Olho no Olho

Mérito X Cotas: um debate sobre ações afirmativas na UFRJ

 

Aline Durães

Ilustração: João Rezende

Apenas 14% dos jovens entre 18 e 24 anos cursam o Ensino Superior no Brasil. Estatísticas como essa, que reproduzem a realidade de desigualdade social do país, motivaram a UFRJ a debater a adoção de ações afirmativas que facilitem o acesso de estudantes de baixa renda e provenientes de escolas públicas à universidade.

Na última quinta-feira (19), o Conselho Universitário (Consuni) da instituição aprovou a proposta de destinar, a partir de 2011, 20% das vagas dos cursos de Graduação para alunos de escolas vinculadas à Secretaria Estadual e às secretarias municipais de Educação. Além disso, a universidade vem demonstrando preocupação em criar mecanismos de assistência estudantil que garantam a permanência desses jovens no Ensino Superior.

A decisão, apesar de histórica, não esgotou a discussão sobre a validade das cotas como mecanismo de acesso à UFRJ. A medida divide opiniões. Para parcelas da comunidade acadêmica, as ações afirmativas são uma forma de a universidade compensar os gargalos sociais criados por uma educação básica pública deficitária. Essa é a opinião de Debora Foguel, diretora do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da UFRJ. Ela, junto com alguns professores da universidade, assinou uma carta aberta de apoio à reserva de vagas enviada ao Jornal O Globo , no último dia 19.

Para outros setores da Academia, entretanto, as cotas não são a melhor opção. Dani Gamerman, professor do Instituto de Matemática (IM), e Marcio da Costa, docente da Faculdade de Educação (FE), por exemplo, concordam com a necessidade de a universidade compensar as discrepâncias sociais. Mas, em um artigo escrito a quatro mãos , os docentes defendem que o próprio exame usado para seleção pode conter mecanismos que compensem as disparidades socioeconômicas dos candidatos.

Com o objetivo de fomentar o debate sobre o assunto, o Olhar Virtual entrevistou Debora Foguel, Marcio da Costa e Dani Gamerman. Confira abaixo as opiniões dos acadêmicos.

Marcio da Costa e Dani Gamerman

professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs)

Sabemos que, na universidade pública, especialmente nos cursos mais concorridos, há clara inversão. Nesses, quase que somente são admitidos estudantes das boas escolas particulares e de incomuns escolas públicas diferenciadas. São muito raros os estudantes provenientes de meios sociais menos abastados. Isso reflete não somente a precariedade das redes públicas de ensino básico, mas também a muito desigual estrutura social brasileira. Assim, políticas compensatórias no acesso ao ensino superior público de bom padrão, também nas carreiras com maior disputa e recompensas profissionais mais evidentes, são mais justas e academicamente interessantes. Alguns de nossos melhores estudantes – relativamente poucos – provêm de meios sociais adversos. Eles são a prova viva de que há mérito em todas as camadas sociais. Tiveram, contudo, de enfrentar barreiras muito maiores que seus colegas dos estratos médios e superiores. Talvez isso explique, em parte, seu sucesso. Quantos, porém, quase tão bons, ou com um pouco mais de adversidades ficaram no caminho, por pouco?

Nosso desafio é deslocar a seleção de um modelo muito fortemente social para um que dê mais destaque ao mérito individual. Não se trata de imaginar que é possível suprimir as diferenças escolares e sociais plenamente por meio de modelos de seleção, pois elas operam muito antes desse ponto na trajetória escolar dos alunos. No entanto, podemos pensar em procedimentos que não sejam amplificadores dessas desigualdades.

Uma confusão conceitual e política permitiu que se criasse em algumas áreas e segmentos da universidade um discurso “antimérito”. Considerando que, em todo o mundo, ensino superior de padrão elevado é bem de acesso não universal, é necessário estabelecer princípios que orientem a escolha de seus beneficiários. Usamos o termo beneficiário propositalmente. Como já fartamente demonstrado, a oportunidade de aceder a uma universidade como a UFRJ confere muitas recompensas aos que a usufruem, comparados a seus pares. Os custos de tais vantagens são enormes e bancados por toda a população. Que outro princípio poderíamos usar para dirigir o processo, que não o mérito? Queremos os melhores estudantes e futuros graduados em potencial. A seleção de base fortemente social, na verdade, confunde o mérito.

