Olho no Olho

Copa do Mundo: os desafios da África do Sul

Ana Carolina Correia e Diogo Cunha

Ilustração: Caio Monteiro

Vinte anos após o fim da política de segregação racial, que perdurou durante mais de 40 anos, a África do Sul terá, em 2010, a oportunidade de mostrar ao mundo uma realidade diversa daquela propagada durante os anos de apartheid. A realização da Copa do Mundo de futebol, pela primeira vez sediada no continente africano, pode ser um marco da superação da realidade corrente no século XX.

No entanto, para não ficar apenas no campo simbólico, o evento terá de provocar efeitos positivos e duradouros na deficiente economia e no ainda trágico cenário social, heranças do regime de segregação racial e dos 400 anos de colonização e exploração inglesa naquele país. Esta última ainda está presente, do ponto de vista econômico, em quase todas as nações do continente.

Para falar sobre a história, a conjuntura atual e as perspectivas para o futuro no país de Nelson Mandela, o Olhar Virtual ouviu os professores José Eduardo Cassiolato, do Instituto de Economia (IE-UFRJ), e Cristina Buarque de Hollanda, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs- UFRJ). 

José Eduardo Cassiolato
Professor Associado do Instituto de Economia (IE/UFRJ)

“Excetuando as melhorias relacionadas ao turismo e à infraestrutura de transportes, não se pode esperar mudanças significativas nos aspectos social e econômico. O país tem carências enormes que inviabilizam um desenvolvimento pujante da economia”

“O apartheid trouxe danos indeléveis para a África do Sul, se estendendo a problemas sociais que prejudicam o desenvolvimento econômico do país. A população negra ficou durante 30 anos à margem do sistema educacional; isso se reflete hoje na falta de capacitação dessa parte da população para as atividades profissionais. A atual situação social do país, a despeito dos esforços dos últimos governos para melhorá-la, é ainda ruim. A distribuição de renda é mais desigual que no Brasil e não tem melhorado nos últimos anos. Por outro lado, a economia também não oferece um cenário muito animador. O país não tem registrado grande crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos anos. A dinâmica do mercado interno é muito baixa e a estrutura econômica é voltada para a extração mineral, ou seja, para o setor primário da economia.  

Dito isto, não se pode acreditar que a Copa do Mundo trará grandes mudanças a crônicos problemas sociais e a uma economia precária. Há melhorias imediatas, relacionadas, sobretudo, à infraestrutura para o turismo. Os aeroportos estão sendo modernizados, a rede hoteleira ampliada e os agentes de turismo capacitados para receber uma quantidade enorme de turistas. Naturalmente, são gerados mais empregos para esse setor. A infraestrutura urbana também tem sido melhorada; foi implantado um sistema público de transportes em Johanesburgo, coisa que não existia há três anos.

A melhoria nos aeroportos e na rede hoteleira tem possibilitado o aumento dos preços das hospedagens e das passagens aéreas para o período da Copa, o que tem feito muitos desistirem de assistir ao evento no país. Outro problema é que os gastos com a construção dos estádios para a Copa dificilmente serão recompensados, pois o futebol no país não é um esporte muito lucrativo. Os estádios correm o risco de ficar sem uso depois do evento, como ocorreu com alguns estádios portugueses construídos para a Eurocopa de 2004.  

Excetuando as melhorias relacionadas ao turismo e à infraestrutura de transportes, não se pode esperar mudanças significativas nos aspectos social e econômico. O país tem carências enormes que inviabilizam um desenvolvimento pujante da economia. Comparado a potências emergentes como Brasil e Índia, a África do Sul está bem abaixo, também por possuir um território pequeno. Um grande evento esportivo como a Copa do Mundo tem limites naquilo que pode oferecer à economia de um país, e estes limites o impedem de provocar grandes transformações numa estrutura econômica cronicamente debilitada. No aspecto social, esses limites são ainda maiores e, no caso da África do Sul, devem impedir que o evento melhore a situação da população marginalizada.” 

