Olho no Olho

As obras de Monteiro Lobato são racistas?

 

Márcia Guerra

 

A recente emissão do parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre o clássico Caçadas de Pedrinho, parte das aventuras da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo, escrito por Monteiro Lobato, despertou amplo debate sobre racismo na educação.

O documento aponta trechos do livro que trariam uma abordagem preconceituosa do negro e da cultura africana, alertando, assim, para a necessidade de contextualização da obra nas escolas.

Para Georgina Martins, escritora e servidora técnico-administrativa da Faculdade de Letras da UFRJ (FL-UFRJ), que defende uma concepção de arte pautada pela ética, Caçadas de Pedrinho deve ser "contextualizado e discutido, como orienta o parecer do CNE, porque a questão do preconceito é muito séria". Já Luci Ruas, professora de Literatura Infantil e Juvenil e de Literatura Portuguesa da FL-UFRJ, afirma que "é empobrecedora qualquer leitura que cerceie o direito de o leitor escolher o caminho que mais lhe interessa para a sua leitura”.

Georgina Martins,

funcionária técnica e professora substituta da prática de ensino da Faculdade de Letras da UFRJ

“Em primeiro lugar, preciso deixar bem claro que sou contra a censura à arte, logo não acho que Lobato deva ser banido da escola; no entanto, em relação à orientação do CNE, sobre a necessidade de contextualizar a obra de Lobato junto a professores e alunos, sou inteiramente a favor, sobretudo porque sabemos da formação precária que os professores do ensino fundamental, infelizmente, vêm recebendo até agora. O ideal seria que os professores fossem capazes de discutir a questão da formação étnica do povo brasileiro, que fossem capazes de contextualizar, não só a obra de Lobato, mas a de qualquer outro escritor.

Caçadas de Pedrinho deve mesmo ser contextualizado e discutido, como orienta o parecer do CNE, porque a questão do preconceito é muito séria. Quando o narrador diz que tia Anastácia subiu na árvore igual a uma macaca marrom, ele está sendo preconceituoso e desrespeitoso não só com a personagem, mas com o que ela representa. N’As Histórias da tia Anastácia, por exemplo, a coisa é muito mais séria, pois a Emília a chama de “negra beiçuda e ignorante”, e vai mais longe, dizendo que as histórias que tia Anastácia conta são histórias sem pé nem cabeça, de gente ignorante e sem cultura, que boas mesmo são as histórias europeias.
Isso tudo está lá em Lobato. O que me espanta é que “nunca antes na história desse país” (parodiando o nosso presidente) o racismo de Lobato tenha vindo à tona, como agora. Aliás, Lobato era eugenista, participava de reuniões para discutir essa questão. Ele dedicou seu livro, O Presidente Negro, a Renato Kehl, médico eugenista, autor de Lições de eugenia (1929), conforme nos ensina a professora e pesquisadora Dirce Waltrick do Amarante.

Lobato não é e nem pode ser intocável. Por exemplo: se um artista qualquer resolve pintar um quadro homenageando um torturador da ditadura militar e esse quadro, do ponto de vista da técnica, fica perfeito, isso significa que não podemos criticá-lo? Não podemos discutir o que ele representa? Não devemos aproveitar para falar da história da ditadura nesse país? Pessoalmente, eu acho que um quadro como esse sequer mereceria respeito, mas como educadora, eu serei obrigada a discuti-lo, não posso ignorá-lo. Do ponto de vista da técnica, ele pode até ser perfeito (não é o caso de Lobato, eu acho), mas da ética não é.

Defendo uma estética pautada pela ética e acredito que os artistas devam ser orientados, assim como quaisquer profissionais, pela ética, e, nesse caso, Lobato não foi.
Penso que, se deixarmos de lado uma concepção pautada pela ética, no sentido mais rasteiro e didático do termo, que pode ser traduzido como "não devo fazer com o outro aquilo que não quero que seja feito comigo", corremos o risco (vou dar um exemplo bem exagerado) de aceitar que o artista possa desejar matar uma pessoa em público, numa performance, por exemplo, porque assim ele deseja, e a liberdade de expressão lhe garante esse direito.

Não acho que esses temas fossem poucos discutidos na época de Lobato, sobretudo se pensarmos que Castro Alves em 1868 fez uma apresentação pública de Tragédia no mar, conhecido depois por Navio Negreiro; um momento muito mais difícil e perigoso de levantar a voz contra a escravidão e ele fez. Não só ele, mas José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e muitos outros. Adolfo Caminha, pra se ter uma ideia, publicou em 1895 o primeiro romance com protagonista gay da literatura, que, além de ser gay, era negro. Imagine isso no século XIX! Longe de ser homofóbico, o romance é tão bem construído que não há como não torcermos pelo final feliz dos amantes. Então, pra mim, não se trata de um pensamento hegemônico, de uma época, mas, sim, do que o artista pensa, da forma como ele vê a sociedade, como pensa o mundo. Nesse sentido é que vejo Lobato como um sujeito racista, eugenista.

Se pensarmos que o homem tem de ficar à mercê do pensamento hegemônico, da ideologia, acabamos por compreender Hitler.


