Entrelinhas

Desconfiança ao Sul

Aline Durães

Quando pensamos na “guerra ao terror” empreendida pela política externa dos Estados Unidos, vem, quase  automaticamente, à memória a região do Oriente Médio. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, quando quatro aviões comerciais sequestrados por membros da organização Al-Qaida colidiram com as Torres Gêmeas do World Trade Center e com o Pentágono, matando cerca de três mil pessoas, o Estado norte-americano dedica esforços humanos e grandes somas em dinheiro para combater o terrorismo internacional nessa área.

O que poucos sabem, entretanto, é que o 11 de setembro reforçou o olhar vigilante dos Estados Unidos também sobre a América do Sul. Em especial na região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Após os ataques, articulistas norte-americanos passaram a conjeturar que terroristas de diversas organizações armadas do Oriente Médio ocupassem o local.

No livro A Tríplice Fronteira e a Guerra ao Terror, Arthur Bernardes do Amaral, pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ, explica como os Estados Unidos passaram a encarar as atividades ilícitas ocorridas nessa região e afirma que, a despeito das acusações, não há indícios confiáveis de que haja qualquer influência terrorista nessa área.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Arthur fala sobre  o livro, a ser lançado no próximo dia 25 de março, às 19h, na livraria Blooks. Ele lança um olhar sobre a política externa norte-americana e explica como os governos de Brasil, Argentina e Paraguai se articulam para rechaçar as desconfianças. Confira.

 Olhar Virtual: Que elementos da história intelectual, cultural e política dos Estados Unidos podem explicar sua política externa e o tratamento dado ao terrorismo internacional?

Arthur Amaral: Quando pensamos em terrorismo nos Estados Unidos, obviamente a primeira imagem que nos vem à mente são os atentados de 11 de setembro de 2001. Mas se olharmos um pouco mais para trás, veremos que a sociedade e o Estado norte-americano sofrem com esse flagelo há mais tempo que imaginamos. Por exemplo, em setembro de 1901, um século antes do ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, ocorria um ataque terrorista que também mudaria significativamente a história dos Estados Unidos. Nesse ano, Leon Frank Czolgosz, um jovem refugiado húngaro inspirado em ideias anarquistas, assassinou a tiros o então presidente norte-americano, William McKinley (1897-1901). Em seu lugar, assumiu o vice-presidente, Theodore Roosevelt, que, posto no comando em função desse evento violento, criou a doutrina do Big Stick (em português “grande porrete”) e inaugurou uma era de intervencionismo quase imperial dos Estados Unidos na América Latina. Mesmo que indiretamente, o terrorismo já afetara a política externa norte-americana. Os atentados de 11 de setembro foram outro momento-chave, pois o evento serviu como um catalisador que permitiu que tendências neoconservadoras e intervencionistas – já existentes dentro do governo George W. Bush, mas até então latentes – ganhassem força. Em poucas palavras, poderíamos dizer que os ataques confirmaram a crença do governo de que os Estados Unidos deveriam se reservar o direito de agir unilateralmente, quando fosse necessário a seus interesses nacionais. Por outro lado, Bush acreditava também que um mundo repleto de democracias seria mais seguro, pois governos democráticos tendem a não entrar em conflito com outras democracias. Essas percepções, somadas a crenças na superioridade política e moral do modelo norte-americano, formaram as bases da Doutrina Bush de guerra preventiva para a promoção da democracia, até mesmo pelo uso da força.

Olhar Virtual: Quais os principais efeitos, na América do Sul, da conversão do terrorismo em eixo organizador das relações internacionais pelo governo dos Estados Unidos?

