Ponto de Vista

 
01.06.2004  
   

CHINA: uma escolha estratégica

A República Popular da China assombra todas as imaginações possíveis. Qualquer cifra que se referia ao país eleva-se a dimensões gigantescas, muito particularmente quando se trata de seu desenvolvimento econômico recente. Tal gigantismo atrai especialmente os empresários e investidores, ávidos por negócios “da China”. Mesmos os empresários brasileiros buscam na China uma fatia da lucratividade muitas vezes negada nos mercados super-protegidos do Japão, Estados Unidos e União Européia. Ora, este eldorado de bons negócios tem, paradoxalmente, um aspecto fortemente enganador para nós brasileiros: a idéia de que a China Popular é um grande negócio. Para os brasileiros, e creio ser esse o âmago da nova política externa brasileira, a China não é – apenas – um grande negócio: a China é uma escolha estratégica.
O que entendemos como uma escolha estratégica? Na verdade, depois de 1991, com a queda da União Soviética, o mundo tornou-se perigosamente unipolar, com os Estados Unidos exercendo abertamente seu poderio mundial. A União Européia e o Japão, as forças econômicas e políticas mais próximas (e mesmo assim, bem atrás do gigante do norte), mostraram-se incapazes de transformar poder econômico e tecnologia em ação política. Ao longo das Administrações Bush (pai) e Clinton, os Estados Unidos puderam exercer, até 2001, um inequívoco poder de policiamento do mundo (crises no Oriente Médio, na ex-Iugoslávia; na África, etc...). Tratava-se da expansão da chamada Nova Ordem Mundial, marcada pela manutenção das formas liberais de representação política e de comércio mundial, além da expansão da cultura americana via meios on-line. Mesmo sendo uma hiper-potência os Estados Unidos procuraram, com Al Gore enquanto ideólogo, criar uma rede de tratados e acordos que deveriam agir como suporte jurídico para esta nova ordem mundial: Protocolo de Kyoto, Tribunal Penal Internacional, expansão da OMC, protagonismo da ONU, etc...
Contudo, após 2001, como o novo Bush na Casa Branca, e a irrupção, agora maciça, do novo terrorismo internacional, todo este arcabouço foi abandonado, e os Estados Unidos não hesitaram em agir sozinhos, ou com aliados de ultima hora, para atingir seus objetivos, não recuando diante de nenhum meio para atingir os fins determinados. Em pouco tempo o mundo se tornou um lugar inseguro e agressivo, numa espetacular reversão das expectativas pós-Guerra Fria.
É neste contexto que a China se avoluma enquanto uma escolha estratégica. Para um país como o Brasil – cujas cifras também o colocam na lista dos dez maiores – um mundo unipolar – com a concentração política e econômica em uma só potência – é imensamente perigoso. A escolha da China como parceiro estratégico visa, exatamente, descongestionar a agenda internacional, abrir novos caminhos, alargar o diálogo internacional.
A China possui as condições necessárias para tornar o dialogo internacional múltiplo, seja através da ampliação do comércio mundial, seja através de uma postura política anti-hegemonismos no cenário mundial. Depois de 1976, com a ascensão de Deng Xiaoping ao poder, eliminando o chamado Bando dos Quatro – os herdeiros políticos de Mao – a China iniciou um fantástico programa de reformas econômicas, as chamadas Quatro Grandes Modernizações (da industria, da agricultura, da ciência e tecnologia e das forças armadas), culminando em índices constantes de crescimento econômico, superiores a 8% ao ano. Passados os terríveis acontecimentos da Praça da Paz celestial, a partir de 1989, fica claro que a China não seguiria o mesmo caminho dos seus parceiros comunistas da Europa, inclusive a própria URSS. Observando e estudando com detalhismo as experiências da Glasnot e da Perestroika, a elite do Partido Comunista chinês opta por uma resposta diferenciada: ampliar as reformas econômicas, introduzir mecanismos de mercado na economia, visando claramente a ampliação do bem-estar social, e, ao mesmo tempo, mantendo o papel dirigente do partido, agora ampliado para abrigar empresários e inovadores em geral. A China vencia assim o risco da decomposição política. A partir de então, pode-se ver com clareza que o país tornar-se-ia uma potência da ordem. Não se trata mais de um país envolvido na propaganda e na expansão do marxismo/maoísmo dos anos ´60 e ´70 do século XX, mas uma China interessada na manutenção da ordem e do crescimento mundial, uma potência estabilizadora nas relações internacionais.
Aos poucos, porém com grande firmeza, a China caminha para a substituição do marxismo – sem abdicar de seus símbolos externos mais notórios – pelo nacionalismo progressista enquanto ideologia nacional. E aí reside um ponto que é extremamente sensível para os chineses e para o qual, nós brasileiros, devemos atentar.
A China – única potência do mundo com continuidade histórica da antiguidade aos nossos dias – foi um país humilhado e ocupado por invasores ocidentais (e o Japão) desde da ignominiosa Guerra do Ópio (1839-1842), que motivou o início da ocupação de seu território. Assim, as elites dirigentes depois de 1949 – vitória da Revolução Comunista – colocaram para si mesmas a tarefa de recuperar a dignidade nacional. Este processo passa pela reunificação do país no seu contorno histórico do apogeu do Império: a incorporação do Xinjiang (antigo Turquemenistao chinês) e do Tibet; o retorno de Macau e Hong-Kong e a reunificação de Formosa (Taiwan). Os primeiros objetivos foram realizados: o Xinjiang e Tibet são chineses hoje e Macau e Hong-Kong foram devolvidos ao país. Contudo, permanece uma forte campanha mundial – centrada nos Estados Unidos – pela independência do Tibet, o que desagrada largamente Beijing. Mais grave ainda é a situação de Formosa, oficialmente uma província rebelde da China. Ora, os Estados Unidos, e em menor escala a França, armam e sustentam a ilha de Taiwan, criando, para os chineses, uma zona de crise e impedindo que o grande objetivo nacional – a reunificação – ocorra. Assim, para a China a reunificação, com o reconhecimento do Tibet e de Formosa, como províncias da China, é um objetivo nacional permanente. Vários países do mundo, inclusive no âmbito do Mercosul – é o caso do Paraguai – reconhecem Formosa como país juridicamente independente, o que faz todo o relacionamento bilateral refém de tal posição.
Para além de um grande negócio, a China é uma parceria estratégica fundamental para o Brasil. Ao lado de outros países, como a Índia, África do Sul, U. E. e claro, do Mercosul, os bons entendimentos com os chineses garantem uma margem de manobra crescente para o Brasil em suas relações internacionais, seja no âmbito comercial, seja no âmbito político. Ampliando nossas relações com os países emergentes, o Brasil pode responder ao desafio desinformado de Robert Zoellick, o chefe do escritório de comércio americano, que afirmou que fora da Alca iríamos comerciar só com os pingüins... Ok, teríamos então os pingüins, os chineses, os indianos, os europeus, os africanos....


Francisco Carlos Teixeira Da Silva
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea
Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ

 

 

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