Ponto de Vista

Ordem em regresso

Camilla Muniz e Vanessa Sol

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Cumprindo uma de suas promessas de campanha, o novo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, colocou em prática a operação ““choque de ordem”” logo nos primeiros dias de governo. Alegando que a cidade estava abandonada, a Prefeitura deu início a uma série de ações para combater a desordem urbana; entre elas, a demolição de construções irregulares, a retirada de mendigos das ruas, a proibição da atuação de camelôs e flanelinhas, a fiscalização de estabelecimentos e a repressão do estacionamento em locais proibidos. Com as medidas, a nova administração municipal espera também reduzir os índices de criminalidade e violência.

Embora o objetivo principal do “choque de ordem” seja a abertura de um caminho para o desenvolvimento do Rio, a iniciativa vem recebendo críticas de parte da população por não levar em conta determinadas particularidades dos problemas enfrentados. O excesso de força e violência utilizado em algumas intervenções e a ausência de um plano de políticas públicas são outros pontos censurados.

Para avaliar a eficácia do “choque de ordem”, tal qual ele vem sendo realizado pelo governo Paes, o Olhar Virtual conversou com a professora Gabriela Lema Icasuriaga, da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Olhar Virtual: Alegando que a cidade estava abandonada, o novo prefeito, Eduardo Paes, colocou em prática uma operação chamada “choque de ordem” e algumas ações têm sido marcadas pelo excesso de força e violência. Tal medida é eficaz no combate ao abandono da cidade?

Tomemos como ponto de partida que o novo prefeito do Rio de Janeiro e sua equipe, mesmo que ainda em formação, reflitam a escolha dos eleitores da cidade, do município, conduzida por um programa de governo e pelo carisma do sujeito eleito. A forma como se estrutura o exercício do poder municipal é o seu governo. Desta forma, não duvidando das boas intenções que conduzem a ação política do novo gestor da cidade, devemos fazer um esforço para enxergar, por traz das ações das últimas semanas, qual a idéia de sociedade e de sociabilidade que as sustentam. Ou seja, quando nos perguntamos quais são os efeitos no espaço da cidade e os impactos sociais da tal operação urbana, não obtemos respostas, nem sequer pistas, sobre o desenho de uma política pública para a cidade do Rio de Janeiro. Muito pelo contrário, mais uma vez, na ausência de uma política abrangente para o espaço urbano carioca e seus habitantes, na sua diversidade e complexidade, temos ações pontuais, mesmo que se queiram sistemáticas e permanentes, substituindo a possibilidade de um planejamento a médio longo prazo, com pressupostos – qual a cidade almejada pelos gestores, objetivos e estratégias que conduzam um plano de ação. O que observamos como abandono da cidade é a ausência prolongada de intervenções urbanísticas abrangentes, transversais e integradoras que efetivamente visem redistribuição da riqueza socialmente produzida no espaço da cidade. Simplificando no limite, diríamos que as grandes maiorias da população carioca nunca foram sequer beneficiadas pelas ações de embelezamento, restauração, segurança, infra-estrutura etc. Historicamente, essas intervenções saturam de equipamentos e serviços os mesmos espaços, renovando-os constantemente ao sabor do padrão internacional da cidade modelo, sempre muito longe da realidade social, cultural e econômica brasileira. O conjunto de moradores dessa cidade não se sente, portanto, contemplado nas ações para a cidade. Muito pelo contrário, as medidas implantadas à força chegam ao cúmulo de impedir às pessoas o exercício de atividades laborais lícitas, numa cidade na qual a informalidade no trabalho tem sido historicamente a sua marca registrada; mesmo em épocas de alta absorção de mão de obra no mercado formal de trabalho, o Rio de Janeiro se manteve com taxas superiores de informalidade. Essa constatação, que faz parte da nossa realidade cotidiana, exige outro tipo de respostas por parte das autoridades e das organizações da sociedade de modo geral.

Olhar Virtual: É possível fazer um trabalho de prevenção à desordem urbana?

