Ponto de Vista

Uma vida de música

Diogo Cunha


André Cardoso, diretor da Escola de Música da UFRJ, é o mais novo membro da Academia Brasileira de Música (ABM) desde 28 de agosto. O maestro, de 45 anos, ocupa a cadeira nº 26, que pertencia à pianista Anna Stella Shic. André falou ao Olhar Virtual sobre a importância de pertencer à ABM,  seu trabalho como diretor da Escola de Música da UFRJ e sobre a importância do ensino de música nas escolas. Ele defendeu a democratização no acesso às execuções da música de câmara e melhores condições técnicas para o desenvolvimento das orquestras no Brasil. O maestro falou ainda da falta que faz a música clássica para as gerações atuais, que têm tão pouco contato com ela. Em suas considerações, André mostra a sua plena consciência da importância da música para vida e sobre o que deve ser feito para que todos possam dela usufruir.

Olhar Virtual: O senhor acaba de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Música. Qual a importância desse cargo?

André Cardoso: Trata-se de uma instituição importantíssima que trabalha em prol da música brasileira. São quarenta cadeiras e seus membros são eleitos por seus pares, como em qualquer instituição do gênero. Ingressar na ABM significa estar ao lado de alguns dos mais importantes músicos de nosso país. É certamente um marco em minha carreira profissional e representa, como em nenhum outro momento, assumir de forma inquestionável o compromisso com a música de nosso país.

Olhar Virtual:  Como o senhor avalia o seu trabalho como diretor da Escola de Música da UFRJ?

André Cardoso: A avaliação de meu trabalho como diretor deve ser feita pela comunidade da Escola de Música e da UFRJ. Acho que meu grande mérito como diretor foi escolher uma ótima equipe, com pessoas competentes e extremamente dedicadas, que reconheceram o momento delicado pelo qual a EM passava e que se dispuseram a dedicar quatro anos de suas vidas a reerguer nossa Escola. Meus diretores-adjuntos são os melhores, não tenho dúvidas. O professor Roberto Macedo na graduação, o professor Eduardo Biato na direção artística e a professora Mirian Grosman na extensão. Tenho também dois coordenadores eleitos que são excelentes, a professora Regina Meireles na licenciatura e o professor Marcos Nogueira na pós-graduação, que é também o vice-diretor. Tenho também uma ótima equipe de técnicos. Hoje a Escola de Música trabalha em paz, com seus professores, alunos e funcionários desenvolvendo projetos de grande relevância artística e acadêmica e que vêm obtendo o reconhecimento da comunidade musical brasileira. Os currículos foram arrumados e novos cursos criados, como o de Regência de Banda e o de Bandolim. Outros estão sendo elaborados e serão implementados em breve, como o de Cavaquinho. Estabelecemos convênios e parcerias. A Orquestra Sinfônica da UFRJ participa de eventos importantíssimos e muito tradicionais em nossa cidade, como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, o Festival Villa-Lobos e a Folle Journée. O projeto de reforma prossegue com patrocínio da Petrobras, e novas perspectivas se abrem para a construção de um novo prédio de aulas, que conta com grande apoio por parte da Reitoria. Temos para 2010 a expansão das atividades acadêmicas da EM para o Fundão, com algumas disciplinas que serão ministradas como eletivas para todos os cursos da UFRJ.

Olhar Virtual: O senhor dirigiu orquestras na Paraíba, em Minas Gerais, no Espírito Santo e em Brasília. Como é a experiência de dirigir orquestras em diversas realidades brasileiras? As diferenças entre as orquestras são consideráveis? Essas diferenças expressam diferentes musicalidades desses lugares?

