"A
melhoria das condições sanitárias e de saúde
e da produção agrícola na Europa, no início
dos tempos modernos, permitiu uma mudança na percepção
dos atores sociais sobre a própria organização
social.
A sociedade, em sua organização dos aparatos produtivos,
não deveria apenas reproduzir a produção e o aparato
produtivo existentes, mas ampliá-los já que, com a melhoria
das condições de vida, a população e os
desejos cresciam.
As condições ideais para que isto ocorresse passaram a
ser objeto de uma reflexão assistida pelo método cientifico
e esta reflexão passou a ser conhecida como Economia Política.
Desde muito cedo, dois grupos fundamentais apareceram.
Um primeiro que defendia que a forma de organização contemporânea
da produção e distribuição de bens e serviços
(vale dizer, o capitalismo) criaria, desde que se permitisse que funcionasse
livremente, o melhor dos mundos possíveis. Mais que isto, esta
forma de organização era o ápice de um longo processo
de desenvolvimento da história humana e seria a forma “natural”
e “definitiva” de sociedade humana.
Para o outro grupo, ainda que o capitalismo demonstrasse uma enorme
flexibilidade e capacidade de expansão, ele também teria
um alto grau de instabilidade e injustiça, sendo, portanto, necessária
para uns, sua substituição por novas formas de organização
social (o “socialismo”) e, para outros, a intervenção
da ação consciente da razão humana com vistas a
correção de suas distorções.
Desde o início o primeiro grupo foi hegemônico, particularmente
no século XIX, quando parecia visível a quase todos os
benefícios do sistema em sua forma mais liberal. As duas Guerras
Mundiais e as sucessivas crises econômicas ocorridas entre ambas
levou a um colapso do sistema de crenças subjacente ao primeiro
grupo e a aceitação quase universal da idéia da
necessidade de controle da economia por parte do estado.
A partir do fim da Segunda Guerra as divergências pareciam se
resumir ao grau de controle e da extensão da intervenção,
uns querendo avançar mais até a construção
do socialismo e outros querendo subscrever a intervenção
aos momentos de maior instabilidade.
Em paises como o Brasil, consolidou-se a crença de que o estado
teria ainda a função de reduzir o gap econômico
entre nossos países e os mais desenvolvidos e, para isto, deveria
participar da produção de vários bens e do aparato
produtivo necessário para a redução das diferenças.
No caso especifico da América Latina (e, em particular, o Brasil)
acreditou-se que a estratégia ideal de redução
do gap seria via substituição de importações.
A crise deste padrão de desenvolvimento coincidiu com a crise
da opção socialista, que se espalhava por quase dois terços
do continente euro-asiático, e com a crise do padrão de
intervenção do estado conhecida como estado do bem-estar
social.
A natureza da crise e a inexistência de opções no
campo daqueles que acreditavam que o mercado não era um regulador
ótimo e natural fizeram com que o discurso subjacente ao primeiro
grupo hegemonizasse o debate econômico e social numa extensão
até então desconhecida.
Nos paises desenvolvidos e nos paises em desenvolvimento da Ásia
Oriental esta predominância do discurso liberal não conduziu
a um processo de liberalização interna e externa extremado,
nem muito menos ao desmonte do estado nacional e de sua capacidade de
governança. No caso dos paises latino-americanos, tal fato ocorreu.
Procedeu-se ao desmantelamento dos estados e das estruturas produtivas
industriais que tinham sido montadas sob a proteção das
políticas de substituição de importações
sob a tutela de organismos internacionais encharcados da visão
liberal de organização social da produção
a que aludimos anteriormente.
Este desmantelamento adquiriu a forma de políticas concretas
que, ao serem aplicadas agravaram, ao invés de mitigar a crise
do modelo de substituição de importações.
Resumidamente, a visão era de que apenas o mercado garantiria
o crescimento econômico de longo-prazo. O crescimento, em paises
subdesenvolvidos, com carência de capitais deveria vir do exterior,
através dos capitais e da demanda de agentes econômicos
que teriam várias outras opções de investimento,
algumas menos lucrativas, mas mais seguras e outras menos seguras e
mais lucrativas. Caberia ao estado brasileiro desenvolver políticas
amistosas que incluíssem pontos como livre circulação
de capitais, baixas taxas de inflação (regras e preços
estáveis) e taxas de juros altas.
Este tipo de política somada a absorção nos anos
oitenta de boa parte da dívida privada pelo estado levou a um
elevado grau de endividamento. Para fazer frente a este endividamento,
o estado passou a perseguir políticas de redução
de gastos e aumento de receitas.
Dada a correlação de forças políticas na
sociedade brasileira e ao alto grau de informalidade, uma parcela importante
dos tributos incidiu sobre os assalariados aguçando a percepção
de um estado ineficiente e voraz. Assim, noticias como o aumento sazonal
de carga tributária, mero efeito da incidência temporalmente
concentrada dos tributos chega a mídia com ares de escândalo.
Escandalosas são as taxas de juros e a parcela dos rentistas
na renda nacional. Escandalosa também é a ausência
de preocupação com o crescimento num país com renda
tão concentrada e com os bolsões de pobreza como o nosso.
Passemos a nos preocupar mais a destruição de empregos,
com a expansão do número de pessoas que deixam o Brasil
quando recebíamos imigrantes, com a queda da produção,
da renda e do consumo, com o atraso tecnológico, com a destruição
e desnacionalização das industrias. Estes são os
nossos problemas."