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presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, negou um pedido
dos advogados de Renilda para que ela faltasse ao depoimento. Ela teve
que comparecer à CPI, não pôde se negar a responder
e não esteve livre da possibilidade de ser presa. Foi garantido,
porém, o direito de mentir.
Jobim observou que, pelo Código Penal, testemunhas não podem
ser liberadas da obrigação de depor, mas sendo casada com
um dos investigados, não é obrigada a dizer a verdade.
Esse respaldo jurídico fez surgir uma série de questões
que colocam em dúvida a confiabilidade de sua fala. Como confiar
em sua veracidade? A possibilidade de existirem deturpações
em seu depoimento não inviabiliza as investigações?
Por que o Código Penal permite que, em alguns casos, as testemunhas
mintam? Como o cidadão comum entende essa licença para mentir?
O Olhar Virtual convidou os professores José Ribas
Vieira, da Faculdade de Direito, e Manuel Sanches, do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, para discutir sobre esta polêmica. |
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José
Ribas Vieira
professor de Teoria do Estado da Faculdade de Direito
"O debate estimulado pelo Olhar Virtual
no sentido de que, de alguma forma, a Universidade contribua para
refletir criticamente a respeito do papel das CPIs numa perspectiva
política e jurídica é bastante importante.
Tal importância se destaca diante da grave falta de ética
que atinge, sem distinções, todos os denominados
poderes da República (incluindo o Judiciário). Assim,
cabe à Universidade como espaço público da
sociedade civil contribuir para recompor a noção
de cidadania como virtude cívica entre nós.
É nesse ponto que devemos começar a nossa reflexão.
Hoje, a teoria política apresenta como uma das grandes
vertentes de compreensão do universo social a concepção
do resgate do republicanismo. O republicanismo é entendido
por nós como uma atuação política
na qual a referida virtude cívica, em última análise,
prevalecerá. A indagação que nós fazemos
é se as CPIs previstas no artigo 58 § 3° da Constituição
Federal de 1988 estão, realmente, instrumentalizando essa
noção republicana do que é nossa sociedade
civil.
As nossas CPIs têm inspiração norte americana,
como materialização de algo tão sagrado ao
espírito americano, através de institutos como "herarings"
(para aprovar nomeações para cargos da administração
pública norte-americana) ou "amicus curiae",
em relação à presença da sociedade
civil em questões discutidas na Corte Suprema Americana.
Por conseqüência, a influência norte americana
relacionada às nossas CPIs é essencialmente republicana.
É na Constituição Federal de 1946 que introduzimos
a presença das CPIs como mecanismo investigativo com poderes
de autoridades judiciais. As CPIs no Brasil sempre foram marcadas
pelo grande impacto social que causam. Vale lembrar, por exemplo,
a famosa CPI sobre o jornal Ultima Hora, a respeito de financiamentos
públicos para Samuel Wainer, em 1953, que traria, entre
outras conseqüências, a crise de agosto de 1954, com
o suicídio de Vargas.
Mas é nos anos 90 do século passado que as CPIs
ganham enorme vulto entre nós. Entretanto, para mim, há
um ponto de inflexão. Ela ocorreu a partir do caso Cidam,
ou melhor, no depoimento do então presidente do Banco Central
Francisco Lucas Lopes que, instruído pelo seu advogado,
recusa-se a prestar esclarecimento em nome de uma garantia constitucional
do "direito ao silêncio". Essa inflexão
representa, na verdade, um processo constante daqueles referidos
anos 90 de uma interferência do STF em assuntos do Congresso
Nacional. Apesar do STF ser cioso em suas jurisprudência
do respeito ao princípio da separação de
poderes, ele tem interferido no poder investigativo do Congresso
Nacional.
Quem não se lembra, recentemente, da liminar concedida
pelo Ministro Pelúcio vedando a transmissão pública
do "empresário" chinês vinculado a contrabandos
no Congresso Nacional? Assim, no caso das CPIs, é relevante
destacar o fato de que o STF, em nome de garantias constitucionais,
contribui para o esvaziamento do papel das CPIs. Uma indagação
que pode ocorrer: Mas essas garantias constitucionais não
são importantes? Sim, são, mas vale lembrar que,
no caso dos Estados Unidos, por exemplo, o direito ao silêncio,
foi uma conquista longa da sociedade americana. Somente nos anos
60 do século XX, no famoso caso Miranda (o do bafômetro),
ficou consagrado o princípio da não auto-incriminação.