Arthur Amaral: A América do Sul foi absolutamente solidária com os Estados Unidos após o 11 de Setembro. Contudo, após observar o crescente viés unilateralista e militarista que Washington deu para  sua recém-criada “Guerra ao Terror”, os governos do continente se tornaram cada vez mais receosos com relação a seu vizinho do norte. O histórico de intervencionismo dos Estados Unidos na região é um dos muitos fatores que explicam essa postura de maior distanciamento. Mais importante que isso é a percepção de que, no fim das contas, o terrorismo é um problema para os norte-americanos, mas não para a América do Sul. De nosso ponto de vista, o maior problema a ser superado é o subdesenvolvimento, ou seja, é de natureza econômica e não de segurança. Trazer a guerra ao terrorismo para a América do Sul seria transplantar artificialmente um problema “dos outros” para o nosso continente. Nossas prioridades são outras e não caberia criar fantasmas para justiçar uma caçada a supostos terroristas que estivessem em nossa região.

Essa é a principal crítica dos governos sul-americanos, sobretudo quando os Estados Unidos insistiam em afirmar (sem mostrar provas) que havia terroristas de diversas organizações do Oriente Médio (Hamas, Hizballah, Al-Qaeda) na tríplice fronteira de Brasil, Argentina e Paraguai. Essa acusação – que tratava suspeitas como se fossem verdade e indicativos como se fossem provas – afetou negativamente o comércio e o turismo local, prejudicando a economia e acabando por gerar informalidade. No fim das contas, essas acusações acabaram por dar condições para que crescesse o crime organizado no local e, obviamente, pioraram a situação da segurança na fronteira comum. Além disso, a militarização de aliados norte-americanos como a Colômbia – para combater o “narcoterrorismo” de grupos com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) – gerou fortes tensões no arco andino e caribenho.

Olhar Virtual: De que forma o governo dos EUA passou a incluir essa região em suas prioridades estratégicas?

Arthur Amaral: As Farc são consideradas um grupo terrorista pelos Estados Unidos, mas analisando melhor a organização, podemos notar que seu foco de atuação é majoritariamente nacional, atuando quase que exclusivamente dentro da esfera política colombiana. Quando falamos em terrorismo essencialmente internacional na América do Sul, a região que mais se faz mencionada é a área de Tríplice Fronteira. Embora os problemas da criminalidade já estivessem no radar das autoridades dos três países sul-americanos desde a década de 1980, a região ganhou maior destaque em 1992, quando um atentado atingiu a Embaixada de Israel em Buenos Aires, e em 1994, quando ataque similar destruiu a Associação Mutual Israelense Argentina (Amia), uma associação judaica localizada na capital argentina. O local passou então a ser estigmatizado e apontado por diversos atores políticos como um potencial “abrigo” para terroristas, sobretudo após os atentados de 11 de Setembro. Desde então, inúmeras autoridades de órgãos tão diversos quanto o Departamento de Estado, Pentágono, Tesouro, CIA, DEA (Agência Antidrogas), Congresso etc. se envolveram em debates e promoveram acusações contra a fronteira comum sul-americana. Com a chegada do governo Obama e o fim da retórica de “guerra ao terror”, tem havido maior discrição, sem a verborragia que o governo Bush utilizava para pressionar os países do continente. Entramos agora em um momento mais maduro da relação entre Estados Unidos e América do Sul, o que é positivo para ambos.

Olhar Virtual: O discurso norte-americano sobre as atividades ilícitas na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai procede? Que interesses ele encobre?

Arthur Amaral: As acusações eram de que havia, no local, grupos do Oriente Médio que o governo dos Estados Unidos classificava como terroristas, por exemplo: o Hamas palestino, o Hizballah libanês e a rede internacional Al-Qaida. Muito já se especulou sobre a presença desses agentes. Originalmente, logo após os atentados de 1992 e 1994 na Argentina, dizia-se que a região teria sido somente uma “porta de entrada”. Posteriormente, começou-se a especular que o local seria uma fonte de financiamento para o Hizballah. Após o 11 de Setembro e, principalmente, após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, especulou-se que até mesmo a rede Al-Qaida teria presença na região. De fato, há relatos confirmados que Khalid Shaikh Mohammed – considerado o mentor intelectual do 11/9 e o terceiro na hierarquia da Al-Qaida – esteve na Tríplice Fronteira em 1995, mas até mesmo a Comissão do Congresso norte-americano sobre o 11/9 reconhece que nada indica que essa visita estivesse relacionada com o desenvolvimento de qualquer potencial atividade terrorista. Alegou-se até mesmo que o próprio Osama Bin Laden estivera na área fronteiriça, mas, nesse caso, tratava-se de nada mais que vazias especulações. O que, de fato, há na região é um claro conjunto de problemas relacionados ao crime organizado transnacional e aos fluxos ilegais internacionais. Mas daí concluir que há terroristas no local é uma generalização que não se sustenta perante o menor confronto com os dados dos quais dispomos.