André Cardoso: São todas orquestras profissionais ligadas a Estados ou Municípios que mantêm conjuntos estáveis para o repertório sinfônico, ópera e balé. A qualidade dos conjuntos depende sempre da importância que os gestores do momento dão à música sinfônica. As diferenças salariais e de estrutura de trabalho são, algumas vezes, absurdas. As orquestras sinfônicas deveriam ser organismos culturais e artísticos com a mesma importância que museus e bibliotecas, pois são as guardiãs da memória musical universal. Ao mesmo tempo são organismos vivos, que renovam constantemente seu repertório e interagem com a comunidade onde estão inseridas. Deveria haver pelo menos uma orquestra sinfônica em cada capital. Os diferentes conjuntos não expressam necessariamente musicalidades regionais específicas. A orquestra é um dos organismos mais globalizados em todo o mundo. Se pegarmos uma gravação da ópera Carmem, de Bizet, do selo DeutscheGrammophon, por exemplo, veremos que a gravadora é alemã, o compositor é francês, o regente é italiano, a orquestra é inglesa e o principal cantor é espanhol. Para a música não existem fronteiras.

Olhar Virtual: A mídia costuma mostrar jovens carentes que ganham oportunidades em orquestras no Brasil. Há efetivamente um processo de inclusão social nesses projetos?

André Cardoso: Há inúmeros projetos hoje no Brasil que utilizam a música como instrumento de resgate social. A música sempre serviu para esse tipo de ação, pois é integradora, exige concentração, dedicação e disciplina. Hoje há inclusive novas orquestras sendo criadas a partir de projetos sociais e que conseguem um excelente resultado artístico, como a Sinfônica Heliópolis, em São Paulo. No Estado do Rio há projetos já antigos nas cidades de Volta Redonda, Vassouras, Campos e, mais recentemente, Barra Mansa. Temos vários alunos e professores da EM envolvidos em projetos do gênero.

Olhar Virtual: Como é o mercado de música clássica no Brasil? Oferece muitas e boas oportunidades?

André Cardoso: Para o bom músico o mercado sempre oferece boas oportunidades. Mas é um mercado que precisa ser ampliado. Isso acontecerá quando a música de concerto for oferecida democraticamente à população como um produto cultural de alta qualidade, mas sem os preconceitos que a rotulam como “a música das elites”. É um conceito completamente ultrapassado, mas que virou lugar-comum. Aqueles que acreditam nisso na verdade desconhecem o grande apelo popular da música de concerto. Hoje há muito mais jovens estudando música do que vinte ou trinta anos atrás. O futuro é promissor, mas temos que trabalhar para que a música de concerto chegue até as pessoas.

Olhar Virtual: Como estão situadas as orquestras brasileiras no panorama internacional?

André Cardoso: As orquestras brasileiras precisam se desenvolver em muitos aspectos para conseguirem uma inserção no mercado internacional. Não só artisticamente, mas também em seus modelos de gestão. A única orquestra brasileira que hoje ocupa um lugar no mercado internacional é a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Em nossa cidade as duas principais orquestras, a Sinfônica Brasileira e a Petrobras Sinfônica, não possuem sequer local próprio para ensaios e concertos, situação inimaginável para qualquer orquestra internacional de médio porte. Outro problema é a qualidade dos instrumentos. Há um projeto de autoria do senador Cristóvam Buarque que isenta de impostos a importação de instrumentos musicais e acessórios. Não há boa orquestra sem instrumentos de qualidade.

Olhar Virtual: Em 94, o senhor dirigiu a Orquestra Sinfônica Brasileira, em concerto popular na praia de Copacabana. O que você acha desse encontro da música erudita com o povo? Deveria ocorrer mais frequentemente?

André Cardoso: Os concertos populares são importantíssimos, assim como incentivar que a população frequente as salas de concertos e teatros, que são os locais onde a música pode se desenvolver de maneira plena. Os concertos populares não são frequentes, pois exigem uma estrutura de palco, sonorização e iluminação que encarece a produção. Preços populares em salas de concertos são alternativas que podem atrair um público mais diversificado.

Olhar Virtual: Existe uma diferença profunda entre receber os aplausos de uma plateia do Teatro Municipal ou de outra sala de concertos e receber os aplausos do público de um evento popular?