A Teoria de Resposta ao Item (TRI) pode auxiliar na distinção entre mérito e oportunidades sociais. É uma teoria que operacionaliza aquilo que, do ponto de vista conceitual, podemos analiticamente decompor.

O que a TRI faz, simplificadamente, é levar em conta as especificidades das questões propostas aos candidatos para poder calcular adequadamente o seu escore ou sua nota. As especificidades mais relevantes são a dificuldade da questão e sua capacidade de discriminação entre os candidatos com diferentes níveis de habilidade, quanto ao que está sendo avaliado. O escore visa a representar a real, mas não diretamente observável, capacidade do indivíduo, permitindo identificar sua posição provável em uma escala de conhecimentos/habilidades. Essa teoria representa um ganho substancial sobre a prática usual de simplesmente contar percentuais de acertos a itens com pesos iguais e também confere comparabilidade entre aplicações de testes referidos à mesma matriz de conhecimentos/habilidades. 

Essa teoria é usada rotineiramente no mundo todo. Talvez o exemplo mais conhecido é o do TOEFL, do Educational Testing Service, dos Estados Unidos, que mede proficiência na língua inglesa. No Brasil, ela é usada em várias avaliações em escala nacional, estadual e municipal, com destaque para o SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica. A mais relevante para nós é o próprio Enem, base de concursos vestibulares para várias universidades brasileiras, onde ela é usada para determinar as notas dos candidatos nos exames com base na proficiência calculada através da TRI.

A utilização convencional da TRI, brevemente exposta anteriormente, pressupõe que cada questão tem dificuldade e discriminação únicas para todos os alunos. Entretanto, sabemos que indivíduos de diferentes grupos socioeconômicos reagirão de forma diferente às questões que lhe forem propostas numa prova, independentemente de sua capacidade. Ou seja, a TRI convencional necessita de modificações. Essas mudanças foram tratadas em uma dissertação de mestrado do Instituto de Matemática da UFRJ, que ganhou prêmio de melhor dissertação da Associação Brasileira de Estatística, em 2008.

Com a adoção do Enem, a UFRJ já passou a usar a TRI, mas ainda em estágio preliminar do nosso vestibular. Este ano, o uso será ampliado, pois o acesso de mais da metade dos estudantes já se dará através do Enem, com a decisão recentemente tomada pelo Consuni. Não seriam necessárias grandes mudanças no que diz respeito à seleção, apenas a forma de calcular os resultados seria alterada. Mudanças na composição do alunado, como já vem sendo apontado, implicam políticas de apoio à permanência na Universidade. No entanto, muitos de nossos cursos já têm, hoje, necessidade de políticas que aumentem os percentuais de egressos, sem a existência de qualquer política compensatória no acesso.

Não é possível afirmar a priori que o resultado seria muito ou pouco diferente daquele obtido com cotas. Nosso ponto é que ele deve ser melhor, mais justo. Defendemos a ideia de que o mérito deve ser fator mais forte de seleção do que origem social e treino. As cotas vão também nessa direção, mas cremos ser possível algo mais elaborado cientificamente.

 

 

 


Debora Foguel


A adoção de ações afirmativas pela UFRJ trata-se de um evento que, junto à adesão da UFRJ ao Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), mudará completamente o perfil de alunos que ingressam na nossa universidade. Particularmente, sou favorável às cotas étnicas que, infelizmente, não foram aprovadas no Consuni. Mas devo confessar que a votação desse item, precedido do discurso acalorado do professor Marcelo Paixão foi um dos momentos mais bonitos e simbólicos que presenciei na Universidade. Dizem que não há racismo no Brasil e até acho que, em relação a outros países, aparecemos “bem na fita”. Mas a verdade é que as ruas brasileiras são negras e as repartições, universidades, hospitais particulares, escolas particulares são brancas. Isso deve significar algo.

Dou aula na Faculdade de Medicina há mais de 10 anos e tenho dificuldade de recordar alunos pretos e pardos em minhas turmas. Na verdade, vez ou outra, aparece um aluno negro, mas, geralmente, é proveniente de Angola ou Moçambique, graças a um acordo entre a UFRJ e esses países.