O artista não pode fazer tudo em nome da liberdade de expressão, senão jogamos fora até Freud, não é mesmo? Então por que ler o Mal estar na civilização?
Defendo uma concepção de arte que não renega a humanidade, que prega a solidariedade.”

Luci Ruas,

professora de Literatura Infantil e Juvenil e de Literatura Portuguesa, da Faculdade de Letras da UFRJ

“Sempre li Monteiro Lobato desta forma: como escritor e homem combativo e visionário, polêmico e, muitas vezes, contraditório. Assim era e continua a ser, para mim, o seu Sítio do Pica-pau Amarelo: um lugar de aventura, de busca do conhecimento, de trocas e disputas, de discussão e de democráticas decisões (veja-se – ou melhor, leia-se nos livros quantas decisões foram tomadas a partir de plebiscitos). Essas características nunca me impediram de ler Monteiro Lobato, como nunca me impediram de ler nada. Fui compreendendo melhor o largo horizonte da obra de Lobato à medida que fui também amadurecendo e adquirindo novos conhecimentos. Não li Lobato pelas versões que a TV nos apresentou e agora mais uma vez nos apresenta. Por isso, é como leitora, e não como telespectadora, que posso me pronunciar.

Não estou de acordo com a decisão do Conselho Nacional de Educação – a meu ver equivocada – que acolhe por unanimidade o parecer da Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes, ratificando a denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende Caçadas de Pedrinho como ‘manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas’; e aponta ‘menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura’. Espanta-me que desqualifique o professor na sua capacidade de refletir e de construir a leitura como objeto de reflexão e o leitor como sujeito crítico, capaz de refletir, subestimando, assim, o aluno, ao mesmo tempo em que o transforma em sujeito incapaz de se posicionar frente à realidade.

Monteiro Lobato foi um homem do seu tempo e, como tal, sujeito às contradições da sua época. Se, em Caçadas de Pedrinho, observam-se referências estereotipadas contra os negros, como quer confirmar o parecer, com o qual já disse que não concordo, é possível, em O Saci, ver com que respeito é tratado o Tio Barnabé, tanto por Dona Benta, quanto pelas crianças. Em A reforma da natureza, logo ao primeiro capítulo, quando o narrador diz que a guerra estava acabada e a Europa precisava discutir a paz, um dos reis ali presentes afirma que é preciso “convidar para a conferência alguns representantes da humanidade”. Esse mesmo rei afirma, depois de conversar com o General De Gaulle: “- Só conheço – disse ele – duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas.” E o Duque de Windsor aprova o convite, apontando a ‘sabedoria’ de Dona Benta e o ‘bom senso’ de Tia Anastácia. Para além desses episódios, é preciso considerar que as personagens mais instigantes e mais questionadoras do Pica-pau Amarelo são a Emília e o Visconde, ambos criações de Tia Anastácia. Em Memórias da Emília, a boneca atrevida e espevitada reafirma o seu carinho por Tia Anastácia, aquela que lhe muda os olhos todas as vezes em que cansa de ver as coisas da mesma forma. Se há razões para afirmar algum racismo em Lobato, sobretudo nas expressões que dizem estereotipadas, por outro lado, ao contradizer esses estereótipos, Lobato os esvazia.

É empobrecedora qualquer leitura que cerceie o direito de o leitor escolher o caminho que mais lhe interessa para sua leitura. Não é essa a postura que, como educadores, pretendemos do leitor crítico que desejamos formar. Será que vamos reeditar o Index Librorum Prohibitorum? Que triste ensaio!!! Vetar sem permitir discussão é o mesmo que censurar. E aditar notas explicativas ao texto é direcionar, sim, a leitura.

Não aceito policiamento de leitores. Como poderão fazer suas escolhas, se desde cedo virem sua privacidade invadida pelo pensamento alheio? E como debater e defender ideias, se suas ideias forem, desde sempre, conduzidas pela pobreza da leitura única? Nós sabemos que um mesmo objeto pode ser lido e compreendido de modos diversos em épocas também distintas. Que seria da ciência se tivesse fincado os pés na ideia de que a Terra era plana e que a Terra era o centro do universo? Que seria da ciência se não tivesse descoberto que a verdade é mutável? Que será da Literatura sem a possibilidade de denunciar e de criar? E que será dessa Literatura, sem um leitor para dar à letra fria a vida necessária ao texto? E que será dos leitores, se não tiverem a possibilidade de escolher, de imaginar, de comparar, de analisar, de tirar suas próprias conclusões? Se ela é perigosa, é tão perigosa como viver (já o disse Guimarães Rosa).

Já vi Lobato ser acusado de tudo: de comunismo, de divulgar a droga, com o pó de pirlimpimpim. Sei que seus livros, como outras bibliotecas pelo mundo, foram queimados. Já li críticas de toda ordem. Mas não soube que os livros de Lobato tenham sido censurados. E não se perderam. Que não se perca mais uma vez a oportunidade de discutir abertamente os textos de Monteiro Lobato. E, sobretudo, não se subestime nem a inteligência da criança, nem a sensibilidade do educador.


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