André Cardoso: Acredito que não. O artista sempre deseja o aplauso e o reconhecimento da plateia, seja ela qual for. O público de um evento ao ar livre não será necessariamente mais caloroso do que a plateia do Municipal. Você pode fazer eventos populares dentro das salas de concertos. Uma das experiências artísticas mais gratificantes de minha carreira foi quando dirigi o balé O Lago dos Cisnes na temporada de 2006 do Teatro Municipal. A récita de domingo pela manhã tinha preços populares e a fila para ingressos dava voltas no quarteirão. Após a lotação do teatro se esgotar, mais de mil e quinhentas pessoas voltaram para a casa sem conseguir entrar. Tivemos que providenciar uma récita extra. O público era caloroso e aplaudia os bailarinos e músicos com grande entusiasmo, muitas vezes em cena aberta.

Olhar Virtual: Por que a música erudita é tão erudita hoje em dia, ou seja, está tão afastada do povo? É culpa dos próprios músicos? Quais são os fatores que impedem uma música mais popular?

André Cardoso: Não sei se a música de hoje é “tão erudita” assim. Ao contrário. Acho que acontece hoje uma  reaproximação do compositor com o público. Não temos mais o patrulhamento da vanguarda ou o dirigismo estético. A maior parte das obras experimentais da segunda metade do século XX já não frequenta mais as salas de concertos. O regime soviético acabou, mas as obras de Shostakovich e Prokofiev permanecem por sua qualidade artística, e não por terem sido escritas “para as massas”.  Hoje o compositor escreve o que bem entender, mas não pode ficar limitado àquilo que o público deseja ou está acostumado a ouvir. Qualquer pessoa, por diferentes razões, tem dificuldade em se aproximar daquilo que não conhece. Como conhecer algo a que não se tem acesso? Quantas emissoras existem hoje disponíveis no rádio? Quantas transmitem música de concerto? Quantos programas existem hoje na televisão brasileira, de sinal aberto ou por assinatura, dedicados à música de concerto? Quantos teatros na cidade estão aptos a receber espetáculos de ópera e balé? Qual a importância da música e da educação artística hoje no currículo escolar? Não creio que seja culpa dos músicos. Ao contrário. Foi a partir de uma mobilização nacional de músicos e educadores musicais, através de um grupo de ação parlamentar, que a música voltou este ano ao currículo das escolas.

Olhar Virtual: Você é responsável pelas partes corais dos desenhos animados da Walt Disney. A apropriação de música clássica pela cultura popular, por exemplo, em propagandas, é positiva por manter o repertório clássico nas mentes das pessoas ou negativa por eventualmente diluir o conteúdo da obra original?

André Cardoso: A associação de música de concerto com o cinema é antiga. Muitas vezes a música é mais conhecida em decorrência de sua utilização como trilha para o cinema do que em seu contexto original. Muitos conhecem o poema-sinfônico Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss, apenas como o tema de abertura para 2001, uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. A música, por suas características intrínsecas, é uma arte que precisa sempre ser recriada, e nessa recriação ela é muitas vezes transformada ou adaptada. O problema maior é com os compositores, que não gostam de ver sua obra modificada. Quando a obra está em domínio público, após setenta anos da morte do compositor, não há limites para a intervenção. Os trabalhos que fiz para a Disney, Dream Works e outras produtoras não utilizavam o repertório tradicional de música de concerto. Eram trilhas especialmente escritas para os desenhos animados de longa-metragem em que eu dirigia as partes corais nas versões em português. Fiz vários, como O corcunda de Notre-Dame, Pocahontas, Mulan, Hércules e Príncipe do Egito.

Olhar Virtual: As gerações atuais não têm contato com a música clássica. O que elas deixam de ganhar com a falta desse contato?

André Cardoso: Qual obra foi tocada para comemorar a queda do Muro de Berlim? A Nona Sinfonia de Beethoven, na qual a palavra “Freude” (Alegria) cantada pelo coro e solistas foi mudada pelo maestro Bernstein para “Freiheit” (Liberdade). A obra foi escolhida por representar como nenhuma outra os mais nobres e elevados ideais humanos, como a fraternidade universal. Nela o compositor exprime através da música e da poesia de Schiller sua confiança no futuro da humanidade. Como não se emocionar com a profunda religiosidade de uma Paixão Segundo São Mateus, de Bach, com a sensualidade primitiva de Carmina Burana, de Carl Orff, ou diante da constatação da certeza da morte expressa na Sinfonia nº 9 de Mahler? Ao desconhecerem tais obras, por exemplo, as gerações atuais deixam de estar em contato com algumas das mais importantes criações artísticas da história da humanidade, de desenvolver sua sensibilidade e de experimentar os mais variados e profundos sentimentos que uma obra musical pode despertar.

