Entrelinhas

Depois que a chuva não veio

 

 

Daniela Magioli

 Depois que a chuva não veio, livro publicado pela parceria entre a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e o Comitas Institute for Anthropological Study da Columbia University (Cifas), apresenta a complexidade social por trás do fenômeno das secas no Brasil. Os estudos, realizados por 11 pesquisadores, têm como foco o papel que as secas desempenham nos imaginários locais, nas configurações institucionais, na política e na religião. A obra será lançada na próxima quinta-feira (19/08), durante a Segunda Conferência Internacional sobre Clima, Sustentabilidade e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (Icid 2010), no Centro de Convenções de Fortaleza. Para melhor compreensão do tema, o Olhar Virtual entrevistou um dos organizadores do livro, o antropólogo Renzo Taddei, professor da Escola de Comunicação da UFRJ.

 Olhar Virtual: O livro reúne pesquisas de 11 autores diferentes. Como a obra foi organizada?

Renzo Taddei: O livro surgiu de um projeto de pesquisa que tinha como objetivo comparar as formas como as populações entendem, sentem e reagem ao clima em distintas partes do Brasil. No início, as pesquisas tiveram como foco a região Nordeste. Em 2005, no entanto, ocorreram secas no Nordeste, na Amazônia e no Sul do Brasil, o que naturalmente constituiu um contexto excelente para a pesquisa comparativa. Todos os autores fizeram pesquisa de campo antropológica, junto às populações afetadas pelas secas. Isso constitui a linha mestra da organização da obra. Por outro lado, as visões são heterogêneas, uma vez que os autores têm perfis acadêmicos diferentes: há antropólogos, geógrafos e sociólogos entre os autores.
 
Olhar Virtual: O senhor estuda essa área há vários anos. Como se iniciou a pesquisa que deu origem ao livro?

Renzo Taddei: Em 2002, quando era estudante de doutorado em Nova York, fui convidado a ir ao Ceará fazer pesquisa de campo ligada a conflitos por água no sertão. Na época, eu tinha outros interesses de pesquisa. Minha experiência no Ceará foi tão interessante que decidi mudar o tema de minha tese. No ano seguinte, voltei ao Ceará, onde permaneci por quase quatro anos. O problema da água no Nordeste está, é claro, intrinsecamente associado ao da chuva. Por essa razão, os governos da região, destacadamente o do Ceará, vêm investindo fortemente no aparelhamento tecnológico das instituições meteorológicas locais. As tentativas de uso das previsões científicas, no entanto, não foram bem aceitas pela população mais vulnerável às flutuações do clima, que é o pessoal da agricultura familiar. Desde o final da década de 70, quando o governo financiava – sem muito sucesso – a produção de “chuvas artificiais”, a população rural vê a ciência pautando políticas públicas que interferem na vida cotidiana e, nem sempre, está contente com isso. Isso tudo evidencia a importância de se estudar a forma como as populações percebem o clima, as emoções e significados que atribuem a ele. Sem isso, o que ocorre é que as iniciativas de uso das ciências do clima para melhorar a vida dos sertanejos acabam sendo mal entendidas. Uma evidência interessante disso é que o discurso científico sobre o clima, ao invés de ajudar os agricultores a ter uma relação melhor com o clima da região, acabou fortalecendo a presença dos chamados “profetas da chuva” do sertão. O conhecimento tradicional sobre o clima acabou sendo usado como resposta à percepção popular sertaneja de que a ciência climática atende a necessidades que não são as suas, mas a dos interesses econômicos urbanos. Por essa razão e, mais ainda, em tempos de mudanças climáticas, é fundamental entender as atitudes das populações locais com relação ao clima e suas variações.

 Olhar Virtual: Quais as principais relações que o senhor pode destacar entre o clima – no caso, a seca – e a formação da identidade regional?