Acredito que seja possível pensar e desenvolver um trabalho de prevenção dentro de uma política urbana. O que precisamos saber é que tipo de efeito persegue essa prevenção. A atual operação “choque de ordem” busca agir energicamente em um conjunto de manifestações da chamada desordem que tem causas e conseqüências muito diferentes para a cidade e, principalmente, para seus habitantes. Não é possível pensarmos que a organização do trânsito na cidade se resolve da mesma maneira que o déficit habitacional, o trabalho informal ou qualquer outra das questões em tela. Cabe lembrar que o Rio de Janeiro de hoje é fruto do padrão de desenvolvimento escolhido para o Brasil a partir dos anos 40 do século passado, que impulsionou um crescimento demográfico intenso, durante as quatro décadas seguintes, durante as quais os governos que se sucederam não tiveram nenhuma preocupação por equacionar o problema da demanda, das massas migrantes, por emprego, habitação, saúde etc. Isso consolidou a lógica da desordem e suas manifestações somente aprofundaram-se com o passar do tempo, coagulando-se numa formação social cada vez mais concentrada, desigual, violenta, insegura, inacessível para a grande maioria da sua população.

Olhar Virtual: O secretário de segurança afirmou que "a desordem pública é o nascedouro do crime". A senhora concorda com isso?

Continuando a resposta anterior, certamente não é na desordem, nem na desorganização pública que se gesta a criminalidade, mas na construção histórica de barreiras socioeconômicas e culturais para aceder por meios lícitos aos padrões de reprodução que a própria sociedade impulsiona e legitima. Uma suposta “ordem pública” deveria ser pensada a partir da geração de oportunidades estruturadas, organizadas e integradoras para que os setores populares possam exercer suas atividades de geração de renda, sem cargas tributárias pesadas e sem precisar de intermediários “protetores” que lucram à custa de atividades informais.

Olhar Virtual: Algumas pessoas que se mostraram entusiasmadas quando o novo prefeito anunciou o “choque de ordem” perceberam que a medida não leva em conta os aspectos sociais. Nesse sentido, fazer um “choque de ordem” fere a cidadania?

Mais do que ferir, desconhece o direito de muitos cidadãos ao acesso aos bens e serviços que a cidade, enquanto produto socialmente construído por todos que nela habitam, deveria oferecer à coletividade.

A idéia de ordem é muito cara ao imaginário político brasileiro, o que não significa ausência de polêmica ou contradição no seu uso e apropriação por parte da sociedade. Se a idéia que continua prevalecendo, em quem defende a ordem, é a de ser “o meio” para o progresso, mesmo que imposta por meios repressivos e punitivos, acredito que existam mais do que simples constatações de que tal progresso, no caso brasileiro, significou o enriquecimento de poucos pela exploração de muitos e essa não é uma ordem natural, mas a escolha das elites governantes do país, as únicas a terem um exercício pleno da cidadania. Em todo caso, esse conceito de “ordem” é aplicado de maneira desigual entre as classes sociais, o que fere a cidadania como princípio e como exercício de direitos.

Olhar Virtual: A prefeitura está demolindo construções irregulares, retirando mendigos das ruas, proibindo a atuação de camelôs. Estas ações deveriam estar associadas a que tipo de políticas públicas?

Cada uma dessas ações exige um tratamento diferenciado porque aborda problemas diferentes e complexos. As construções irregulares, por exemplo, constituem a grande maioria das habitações das camadas populares no Rio de Janeiro, seja em assentamentos ou na própria cidade dita formal. Ninguém desconhece hoje a existência de um mercado informal de moradias nesses espaços, que a condição de informalidade tem contribuído a construir e do qual se beneficia um número reduzido de especuladores locais. Identificar e coibir a exploração da condição de informalidade de segmentos da população que não tem acesso ao mercado imobiliário formal é componente de qualquer política pública de um Estado democrático, embora a solução do problema da habitação não possa ser reduzida a essas ações, tem e deve ser resolvido por um conjunto de ações transversais e articuladas que visem a eliminação do déficit habitacional. Deixar um número maior de pessoas em condições de precariedade habitacional ou confinadas a abrigos mal estruturados, no caso das ações de “acolhimento” da população em situação de rua, é contraditório a qualquer política pública, simplesmente porque em lugar de resolver o problema social o aprofunda. A cidade pode até ficar “limpa” de “elementos indesejáveis”, sejam estes, pessoas, caixas de isopor ou construções feiosas. Porém, os números do déficit habitacional se mantêm, o desemprego aumenta, o número de indigentes também e o dinheiro público gasto em serviços assistencialistas de má qualidade onera o bolso de todos nós, inclusive daqueles que defendem essa “ordem” na cidade.

Olhar Virtual: O “choque de ordem” traz benefícios à cidade?

Da forma seletiva e discriminatória como esta sendo aplicado, não.