Olho no Olho

Prisão de músico reabre debate sobre legalização da maconha

 

Ana Carolina Correia e Márcia Guerra

Ilustração: João Rezende

Publicada no último dia 14 de julho, uma carta assinada por quatro neurocientistas brasileiros, três deles integrantes da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), causou polêmica por defender a legalização da maconha não só para uso medicinal, mas também recreativo. Uma das motivações para escrever o documento, que não representa a posição oficial da Sociedade, veio da prisão do músico Pedro Caetano, baixista da banda de reggae Ponto de Equilíbrio, que havia sido preso por plantio de maconha em sua casa, em Niterói.

Os signatários da carta são os professores da UFRJ, Cecília Hedin-Pereira, João Menezes e Stevens Rehen, e o professor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, Sidarta Ribeiro. Eles argumentam que “a discussão ampla do tema é necessária e urgente para evitar a prisão daqueles usuários que, ao cultivarem a maconha para uso próprio, optam por não mais alimentar o poderio dos traficantes de drogas”.

No Brasil, a lei 11.343, em vigor desde 2006, considera crime tanto o consumo quanto a comercialização da maconha, no entanto prevê punição mais branda ao usuário do que ao traficante, ficando a cargo do juiz fazer a distinção. Alguns países, como Alemanha, Espanha e Portugal, abrandaram suas respectivas legislações antidrogas no sentido de tratar o assunto cada vez mais como um caso de saúde pública e não de polícia.

Para discutir essa problemática na sociedade brasileira, o Olhar Virtual ouviu Marcelo Santos Cruz, professor e coordenador do Programa de Estudo e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria (Ipub-UFRJ), e João Menezes, professor do Departamento de Anatomia do Centro de Ciências da Saúde (CCS-UFRJ) e um dos signatários da carta.

Marcelo Santos Cruz

Coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Projad – UFRJ


A legislação brasileira avançou não apenas em diferençar usuários de traficantes como em definir que usuários não são mais passíveis de pena de prisão, mas, sim, de advertência, medida educativa ou prestação de serviço comunitário. Outro aspecto muito positivo atualmente é a aproximação entre setores e profissionais de áreas diferentes, inclusive, da Justiça e da Saúde para tentar encontrar em conjunto soluções melhores. Cada vez é mais comum que os profissionais de áreas diferentes como juízes, promotores, advogados e policiais, por um lado, e médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, de outro, procurem o diálogo intersetorial por meio de reuniões, fóruns de debates, discussões de situações correntes de suas práticas profissionais etc. Existem experiências de práticas inovadoras fruto dessa interlocução, como a desenvolvida pelo Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e o 9º Juizado de Execuções Criminais. Esses serviços, um da Saúde e um da Justiça, discutem em conjunto o encaminhamento de situações de pessoas detidas por porte de drogas. Essa interlocução é essencial, porque a questão das drogas não é nem um problema da saúde nem da Justiça, mas, sim, um problema com determinações complexas que abrangem aspectos das duas áreas e de outras, como as dimensões sociais, culturais, econômicas e de educação.

A discussão sobre o status legal das drogas é necessário e oportuno, pois não há clareza sobre o que é melhor em termos de política pública. Por um lado, observa-se que a tendência mundial de tentar resolver os problemas com as drogas enfatizando uma abordagem repressiva não tem sido eficiente. Por outro lado, sabe-se que é necessário o controle social sobre essas substâncias devido aos riscos e danos envolvidos. Desta forma, conhecer a experiência de outros países que têm feito mudanças na legislação é interessante e pode servir como subsídio para as decisões na política brasileira.

 

João Menezes

Professor do Departamento de Anatomia do Centro de Ciências da Saúde e um dos signatários da carta


