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Rastros da cana

Aline Durães


O Brasil é o maior produtor de açúcar e álcool do mundo. Para fazer funcionar as engrenagens das 400 indústrias de cana espalhadas pelo país, são necessários um milhão de trabalhadores. Boa parte deles, entretanto, convive em condições de trabalho exploratórias e não possui seus direitos trabalhistas respeitados. As irregularidades encontradas nas lavouras canavieiras remetem, guardadas as devidas proporções, à escravidão do século XIX. Tanto é que muitos pesquisadores denominam as atividades ali realizadas como trabalho escravo contemporâneo. Ciente da gravidade dessa realidade, o Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) da UFRJ realizou a III Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas.  

O evento, ocorrido entre os dias 21 e 23 de outubro, reuniu autoridades, juristas e pesquisadores de diversas instituições de ensino superior interessados em promover debates capazes de refletir e solucionar a precariedade das relações de trabalho existentes nas usinas brasileiras.

Antônio Almeida, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), narrou alguns aspectos do cotidiano dos boias-frias. O estudioso explicou que, por serem oriundos de regiões pobres, os trabalhadores enxergam nos canaviais de São Paulo a oportunidade de melhorarem de vida. “São pessoas invisíveis aos olhos do governo. Resta a eles apenas a migração forçada e temporária para áreas mais desenvolvidas do país”, afirmou.

Assim que chegam ao Sudeste brasileiro e depois de arregimentados para extraírem a cana, os trabalhadores se instalam em barracos e cortiços da periferia da cidade. Pagam, em média, R$ 150 mensais por essas moradias, intituladas por Almeida de “novas senzalas”. Nelas, os boias-frias dormem amontoados no chão ou dividem um único colchão com cerca de seis colegas de trabalho.  

Segundo o pesquisador, esses trabalhadores são, em geral, homens entre 18 e 20 anos e analfabetos funcionais — possuem de três a sete anos de escolaridade. Nos canaviais, são imbuídos de cortarem de 10 a 15 toneladas de cana por dia. Caso não cumpram a meta, podem ser demitidos no segundo mês de trabalho. “Eles são violentados nas usinas. Não só violentados, como também mortos. De abril de 2004 a julho de 2008, 21 trabalhadores morreram por exaustão nos canaviais de São Paulo. Essa é uma estatística; sabemos que, na prática, esse número é maior”, observou Antônio Almeida.

Carteira assinada, direitos negados

Por terem carteira assinada, alguns pesquisadores se negam a classificar esses trabalhadores como escravos contemporâneos. O dia a dia nos canaviais mostra, entretanto, que o atual regime de trabalho dos boias-frias se assemelha com a escravidão do século XIX. Embora as empresas carimbem o documento, é comum não recolherem o FGTS. Os exames admissionais também nem sempre são realizados de forma adequada. “O problema não se restringe às leis trabalhistas, as condições em que o trabalho é efetuado são péssimas”, pontua Roberto Novaes, professor do Instituto de Economia da UFRJ.

Cada trabalhador recebe por produção, ou seja, seus salários variam de acordo com a quantidade de cana cortada. O ganho por produtividade, somado às baixas remunerações — paga-se, em média, R$ 3 por tonelada extraída —, compele esses homens, muitas vezes, a ultrapassarem os limites físicos. Não raro, trabalham até mesmo em seus horários de pausa; para economizar tempo, almoçam sob o sol, aspirando o pó da cana.

Além disso, os equipamentos de proteção não dispõem de boa qualidade e sua reposição é demorada. As luvas e os sapatos são de tamanho único e, por isso, nem sempre se ajustam às mãos e aos pés dos trabalhadores. Os óculos de proteção ficam embaçados por conta da fuligem da cana, o que leva, frequentemente, os boias-frias a abandoná-los no decorrer do expediente.

Como resultado disso, os trabalhadores são acometidos por uma série de doenças respiratórias, câimbras, tendinites e problemas de coluna. Novaes conta que o setor de Recursos Humanos de algumas empresas vem tentando maquiar essa situação, através da promoção de ginástica laboral no início do dia e do aumento do número de pausas no trabalho. Essas iniciativas, porém, não atingem a raiz do problema. “A jornada é penosa. Para camuflar suas consequências, as empresas passam a instituir uma hora pela manhã e outra à tarde para o descanso do trabalhador, mas ele ganha por produção. Não vai querer parar. São conquistas de qualquer forma, mas não vão ao cerne da questão, que é o ganho por produtividade. Enquanto não se resolver a questão do salário vinculado à produção, nada mais se resolverá”, ressalta.

Mecanização e reforma agrária

Na década de 1980, cada trabalhador costumava produzir, diariamente, 5 toneladas de cana cortada. Em 20 anos, esse número quase triplicou, sem haver qualquer modificação substancial nas tecnologias de corte de cana. Francisco José Alves, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), explica que houve uma intensificação do trabalho nos canaviais. Para o pesquisador, esse processo deve ser interrompido pela total mecanização da extração de cana. “Cortar cana não é trabalho para ser humano”, defende.

Se hoje o trabalho nas lavouras canavieiras fosse completamente mecanizado, cerca de 180 mil trabalhadores, provenientes apenas do estado de São Paulo, ficariam desempregados. Para evitar esse cenário caótico, Alves sugere a distribuição de terras: “A migração forçada, o pagamento por produção e a inexistência de políticas públicas compensatórias ajudam a entender a intensificação do trabalho. O processo de exploração de trabalhadores no campo só tem fim com a reforma agrária”, finaliza.