Quanto às cotas sociais — estas, sim, aprovadas —, também me recordo de um belíssimo estudo encomendado por essa Reitoria e realizado pelos professores Jose Roberto Meyer Fernandes (ex-pró-reitor de Graduação), Mauricio Luz (Colégio de Aplicação) e Antoni Bernardo Carvalho (Instituto de Biologia), que mostra que não há queda alguma da qualidade do ensino se introduzirmos um percentual de alunos oriundos de colégios públicos na UFRJ. Esses pesquisadores realizaram simulações com turmas fictícias e mostraram que o aproveitamento desses alunos incluídos se equipara ao dos demais alunos. O referente estudo foi publicado na Revista Ciência Hoje a meu convite.

Ainda que esses alunos apresentassem alguma dificuldade não seria o suficiente para invalidar a importância de ações afirmativas. A meu ver, é fácil ensinar a quem já apresenta bagagem e tem uma historia de vida confortável. Mas o mais bacana é fazer com que aqueles alunos que estão à margem do processo e que não tiveram as mesmas oportunidades, sejam, através da nossa ajuda, do ensino que venhamos a oferecer, incorporados ao processo.

Alunos com dificuldades não são o nosso maior problema. Pior são os estudantes desinteressados que não enxergam a grandeza de estarem numa universidade pública e de qualidade.

Muitos colegas acham que as universidades devem servir apenas para uma parcela seleta de alunos que faria jus a esse privilégio. Talvez esse raciocínio tenha sido válido alguns séculos atrás, quando o mundo era outro. Hoje, portar um diploma universitário faz parte da formação necessária ao desempenho de quase todas as profissões. Passar por uma universidade faz parte da formação dos cidadãos de hoje!

Talvez a Pós-graduação desempenhe, nos dias de hoje, um papel que, no passado, pertencia à Graduação, mas mesmo ela também precisa crescer em uma nação que deseja prosperar. Penso sempre que nunca podemos esquecer de “onde estamos” e “em que momento estamos” quando tomamos nossas posições. No nosso caso, estamos no Brasil, um país que só tem 14% de jovens no ensino superior e 0,5% de jovens cursando a Pós-graduação. Estamos em 2010, momento em que precisamos de todos para fazer o país crescer e abandonar a pobreza e a baixa escolaridade.

Acho que a UFRJ está agindo de forma acertada. Trata-se de uma ação “casada”: instituir cotas sociais aliadas a uma forte política para garantir a permanência desses estudantes. Até onde eu saiba, a UFRJ será a universidade brasileira com ações mais definidas neste último quesito. O fato de termos privilegiado apenas alunos oriundos de escolas públicas (não federais) é uma bela mensagem que passamos para a sociedade. É através dessas ações que ajudaremos a reconstruir a escola publica básica. Talvez assim, os pais, a partir de agora, já comecem a optar em colocar os seus filhos em colégios públicos, em vez de escolas privadas, baratas e de péssima qualidade. É claro que os estudantes desses colégios particulares também são merecedores de políticas voltadas a eles. Mas o que importa é a mensagem. E ela foi dada quando a UFRJ aprovou as cotas socias para alunos vindos de colégios públicos.

A meu ver, este é o momento ideal. Essa proposta é provisória e vigorará apenas no próximo ano. Precisamos nos debruçar firmemente sobre o problema. Como experimentalista que sou, gosto dos números e dos dados. Precisamos montar um grupo de trabalho que monitore o que ocorrerá a partir dessa medida, que acompanhe a trajetória dos alunos ingressantes, que ajude a esta gestão e a próxima a corrigir rumos, implementar mudanças, fazer o sistema crescer, enfim, refinar e ajustar a política.

As pessoas, às vezes, têm medo de tomar certas decisões sem que todos os “senões” sejam pensados e planejados. Fui formada no Instituto de Bioquímica Médica, onde nosso fundador, o professor Leopoldo de Meis, sempre nos ensinou a ousar, a fazer coisas que julgamos boas e importantes, mesmo que alguns ajustes precisem ser feitos durante o percurso. Se esperarmos que todas as condições e respostas estejam definidas e respondidas, não sairemos do lugar. Principalmente, no Brasil, um país onde pairam as incertezas. Nos dias de hoje, podemos, sim, nos planejar e programar, mas jamais deixando a ousadia de lado.