Olhar Virtual: No livro, o senhor fala de uma “guerra ao terror” na América do Sul. Quais as semelhanças e as principais diferenças desta guerra e do combate ao terrorismo realizado pelos EUA no Oriente Médio?

Arthur Amaral: Como o próprio presidente Bush a definia, a “guerra ao terror” seria um iniciativa inescapavelmente global. Não haveria lugar seguro. Logo, também não deveria haver limites geográficos para as ações de prevenção contra o terror. O combate ao terrorismo, obviamente, teve como palco principal o Oriente Médio e a Ásia Central, pois ali estavam localizados os “pontos quentes” (hot spots) dessa guerra. A Al-Qaida, a grande antagonista norte-americana, foi criada no Afeganistão em finais da década de 1980 e contava com militantes de vários países do Oriente Médio. A região basicamente era o centro mundial de treinamento e instrução (“militar” e ideológica) de grupos jihadistas. Além disso, o contrabando de drogas e outras atividades ilícitas também eram/são extensamente realizadas no local. Em suma, o Oriente Médio comprovadamente desempenhava um papel de destaque central de uma ponta à outra da atividade terrorista. Logo, fazia todo sentido esperar – como de fato ocorreu – que os Estados Unidos priorizassem seu engajamento com a região. O que não parecia muito plausível, no entanto, era imaginar que o governo de Washington voltaria seus olhos para a América do Sul. A ideia de uma “guerra ao terror” em nosso continente não parecia algo simplesmente distante da realidade. Para além dos atentados na Argentina – que naquele momento já haviam ocorrido há quase uma década – nada indicava que a região pudesse inspirar maiores preocupações. Dessa forma, após o 11/9, disseminou-se certo alarme, em torno da possibilidade de ocorrência de novos atentados na América do Sul. Porém, após o tempo provar que a preocupação com a presença de células operativas era exagerada, reformulou-se o foco da guerra ao terror, lançando foco sobre a possibilidade de a Tríplice Fronteira estar sendo usada como fonte de recursos financeiros e apoio logístico para grupos terroristas. Mais uma vez, nada se provou. A comunidade muçulmana na região – como em diversas partes do mundo, inclusive na Europa e nos Estados Unidos – enviava recursos para os parentes que deixaram para trás em sua terra natal. Obviamente, há uma distância abismal entre essa atitude absolutamente comum  e o tão alardeado financiamento ao terrorismo. Assim, o Oriente Médio é inserido na “guerra ao terror”como eixo central de engajamento devido à sua importância como pólo de treinamento e de financiamento a grupos terroristas, a América do Sul entra forçosamente no radar norte-americano, sempre em papel secundário e sem que haja confirmações substanciais sobre a presença de terroristas ou de seus financiadores no continente.

Olhar Virtual: Como os governos dos quatro países (EUA, Argentina, Brasil e Paraguai) se articulam diante desta “guerra ao terror” na Tríplice Fronteira?