Renzo Taddei: Existe uma grande quantidade de autores, a maioria dos quais historiadores, que mostra com detalhes como as elites nordestinas fizeram uso estratégico de uma certa imagem da região – a de região “problema”, miserável e vulnerável – para conseguir inserção no panorama político nacional, em especial, no que diz respeito à distribuição de riquezas entre os estados da nação. O Nordeste viveu o processo de se transformar de centro político e econômico do país, nos primeiros séculos do período colonial, em região periférica. Mas só faz sentido apresentar-se como região problema, se há a perspectiva de se conseguir ajuda externa, seja do governo federal ou de agências de fomento, como o Banco Mundial. Esse discurso foi muito forte na formação de uma identidade regional, forjando mesmo o senso comum que muitos dos seus habitantes têm do lugar onde vivem, como as manifestações da cultura popular atestam. Obviamente a miséria existe de fato, e a população rural sofreu com os efeitos das secas ao longo dos séculos. Mas a forma como isso se transforma em discurso que transcende as fronteiras regionais é uma questão diferente do modo pelo qual a população entende e sente o clima. Basta ver a forma como isso tudo existe na Amazônia, por exemplo. As populações de ribeirinhos e de agricultores familiares são igualmente vulneráveis às variações do meio ambiente, em termos de severidade pelo menos, mas não existe um discurso regional que valorize tanto essa vulnerabilidade. O que parece haver é, justamente, o fato de que aí o Estado é muito mais ausente, as populações não urbanas estão praticamente entregues à própria sorte e, em geral, nem sequer ocorre aos habitantes da região responsabilizar o Estado pelos impactos das secas ou inundações, ou seja, pela falta de proteção estatal. Isso, de maneira geral, porque obviamente há pressões políticas locais por ajuda federal. Mas não há nas manifestações da cultura popular da região a presença do discurso que faz referência recorrente à miséria e à vulnerabilidade, como se vê no Nordeste. Por isso, uma hipótese é que a forma de inserção da região dentro do panorama político-econômico nacional influi em como os habitantes percebem e vivem o clima.

O que houve em 2005, no Rio Grande do Sul, também evidencia isso: as opiniões sobre os impactos da seca tendiam a ressaltar que o estado é mais vulnerável às políticas econômicas federais do que às variações climáticas. Naquele ano, o governo importou arroz de outros países do Mercosul, o que fez baixar os preços e afetou os arrozeiros gaúchos. Houve manifestações na fronteira com o Uruguai, em cidades do interior e em Porto Alegre. As narrativas da população gaúcha sobre o meio ambiente inserem-se numa representação coletiva de que o estado é economicamente forte e capaz de prosperar em razão do próprio trabalho. Isso, de certa forma, influiu na percepção dos efeitos da seca, grande parte da responsabilidade das perdas foi transferida ao governo federal, e, apesar de quase todos os municípios do estado terem declarado situação de emergência em 2005, muitos habitantes nem sequer sabiam da ocorrência da seca em 2006. 

 Olhar Virtual: Além das variabilidades propriamente climáticas, o livro fala a respeito das incertezas humanas que são atribuídas ao fenômeno da seca, principalmente relacionadas à política e à religião. Como a pesquisa busca trabalhar essas incertezas? A mídia ajuda a esclarecer a sociedade ou acaba por dificultar mais a compreensão sobre a temática da seca?
 
Renzo Taddei: O clima é algo incerto, e populações que sentem as variações climáticas de forma mais acentuada tendem a desenvolver estratégias culturais para lidar com a incerteza. Em grande medida, essas estratégias passam pelo desenvolvimento de estratégias econômicas que melhor se adaptem ao meio ambiente, como a criação de cabras em regiões semi-áridas, por exemplo, e, ao mesmo tempo, por estratégias cognitivas que "mascarem" essa incerteza. Isso porque, como atestam muitas pesquisas em Psicologia e Antropologia, parece que temos uma dificuldade enorme em processar cognitivamente a incerteza. Não é fácil pensar a incerteza e menos ainda senti-la, uma vez que nossa reação espontânea frente a ela é o medo. A religião e a retórica política são, de certa forma, instrumentos que ajudam as populações a viverem sem o efeito desorganizador que a ansiedade provocada pela incerteza climática poderia acarretar. A mídia, por sua vez, apenas reflete essas tendências, as faz mais visíveis. A cobertura da imprensa relativa às previsões climáticas é um bom exemplo disso. Uma das reclamações mais frequentes, por parte de meteorologistas, com relação ao jornalismo, é justamente a tendência a desconsiderar o elemento de incerteza presente nas previsões. As probabilidades associadas às previsões climáticas tendem a desaparecer, ou pelo menos perder destaque, quando as previsões são publicadas no jornal. Uma previsão de 80% de chance de chuva vira "vai chover amanhã" na manchete do jornal. O que ocorre é que o jornalista, ao transformar a mensagem e eliminar a incerteza presente nela, está apenas manifestando essa tendência humana. Isso é parte do desafio que se apresenta à humanidade atualmente: a adaptação das sociedades às mudanças climáticas talvez demande a criação de novas formas de pensar e sentir a incerteza, sem ceder ao impulso de fingir que ela não existe.