Os
dois extremos
Ficção
e realidade. Quem nunca se identificou com um personagem de novela
ou nunca viveu situações que pareciam cinematográficas?
Ou viu retratado na ficção, um fato real? É
inegável o poder que os media têm quando extraem fatos
da realidade e os adapta para a ficção. Há
constantemente uma troca entre esses dois extremos, mas não
se pode esquecer que o conceito de realidade e ficção
é muito relativo, pois obedece à interpretações
diversas.
Na edição de hoje conversamos com Ivana Bentes, professora
de cinema e comunicação da Eco, e com Ilana Strozenberg,
socióloga, mestre em Antropologia e Doutora em Comunicação,
sobre os apectos que envolvem realidade e ficção.
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Ilana Strozenberg
Não
há como tratar da questão sem remeter a uma
outra, implícita, que fundamenta esse debate: em
que medida é possível distinguir e opor ficção
e realidade? A que tipo de experiência, a que tipo
de processo de conhecimento uma e outra estão referidas?
Embora, na tradição dominante no pensamento
ocidental moderno, realidade e ficção sejam
pensadas numa relação dicotômica, opondo-se
como a verdade à ilusão, hoje, o pressuposto
de vivemos imersos num universo de significados social-mente
construídos e legitima-dos já é lugar
comum nas teorias da cultura. Nessa perspectiva, não
há verdade que não seja contextual-mente convencionada,
como não há narrativa que não seja
interpretação. Entre ficção
e realidade, portanto, já não se aponta uma
diferença de natureza ontológica – como
a que opõe verdade à ilusão - e sim
de modalidades de produção e apro-priação
dos significados culturais. Num polo, encontram-se sinteti-zados
em expressões discursivas – impressas, orais
ou audiovisuais -; no outro, manifestam-se através
dos fluxos de comportamento, isto é, da prática
coletiva e individual. Assim, todo filme, novela, romance,
poesia, canção, ou qualquer outras formas
de expressão cultural – classifica-das como
arte ou “desclassificadas” como cultura de massa
ou popular – são elaborações
de aspectos da realidade. O modo como entram no circuito
do comportamento e das trocas sociais – transformando-se
ou não em “modismos” – irá
depen-der da dinâmica do diálogo entre os valores
e significados nelas presen-tes e os que informam o universo
simbólico do público receptor.
No caso de produtos bem sucedidos da indústria cultural,
como as nove-las, pode-se dizer que eles dão uma
forma clara, coerente e para-digmática a determinadas
represe-ntações e dilemas que já circulavam
antes, de forma difusa, em amplos setores da sociedade.
Fica mais fácil refletir sobre a competição,
a ganância, o amor, o sucesso, a traição,
a justiça, a inveja, quando ficam visíveis
na tela. E tudo fica ainda mais emocionante e existen-cialmente
impactante quando se tem o sentimento de compartilhar esse
diálogo, com milhões de outros telespectadores,
envolvidos simultânea e momentaneamente nessa vivência
ao mesmo tempo tão pública e tão íntima.
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Ivana
Bentes
Se
formos pensar a noção de "imaginário
social" vamos constatar que nosso conceito de real
já é totalmente marcado pela ficção.
Não existem fatos, mas interpretações
e versões, o que significa que há sempre
uma "ficção do real" sendo construída
por nós. Acho isso positivo, a ficção
nos ensina a pensar sobre a história, sobre a construção
da história e mostra que o que consideramos "realidade"
é uma construção cultural. No caso
do cinema, hoje, e do audiovisual, podemos dizer que o
cinema concorre com os historiadores, para o bem e para
o mal.
Fico pensando nas novas gerações, vendo
uma minisérie como A Casa das Sete Mulheres, em
torno da Guerra dos Farrapos, talvez para um jovem que
não conhece a história a fundo, Garibaldi
vai se reduzir a psicologia do personagem encarnado por
Tiago Lacerda! E Anita Garibaldi vai virar a mocinha Giovana
Antonella. O que não deixa de ser redutor e empobrecedor.
Ao mesmo tempo, um filme de ficção brasileiro
como Terra em Transe, de Glauber Rocha, de 1967, hoje
parece um documentário sobre o mundo em crise dos
intelectuais brasileiros depois do Golpe de 1964.
Em relação ao filme A Paixão de Cristo,
ele concorre com outra versões, outros filmes e
com uma ficção poderosa, que é o
texto bíblico, considerados por muitos historiadores
não como fato, mas como uma das mais poderosas
ficções da cultura ocidental. Ou seja, hoje
podemos falar que a realidade é uma "ficção"
que se universalizou e virou "fato" e que o
cinema e a televisão são lugares poderosos
de construção de real.
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