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Que o Sistema Único
de Saúde, o SUS, está em estado de calamidade pública,
não é novidade para ninguém. Ao longo tempo, a saúde
pública no Brasil vem sendo vítima de políticas,
que, diga-se de passagem, mais a desfavorece do que a beneficia. Visando
discutir o assunto, a equipe do Olhar Virtual perguntou
a professora Ligia Bahia, da Faculdade de Medicina, se o reajuste na tabela
de procedimentos do SUS, que injetaria no setor, caso fosse liberado,
cerca de R$ 400 milhões, contribuirá ou não para
a melhoria do Sistema Único de Saúde? E quais ações
devem ser tomadas para que o sistema não sucumba?
Ligia Bahia
Professora da Faculdade de Medicina da UFRJ
As demandas e pressões
pelos aumentos lineares das tabelas de remuneração de
procedimentos constituem focos de tensão permanentes entre o
governo e os prestadores de serviços, especialmente as associações
de hospitais particulares e privados, desde o regime militar. O debate
sobre quais seriam os valores de remuneração mais adequados
integra a agenda do Poder Legislativo, dos tribunais e as polêmicas
cotidianas dos profissionais de saúde. Atribui-se aos baixos
valores de remuneração da “Tabela SUS” a responsabilidade
pela situação precária da rede de serviços
públicos, filantrópicos e privados conveniados com o Ministério
da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde.
À primeira vista, as disputas entre os prestadores de serviços
(proprietários e administradores de hospitais) e os compradores
(Governo) são encaradas apenas como uma contraposição
entre aqueles, que com toda razão, reivindicam mais recursos
para a saúde e uma burocracia insensível aos problemas
do atendimento médico. Essa tese adquire estatuto de verdade
quando se observa o estado de deterioração de alguns dos
hospitais brasileiros e são apresentadas as cifras de suas dívidas
contraídas junto a fornecedores de equipamentos, próteses,
medicamentos etc. O aumento linear dos valores de remuneração
dos procedimentos realizados daria fôlego para que os combalidos
hospitais enfrentassem seus problemas financeiros. Sob uma lógica,
eminentemente contábil, tratar-se-ia, simplesmente de encontrar
e adotar valores “justos” para pagar os prestadores de serviços
de saúde.
No entanto, qualquer reflexão sobre saúde e sistemas de
saúde requer o exame de múltiplas dimensões envolvidas
com os processos de adoecimento e a organização de redes
de atenção e cuidados. Considerar o processo saúde
e doença reduzido aos problemas que requerem hospitalização
e o SUS como um mero convênio, e não como o projeto de
sistema de saúde que os brasileiros aprovaram na Constituição
de 1988, revigora as teses sobre as similitudes da saúde a qualquer
outro mercado.
Alternativamente, as concepções sobre as relações
entre a saúde e seus determinantes fatores econômicos,
sociais e biológicos acompanham-se das tentativas de implantação
de sistemas de saúde baseados em valores de universalidade, integralidade
e equidade do acesso. Nesse sentido, as preocupações dos
formuladores das políticas de saúde se atêm ao QUANTO
está sendo gasto ou deveria ser gasto e também ao COMO
e ONDE os recursos estão sendo aplicados.
A instituição de tabelas de remuneração,
baseadas na produção de procedimentos médico-hospitalares,
adotada no Brasil, desde os Institutos de Aposentaria e Pensões
nos anos 30 a 60, reeditadas nacionalmente pelo regime militar e preservadas
até os dias de hoje, são uma expressão inequívoca
da opção pela importação de relações
mercantis de compra e venda de serviços para a saúde.
Em diversos países, o denominado “produtivismo” foi
substituído pela adoção de modelos de pagamento
prospectivos, ajustados ao alcance de metas de saúde.
No Brasil, a agudização de problemas crônicos, no
contexto de não prioridade para a saúde, nos impõe
um duplo desafio. Não temos dúvidas sobre a necessidade
de continuar defendendo a ampliação dos gastos públicos
com saúde. No entanto, a formulação e a implementação
de modelos de remuneração mais sensíveis às
necessidades de saúde e ao controle da alocação
dos gastos são requerimentos obrigatórios à expansão
de coberturas e melhoria da qualidade dos serviços de saúde.
Os contratos de gestão estabelecidos entre os hospitais e as
instituições responsáveis pela saúde nas
três esferas de governo representam uma tentativa de articulação
de uma rede de serviços, integrada por prestadores de serviços
responsáveis pelo cumprimento de metas sanitárias. Essas
iniciativas ainda embrionárias devem ser saudadas e ampliadas.
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