrigir, na Universidade, no topo, uma fratura no tecido social, que demanda muitos esforços na base, nos ensinos fundamental e médio. Ignoram-se as causas, em prol das conseqüências, e, pior, desvirtua-se o sentido do que é o direito democrático, e o respeito ao mérito.

     



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