Olho no Olho

 
06.04.2004  
   

Os dois extremos

Ficção e realidade. Quem nunca se identificou com um personagem de novela ou nunca viveu situações que pareciam cinematográficas? Ou viu retratado na ficção, um fato real? É inegável o poder que os media têm quando extraem fatos da realidade e os adapta para a ficção. Há constantemente uma troca entre esses dois extremos, mas não se pode esquecer que o conceito de realidade e ficção é muito relativo, pois obedece à interpretações diversas.
Na edição de hoje conversamos com Ivana Bentes, professora de cinema e comunicação da Eco, e com Ilana Strozenberg, socióloga, mestre em Antropologia e Doutora em Comunicação, sobre os apectos que envolvem realidade e ficção.

 
 

Ilana Strozenberg

Não há como tratar da questão sem remeter a uma outra, implícita, que fundamenta esse debate: em que medida é possível distinguir e opor ficção e realidade? A que tipo de experiência, a que tipo de processo de conhecimento uma e outra estão referidas?
Embora, na tradição dominante no pensamento ocidental moderno, realidade e ficção sejam pensadas numa relação dicotômica, opondo-se como a verdade à ilusão, hoje, o pressuposto de vivemos imersos num universo de significados social-mente construídos e legitima-dos já é lugar comum nas teorias da cultura. Nessa perspectiva, não há verdade que não seja contextual-mente convencionada, como não há narrativa que não seja interpretação. Entre ficção e realidade, portanto, já não se aponta uma diferença de natureza ontológica – como a que opõe verdade à ilusão - e sim de modalidades de produção e apro-priação dos significados culturais. Num polo, encontram-se sinteti-zados em expressões discursivas – impressas, orais ou audiovisuais -; no outro, manifestam-se através dos fluxos de comportamento, isto é, da prática coletiva e individual. Assim, todo filme, novela, romance, poesia, canção, ou qualquer outras formas de expressão cultural – classifica-das como arte ou “desclassificadas” como cultura de massa ou popular – são elaborações de aspectos da realidade. O modo como entram no circuito do comportamento e das trocas sociais – transformando-se ou não em “modismos” – irá depen-der da dinâmica do diálogo entre os valores e significados nelas presen-tes e os que informam o universo simbólico do público receptor.
No caso de produtos bem sucedidos da indústria cultural, como as nove-las, pode-se dizer que eles dão uma forma clara, coerente e para-digmática a determinadas represe-ntações e dilemas que já circulavam antes, de forma difusa, em amplos setores da sociedade. Fica mais fácil refletir sobre a competição, a ganância, o amor, o sucesso, a traição, a justiça, a inveja, quando ficam visíveis na tela. E tudo fica ainda mais emocionante e existen-cialmente impactante quando se tem o sentimento de compartilhar esse diálogo, com milhões de outros telespectadores, envolvidos simultânea e momentaneamente nessa vivência ao mesmo tempo tão pública e tão íntima.

 
 

Ivana Bentes

Se formos pensar a noção de "imaginário social" vamos constatar que nosso conceito de real já é totalmente marcado pela ficção. Não existem fatos, mas interpretações e versões, o que significa que há sempre uma "ficção do real" sendo construída por nós. Acho isso positivo, a ficção nos ensina a pensar sobre a história, sobre a construção da história e mostra que o que consideramos "realidade" é uma construção cultural. No caso do cinema, hoje, e do audiovisual, podemos dizer que o cinema concorre com os historiadores, para o bem e para o mal.
Fico pensando nas novas gerações, vendo uma minisérie como A Casa das Sete Mulheres, em torno da Guerra dos Farrapos, talvez para um jovem que não conhece a história a fundo, Garibaldi vai se reduzir a psicologia do personagem encarnado por Tiago Lacerda! E Anita Garibaldi vai virar a mocinha Giovana Antonella. O que não deixa de ser redutor e empobrecedor. Ao mesmo tempo, um filme de ficção brasileiro como Terra em Transe, de Glauber Rocha, de 1967, hoje parece um documentário sobre o mundo em crise dos intelectuais brasileiros depois do Golpe de 1964.
Em relação ao filme A Paixão de Cristo, ele concorre com outra versões, outros filmes e com uma ficção poderosa, que é o texto bíblico, considerados por muitos historiadores não como fato, mas como uma das mais poderosas ficções da cultura ocidental. Ou seja, hoje podemos falar que a realidade é uma "ficção" que se universalizou e virou "fato" e que o cinema e a televisão são lugares poderosos de construção de real
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