Arthur Amaral: Antes do 11/9, a Argentina era o principal acusador, sobretudo através de Carlos Corach, que foi ministro do Interior durante a gestão de Carlos Menem. Nesse momento, os Estados Unidos era apenas um apoiador das retóricas que partiam de Buenos Aires. Brasil e Paraguai sempre foram resistentes a essa estigmatização do local. Após os ataques contra o World Trade Center e o Pentágono, os Estados Unidos substituem a Argentina no papel de acusador. Até pelo menos 2006, Buenos Aires e Assunção ocupavam uma posição pendular, ora aceitando as retóricas acusativas contra a área, ora rechaçando-as. Um movimento claro de união entre os três países sul-americanos ocorreu após 2006, quando os Estados Unidos acusaram unilateralmente alguns cidadãos e empresas sediadas na Tríplice Fronteira de financiar o terrorismo internacional. Desde 2002, as posições oficiais de Brasil, Argentina, Paraguai e Estados Unidos frente a esse tema se tornaram públicas através de comunicados conjuntos de um mecanismo informal chamado de “Comissão 3+1 Para a Segurança na Tríplice Fronteira”. O Departamento do Tesouro norte-americano, no entanto, lançou essa acusação unilateralmente, sem consultar nenhuma das autoridades da América do Sul, menos de uma semana antes da data marcada para o encontro anual do mecanismo. Essa atitude gerou grande desconforto na reunião e estimulou um claro alinhamento entre as três delegações sul-americanas. Desde então, houve constante convergência entre Brasil, Argentina e Paraguai, deixando o governo Bush isolado em seu ímpeto acusativo contra a Tríplice Fronteira. A chegada de Fernando Lugo à Presidência paraguaia consolidou esse cenário e, com a posse de Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos passaram a adotar uma postura mais cooperativa, inspirando maior confiança em seus parceiros sul-americanos.

Olhar Virtual: Qual a principal dificuldade encontrada ao longo da pesquisa?

Arthur Amaral: O livro trata de um tema extremamente polêmico e complexo. Além disso, a questão do terrorismo da Tríplice Fronteira é assunto recente, se compararmos com outros temas consagrados das disciplinas de Ciência Política, Ciências Sociais e do campo de Relações Internacionais no Brasil. De fato, já havia alguma produção sobre aspectos variados da região – como sua economia, turismo, população, geografia, integração etc. Mas nada relacionado especificamente à forma como a região foi inserida na agenda de segurança do continente. Uma das minhas principais críticas era que alguns textos tinham levado a sério demais a questão da intertextualidade: de tanto citarem-se mutuamente, esses discursos acabaram por criar para si uma realidade artificial de ameaça que, dentro do pequeno mundo de estudiosos que investigavam o tema sem qualquer olhar crítico, ganhava status de verdade autoevidente e inquestionável. Minha intenção era caminhar em sentido exatamente oposto, consultando as fontes primárias, mas sem o compromisso por desvendar qualquer suposto mistério sobre a região. Essa escolha resultou da percepção de que, sendo um mero acadêmico, eu simplesmente não teria condições materiais e técnicas de fazer um trabalho de investigação policial ou jornalística de maneira mais competente que um agente governamental ou um experiente repórter. Minha intenção não era descobrir “a verdade”, mas sim ver como se deram as disputas políticas para estabelecer qual dos vários autores envolvidos estaria com o “discurso verdadeiro”. Assim, consultei jornais, documentos, sites, e outras fontes dos quatro países, identificando como cada um dos governos tratava a questão em diferentes períodos históricos. Esse estudo se tornou minha dissertação de Mestrado, que cobria o período que vai de 1992 até 2004, mas que, agora, pude expandir até 2008 e publicar em formato de livro.

Olhar Virtual: Qual a principal contribuição que o senhor acredita que esse livro dará para o tema?

Arthur Amaral: O livro é a primeira obra que trata o assunto em uma perspectiva histórica mais ampla. É mais denso e abrangente do que os breves artigos que circulam pela internet. Além disso, tenho a preocupação constante e contextualizada de cada argumento e de cada discurso, para que o leitor possa notar quais interesses políticos estariam sendo atendidos através da uma declaração pública específica em um momento político específico. Creio que meu livro possa contribuir para a divulgação de novos olhares, sobretudo pelo fato de aplicar instrumental teórico de crescente relevância nos círculos acadêmicos do mundo a um estudo de caso que interessa diretamente a nós, brasileiros e sul-americanos.

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