Olhar Virtual: Ano passado, o presidente Lula sancionou a lei que torna obrigatório o ensino de música nas escolas brasileiras. De que forma deveriam ser ministradas as aulas de música nas escolas?

André Cardoso: Acho que devem ser respeitadas as profundas diferenças regionais de nosso país. O que serve para as escolas do Rio de Janeiro não servirá certamente para o interior do Tocantins. Um elemento, entretanto, deve unificar, no meu modo de ver, a prática musical nas escolas: o canto coral. O canto coletivo é, sem dúvida, o mais eficiente meio de socialização e musicalização das crianças. É também o mais barato, pois todos nós carregamos nosso próprio instrumento. Com um professor bem treinado e uma turma de alunos, já temos pronto um coral, sem necessidade de maiores investimentos. Cantar em coro abre nossa perspectiva musical, pois podemos abordar os mais variados gêneros, desde uma obra sacra da Renascença até um arranjo de música popular. Não podemos também perder a tradição da banda de música, a mais eficiente escola de formação de instrumentistas de sopro desde que nosso país começou a ser colonizado. A prática musical nas escolas deve ser radicalmente democrática. Não faz sentido, por exemplo, levar aos alunos de uma escola em uma favela carioca apenas Rap e Funk. Isso eles já conhecem, pois faz parte da realidade cultural do lugar onde vivem. Um ensino musical realmente democrático deve proporcionar aos alunos o maior número possível de experiências musicais.

Olhar Virtual: O que uma criança pode ganhar com o aprendizado de noções musicais?

André Cardoso: Além dos aspectos de socialização já mencionados, o estudo da música desenvolve habilidades como concentração, percepção visual, acuidade auditiva, coordenação motora; enfim, uma série de habilidades que auxiliarão extraordinariamente no aprendizado das disciplinas tradicionais.

Olhar Virtual: Você considera um erro o Brasil ter ficado todo esse tempo sem ensino de música nas escolas?

André Cardoso: Com certeza foi um grande erro. Várias gerações, inclusive a minha, foram privadas dos benefícios que o aprendizado da música proporciona. Eu sou, entretanto, uma exceção, pois o colégio onde estudei, o Marista São José da Tijuca, possuía, e ainda possui, coro infantil, coro juvenil e banda de música. Só sou músico hoje por ter tido a oportunidade ímpar de cantar em coro e conhecer um repertório que desconhecia até então.

Olhar Virtual: Lula refutou o artigo que exige formação específica do professor para ensinar música nas escolas. A falta dessa formação vai ser prejudicial ao ensino?

André Cardoso: Ao sancionar a obrigatoriedade do ensino da música nas escolas, o governo deve proporcionar as condições para que todos possam cumprir. Em cidades e Estados com cursos de licenciatura em Música não haverá dificuldade para se encontrar os profissionais e cumprir a obrigatoriedade. Mas como fará um diretor de uma escola em uma cidade do interior, distante de uma capital ou grande cidade? Como ele encontrará profissionais com formação específica em licenciatura em Música ou Educação Artística? Sob esse aspecto o veto presidencial é justificável. Sendo assim, qualquer professor que tenha alguma habilidade musical poderá assumir a disciplina. Acho que faltou foi estabeler um prazo, talvez dez anos, para que esse professor procure uma formação específica ou que a escola encontre um profissional minimamente habilitado para ser contratado. De qualquer forma, mesmo com o veto, trata-se de um avanço extraordinário, pois há muitos anos a classe musical reivindica a volta do ensino musical nas escolas. Que ele não saia jamais do currículo. As gerações futuras agradecerão.