Cristina Buarque de Hollanda
Professora adjunta do departamento de Ciências Políticas do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs- UFRJ)

“Embora não haja mais restrições legais aos usos do espaço público, é possível perceber uma apropriação espontânea do espaço ainda fortemente orientada pela cor da pele”

“O apartheid, instituído em 1948, foi o corolário de uma política discriminatória de longa data na África do Sul. As leis de segregação racial no país remontam às origens da união nacional, em 1909. Já nelas era possível identificar uma hierarquia social rígida entre brancos, coloured, asiáticos e bantus, nesta ordem de importância. Segundo o discurso político do apartheid, a inferioridade cultural e cognitiva dos negros deveria ser compensada por uma política de desenvolvimento diferenciado, que não excluía o maior contingente da população nacional, constituído por negros, mas apartava-o dos brancos. Existiam, portanto, escolas e universidades para os negros, mas de qualidade inferior e alheias ao princípio de liberdade de expressão. Como parte dos esforços para garantir a ordem nas cidades e nos campos, foram criadas ainda as chamadas hometowns. As famílias consideradas interétnicas (entre os negros, o regime considerava a existência de quatro etnias) foram separadas para ajustarem-se à geografia étnica delimitada pelo governo. Para circular nas regiões dos brancos, os negros tinham passaportes, com carimbos diários de entrada e saída. No caso de excederem o tempo de permanência permitido, iam presos. O grupo de vítimas da repressão do apartheid não era apenas constituído, portanto, apenas por militantes abertamente contrários ao regime. Também os cidadãos ordinários, no cumprimento de suas rotinas de trabalho, poderiam ser surpreendidos com medidas duramente repressivas do governo.  

Nas duas oportunidades que tive de visitar a África do Sul, em viagens de pesquisa nos anos de 2005 e 2008, pude perceber uma forte tensão racial no cotidiano da interação entre brancos e negros. Embora não haja mais restrições legais aos usos do espaço público, é possível ainda perceber uma apropriação espontânea do espaço ainda fortemente orientada pela cor da pele. Isto é, algumas áreas são de brancos e outras de negros. Nas ruas do centro de Johanesburgo, praticamente não se vê brancos.  

Embora a democracia tenha trazido mudanças significativas no cotidiano das populações negras, a estrutura social, com fortes desigualdades, permanece basicamente a mesma do tempo do apartheid. Formou-se uma elite negra, associada em medida significativa à ocupação de cargos no governo, mas o quadro geral de distinção social entre brancos e negros não se alterou de modo significativo.

O principal objetivo de Mandela no governo foi o de constituir condições para uma convivência pacífica entre segmentos da população tradicionalmente antagônicos. O desafio era enorme: não deixar que a memória do passado segregacionista se projetasse indefinidamente sobre os tempos presente e futuro, aprisionando as possibilidades de reinvenção da cena social e política. Era preciso domesticar os rancores e torná-los compatíveis com uma nova época. Para isso, era preciso inventar símbolos para uma identidade comum, que transcendessem a fragmentação identitária de longa data.

Sem dúvida, o esporte era e é um recurso valioso neste sentido e foi habilidosamente mobilizado por Mandela. A superação da tensão racial no país, contudo, não poderá passar ao largo de políticas sociais consistentes, com vistas à superação da profunda desigualdade social entre brancos e negros. Além da memória não superada da violência passada sob o regime do apartheid, a marca racial das classes sociais constitui importante obstáculo à “refundação” da sociedade sul-africana em termos não-raciais.

A África do Sul é uma importante potência política local e, sem dúvida, mundial. A despeito da adesão aos rituais da democracia formal, é  importante notar a extrema fragilidade no novo regime, ainda fortemente marcado pelo passado segregacionista e por um gravíssimo problema de saúde pública, a Aids.”  

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