A legislação realmente avançou quando diferenciou usuário de traficante. Não foi perfeita, mas no que dá para costurar no Brasil foi muito boa. As pessoas reclamam que o Brasil não instituiu uma quantidade para diferenciar usuário de traficante e isso aparentemente é ruim, porque o que acontece à boca pequena é que “se a pessoa for rica, não importa a quantidade, ela é usuária, e, se for pobre, não importa a quantidade, é traficante”. Então o fato de não ter uma quantidade delimitada é ruim por causa disso, por favorecer injustiças. A pessoa fica dependente do juiz, do delegado, do policial, do promotor que vai trabalhar no caso. Mas é bom em outro sentido bastante inteligente, porque se diferencia um usuário de um traficante, não pelo dinheiro que ele tem, mas pelos utensílios, pelo comportamento, pelas coisas em volta. De certa forma, dá uma liberdade da própria pessoa acusada e também do juiz ter outros elementos para caracterizar como usuário e como traficante. Então, avançou bastante, mas o ideal é o regime de legalização, não é liberalização, isso é muito importante frisar. Se libera, vira uma bagunça. Então, legaliza, regulamenta, impõe regras rígidas. Na regulamentação, pode-se usar muito mais do que força policial. Se legalizar, teremos o fiscal de renda, o fiscal de saúde, o fiscal da Anvisa, da agricultura, não é só polícia.  E a maconha, se pode plantar, não precisa comprar. Teoricamente, é um adulto e não está fazendo mal a ninguém. Então, não tem por que punir uma decisão pessoal. É mais ou menos como se quisesse punir o suicida. E não deveria poder cercear as escolhas de um adulto responsável.

Existem duas maneiras de avaliar a situação da maconha. Uma é diminuir a oferta, que é prática protecionista, como acontece no mundo todo, na esperança de que isso diminua os problemas de saúde. O problema de diminuir a oferta é que acarreta o aumento do crime, da corrupção, diminui a proteção para o usuário. A outra maneira de o Estado enfrentar a situação é regulamentar, tornar oficial e, assim, diminuir a oferta, que não vai a zero se colocar impostos, fontes específicas de fornecimento, e, assim, fiscalizar e atuar sobre o consumo e demanda. Em Portugal foi assim, continua reprimindo a oferta, mas procura muito mais a demanda. Mantém propagandas explicando as consequências do uso, que foram muito efetivas por lá. O problema é que dessas duas estratégias, uma não respeita a liberdade de escolha do adulto e a outra respeita. Essa é uma grande vantagem que se pode tirar disso.

Quanto ao exemplo de Portugal, há bastante para ensinar ao mundo. O país tem uma série de coisas que se fosse descriminalizar de verdade seria interessante copiar. Foi uma legislação que não só vê a descriminalização, mas vê também o atendimento de saúde e, melhor ainda, a busca pelas estatísticas durante o início e o fim do processo. Eles estudam os usuários, a idade, quantos procuram atendimento, qual era o resultado do atendimento de saúde. Então, a cada ano, depois de 2001, eles sabiam quanto estavam entrando no sistema, quais drogas usavam. Assim, diminuiu o número de presos nas cadeias, o número de reincidentes. Foi perfeito de certa forma. Não é o regime de legalização correto, não é o que seria apropriado, já que ainda tem o tráfico, ainda tem o crime. Mas melhorou muito o cenário. Isso é um mérito muito grande. A experiência da Inglaterra em 2002 foi algo maravilhoso, mas entrou um governo conservador, que começou a retroceder.

Eu sempre achei que obviamente a maconha não era a porta de entrada para as outras drogas, mas desde a década de 70 – o artigo seminal é de 1975 – um artigo sugere essa teoria da “escadinha”. Não existe um resultado definitivo que comprove a teoria da “escadinha”, existem sugestões, uma até razoável que saiu em 2007. Esse artigo, que é muito interessante, consiste em um levantamento de 25 anos, acompanhando o indivíduo desde o nascimento, feito na Nova Zelândia. Nele é estudado tudo sobre o histórico daquela pessoa, quando nasceu, quando começou a fumar maconha, seu tipo social. Esse estudo fez um jogo matemático que relacionou o uso intenso e frequente de maconha na adolescência com o uso de outras drogas.  

Outra grande discussão é se a maconha pode levar à psicose, a partir de evidências que começaram a ficar numerosas em 2003. Mas esse é um vínculo que vem desde a década de 60. Existe toda uma linha de estudo, mas nada conclusivo. Mais do que a teoria da “escadinha”, esse é um dos maiores argumentos da manutenção da ilegalidade da maconha. São três grandes argumentos: a teoria da escada agregado com outras facetas sociais, como a degradação da família, a baixa produtividade; o aumento da oferta com possibilidade das consequências de saúde; e a terceira é o risco de psicose, mas o álcool também causa psicose.