Entrelinhas

As contradições políticas bolivianas

 

Elisa Ferreira

 

 O livro Autonomias: Bolívia no Tempo Presente inaugurou as dissertações publicadas pela coleção “Tempo Presente Teses & Dissertações”, que pretende publicar três livros em 2011. Para saber um pouco mais sobre esse trabalho que visa a comparar as formas de organizações políticas da Bolívia diante da contemporaneidade, o Olhar Virtual conversou com Daniel Chaves, autor do livro.

Olhar Virtual: Qual foi o objetivo de escrever esse livro?

Daniel Chaves: Em termos práticos, a realização partiu de inquietações sobre vários assuntos: sobre o próprio folclore que ronda por vários estudos latino-americanistas, muito ideológicos, ou ainda míticos, milenaristas, e sobre a própria possibilidade de se fazer uma análise historiográfica sobre um período recente. Ainda existe uma mutação nos matizes e formas de organização dos movimentos políticos sul-americanos contemporâneos que deveria ser colocada em uma narrativa histórica, documentada, mas sem que com isso se perdesse o olhar teórico e a análise política com rigores conceituais.

Olhar Virtual: O que foi a Guerra do Gás e qual foi a importância disso para a Bolívia?

DC: A guerra do gás foi uma disputa entre os movimentos sociais bolivianos e o Estado. Isso gerou conflito que consolidou historicamente as bases do que pode ser entendido como paradigma de movimento, articulação e atuação política nos primeiros idos do século XXI. A importância é total, pois a partir daí podemos entender a ruptura do estado-nação boliviano na direção do futuro pelo qual hoje caminha o estado plurinacional boliviano. 

Olhar Virtual: Qual foi a relevância dessa guerra para América Latina e para o mundo?

DC: Acho que também é importante mencionar que “guerra” é um termo que foi empregado de modo distinto, já que não se configura aqui uma "guerra" com exércitos, armamentos, tropas e afins, mas com população civil organizada e mobilizada. Dessa forma, pode-se dizer que a relevância foi o poder de juntar jovens, adultos, operários, camponeses, entre outros indivíduos da sociedade ―  o que alguns sociólogos chamam de “precariado” ― contra o estado liberal.  

Olhar Virtual: Poderia explicar resumidamente o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz?

DC: O Comitê Pró-Santa Cruz ainda é um grupo de pressão, uma associação civil do departamento de Santa Cruz que age na defesa dos interesses corporativos das suas instituições políticas e econômicas. Isso envolve grupos de bairro, empresariado, políticos. É uma instituição complicada em relação à representatividade, pois o Comitê não elege seus líderes locais através do voto direto da população, mas se arroga o papel da liderança “moral”. É um produto das relações políticas históricas do estado boliviano o qual foi combatido pelos populares na Guerra do Gás; um estado centralizado e fechado. O Comitê foi a última trincheira da oposição liberal que tentou barrar a hegemonia política do governo Morales, mas foi completamente atropelada.

Olhar Virtual: Como se classifica a política boliviana atual?

DC: Hoje, há uma profunda hegemonia do Movimento ao Socialismo, partido do governo (MAS) sobre a política em geral. Com alguma contestação popular e empresarial, mas que não passa disso, pois não há capacidade de renovação, de liderança carismática ou de partido orgânico capaz de reorganizar uma oposição liberal que ruiu. 

Olhar Virtual: Como é vista hoje a questão da nacionalização na Bolívia?

DC: A nacionalização é uma realidade. A afirmação do poder político e econômico nas mãos das comunidades e nacionalidades indígenas já é constitucional. Mas não é uma nacionalização old-fashion, como no século XX. A nacionalização visa imediatamente a redistribuir competências políticas e fazer com que novas classes e grupos sociais sejam alçados ao poder e modelem o poder. Essa é a Bolívia que nós devemos entender como modelo, como paradigma.