O que ocorre no Brasil? Esses direitos entre nós não
são resultados de "uma conquista" ou de um certo
amadurecimento republicano da sociedade brasileira. Quando o STF
assegura uma garantia como o direito do silêncio, não
há, na verdade, uma ponderação no sentido
se interessa à maioria da nossa sociedade assegurar essa
garantia. O mesmo ocorre com o debate do "habeas corpus"
preventivo. Vejam que, no primeiro momento, o STF foi bastante
flexível concedendo "habeas corpus" preventivo
para a turma Delúbio, Silvinho & Valério. Creio
que notando uma certa reação da sociedade civil
brasileira no caso da Renilda, houve uma dubiedade por parte do
Ministro Jobim na sua liminar e que ficou mais esclarecida no
segundo despacho, diante da reiteração do pedido
por parte do advogado da Renilda.
O resultado prático de todo esse processo, advindo desde
o mencionado caso do direito ao silêncio de Francisco Lucas
Lopes, é o esvaziamento das CPIs. Acredito, também,
que diante do menor grau informativo dos depoimentos e da perda
da espontaneidade dos esclarecimentos, o que ocorre é o
crescimento da espetaculação. Essa espetaculação
e agressividade presentes nas CPIs, penso, seriam uma forma de
compensar o perfil das nossas CPIs de hoje. Outro ponto importante,
também, que não podemos esquecer, é o fato
da sofisticação do crime organizado. Por exemplo,
a Renilda, segundo o STF, na discussão de seu "habeas
corpus" preventivo, compareceria como mulher de Marcos Valério.
Assim, ela estaria depondo como testemunha.
A CPI dos Correios acabou no dia do depoimento da Renilda, gastando
parte de seus trabalhos discutindo a natureza jurídica
da presença da Renilda. Em síntese, o que foi importante
destacar nesse debate promovido pelo Olhar Virtual a respeito
da "Licença para mentir" está no fato
de que o jurídico tem contribuído sim pelo seu formalismo
(e não por efetiva garantia constitucional de direitos
individuais conquistados pela sociedade brasileira) para esvaziar
o possível papel republicando de nossas CPIs."
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Manuel
Sanches
professor de Ciência Política do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais
"O
fato de a senhora Renilda poder mentir não é um
grande problema, nem para a CPI nem para o cidadão comum.
Ninguém é obrigado a dizer alguma coisa que lhe
incrimine quando está sendo investigado. Compete a quem
investiga descobrir os indícios de culpa e explorar as
contradições de quem responde às perguntas
do investigador, neste caso a CPI. Mas, por outro lado, ela não
pode se negar a responder a nenhuma questão. Assim, se
bem interrogada, ela poderá cair em contradição
e a CPI extrairá daí indícios para chegar
à verdade.
Isto a população sabe, porque é o que acontece
com qualquer cidadão que pode vir a ser submetido a um
interrogatório. A rigor, as pessoas não recebem
uma licença para mentir, e o fato delas mentirem não
é um impedimento para que se chegue às contradições
e, eventualmente, à verdade. Somente na condição
de testemunhas é que as pessoas são obrigadas a
dizer a verdade porque, neste caso, o seu depoimento estará
afetando a terceiros, podendo condenar inocentes ou absolver culpados.
Mas na condição de investigadas, as pessoas não
podem ser obrigadas a se auto-incriminarem.
A população também sabe que a mentira é,
em geral, um expediente dos criminosos. Mas conta com a capacidade
daqueles que estão à procura da verdade, que pretendem
colocar quem mente em cheque. O que a senhora Renilda disse em
seu depoimento será comparado a outros depoimentos e aos
fatos. Se ela mentiu, sobre ela mesma ou sobre os outros, será
responsabilizada. É isto que o cidadão comum espera
da CPI."
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