Entrelinhas

O elemento feminino na tragédia grega

 

Daniela Magioli

Divulgação

 Susana de Castro, professora da UFRJ e filósofa, lança o livro As mulheres das tragédias gregas: poderosas?. A obra, que faz parte da coleção Filosofia em Pílulas, destaca a oposição entre a valorização do silêncio feminino na sociedade grega e a importância dada à voz feminina nas tragédias.  O texto, rico em informações históricas e mitológicas, traz ao leitor diversos questionamentos sobre o papel feminino na construção do pensamento antigo. Para aprofundar, o Olhar Virtual ouviu considerações da autora sobre o tema.

Olhar Virtual: De onde surgiu o interesse pela tragédia grega e, especificamente, pela temática feminina na obra?

Susana de Castro: Surgiu no terceiro ano do projeto de Iniciação Artística e Cultural que coordenei na Faculdade de Educação, intitulado “Educação ética e moral através do teatro”. No primeiro ano, traçamos as linhas gerais que apontavam para os elementos morais e éticos presentes nas tragédias gregas. No segundo ano, procuramos aproximar a análise dos pressupostos éticos dramáticos da estética pragmatista. No terceiro ano do projeto, optamos por verificar se haveria algum paralelo entre as representações sociais de gênero presentes nas tragédias antigas e as da sociedade brasileira atual. Além disso, também fui instigada pelo tema pelos cursos que ministrei no Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ sobre o papel das mulheres nas tragédias gregas e sobre a interpretação e recepção das peças durante o romantismo alemão.

A indagação acerca do protagonismo feminino nas tragédias salta naturalmente aos olhos de qualquer um que se dedique ao tema. Entre todas as tragédias que chegaram inteiras aos nossos dias, só uma não possui personagem feminino: Filoctetes, de Sófocles. Em todas as outras, não só há uma personagem feminina, como grande parte das peças leva o nome da figura trágica feminina principal, como Antígona, Medéia, Electra, Hécuba, entre outras. Deve-se salientar, entretanto, que se hoje esse protagonismo salta naturalmente aos nossos olhos, durante muito tempo essa questão não se configurava como um tema relevante entre os estudiosos do assunto.

Olhar Virtual: Como foi sua metodologia de pesquisa para compreender a mentalidade por trás dos costumes da época? Resumidamente, quais os principais aspectos que percebeu?

Susana de Castro: Uma investigação dessa natureza só pode ser feita mediante revisão bibliográfica, isto é, mediante levantamento e leitura da literatura primária e secundária sobre o tema. Em diversas passagens da República e das Leis, Platão censura o poema dramático por sua feminilidade, por expor heróis “imitando” as mulheres, ou seja, sofrendo e lamentando. Lembremos que Dionísio, o deus do teatro, era uma figura andrógena. Como mostra Eurípedes nas Bacantes (peça central para o estudo do feminino na tragédia), Dionísio domina e faz uso das técnicas femininas de sedução e persuasão. Além disso, no espetáculo teatral e metateatral, estão resumidos vários elementos dos que seriam os elementos propriamente femininos dos poemas dramáticos. Dois deles se destacam: a urdidura e o sofrimento.

O homem grego está preso a um código de honra fechado, que determina seu comportamento público e exige sua obediência aos valores cívicos, mas a mulher, não. Por viver sob os códigos mais ”abertos” da vida privada, a mulher grega tem maior conhecimento acerca da complexidade da vida, das relações humanas e das emoções que as perpassam. Outro elemento propriamente feminino do poema dramático é o sofrimento. Contrariamente ao que se passava na vida real, no palco os homens não ocultam sua dor e sofrimento em público. Héracles, Hipólito, Ájax, Jasão, Orestes, Poliméstor, todos sofrem atrozmente na cena dramática.

Olhar Virtual: Como a posição feminina na tragédia refletia a posição feminina na sociedade da época e como ela a afetava?

Susana de Castro: Apesar do protagonismo, as mulheres não deixaram seu papel social subalterno de esposas, mães e filhas. Elas servem em quase todos os dramas como mediadoras da punição divina a uma falta grave do homem. Atuam na trama sob o efeito externo da força divina, o daimon, que as utilizam para aniquilarem o caráter, o ethos, do herói. O sofrimento dos homens é provocado por alguma personagem mulher. Apesar de serem figuras centrais, as histórias contadas não são as das figuras femininas, como Hécuba, Medéia ou Dejanira, mas, sim, as dos heróis Jasão, Ájax e Orestes, por exemplo. As mulheres, deusas e mortais, são, na maioria dos casos, os instrumentos da morte e da loucura dos heróis. Isso demonstra que no imaginário social masculino a mulher é, como no mito de Pandora, a causadora dos males e desgraças dos homens.
Essa representação imaginária reflete a posição social subalterna das mulheres na sociedade grega. A boa esposa e a boa filha eram as que se mantinham isoladas e invisíveis do espaço público, restritas ao espaço doméstico. Obedientes ao pai e ao marido, não deveriam falar mais do que o necessário. Silêncio, invisibilidade e obediência eram, portanto, seus predicados. As mulheres das tragédias, ao contrário, são falantes, desobedientes e visíveis. De uma maneira simplificada, poder-se-ia dizer que por não serem dotadas da prudência que lhes faria obedecer aos seus guardiões (kuriós), agem de modo intempestivo e imoral – segundo a visão aristotélica.

Olhar Virtual: A senhora acredita que a visão que se tinha da mulher na Grécia antiga influencia a posição da mulher contemporânea em nossa sociedade? Se sim, de que forma podemos observar essa influência mais claramente?

Susana de Castro: Em nossa história, a visão filosófica da boa mulher, obediente e silenciosa, se sobrepôs durante muito tempo à visão trágica da mulher, a propiciadora da experiência vital das paixões. O cristianismo perpetuou a primeira visão quando transformou Pandora em Eva e a boa esposa e a boa mãe em santas, o que, na perspectiva cristã, significa mulheres sem desejos ou paixões violentas. Hoje, a situação é diferente. Para ilustrar isso e concluir, cito dois exemplos recentes, a performance de Lady Gaga e a prisão de Dominique Strauss-Kahn.

A performista e cantora Lady Gaga personifica nos seus shows e vídeos a “vadia”, a “puta”, sem culpa de desejar e de ser desejada, justamente oposto da santa. Todos a adoram por isso. Por outro lado, a mensagem que ela está transmitindo não está sendo interpretada por seus fãs como, “somos todas vadias, venham usar nosso corpo”, mas, sim, “uso meu corpo como quero e desejo quem quero desejar”. A primeira interpretação ainda é, infelizmente, corrente, como o triste exemplo da prisão de Dominique Strauss-Kahn por estupro exemplifica, mas, ao contrário de épocas passadas, passível de punição severa.

Editora: Manole
Páginas: 114
Preço médio: 20,00 reais