Entrelinhas

O resgate da memória da Nacional de Medicina

Vanessa Sol

capa do livro

Com mais de 60 anos dedicado à vida acadêmica, o professor George Doyle Maia, livre- docente da Faculdade de Medicina da UFRJ e atual reitor da Universidade Santa Úrsula, escreveu o livro A Nacional de Medicina, 200 anos, do Morro do Castelo à Ilha do Fundão.

A obra conta a trajetória do primeiro curso de Anatomia e Cirurgia – criado com a vinda da Corte Real Portuguesa para o Brasil –, ministrado no Hospital Militar do Morro do Castelo, passando à criação Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, entre os anos de 1918 e 1972, até a transferência para a Cidade Universitária.

Para o professor, a demolição do prédio que abrigava o curso de Medicina na Praia Vermelha representa uma perda trágica para a memória de ex-alunos e professores daquela instituição. “O amor a esse local era imenso, tanto que, na comemoração de 50 anos de formados da minha turma, foi distribuído para cada ex-aluno pedaços de ladrilhos que revestiam o chão”, afirma Doyle, mostrando seu próprio suvenir.

Para saber um pouco mais sobre a história da bicentenária instituição, o Olhar Virtual entrevistou Doyle Maia, que não escondeu sua afeição para com a faculdade, onde estudou entre o fim da década de 1930 e início da de 1940, e da qual foi professor até os anos 2000.

O lançamento da obra será, no próximo dia 26 de novembro, no Fórum de Ciência e Cultura, às 18h30.

Olhar Virtual: Como surgiu a idéia do livro?

Em 1995, eu tinha feito um livro sobre a história da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, que era adorada por alunos e professores. E, quando foi feita a transferência para o Fundão, causou um trauma em todos que haviam passado por lá. Então, eu quis fazer um registro da memória dessa Faculdade.

Nos anos 2000, em uma reunião com a atual vice-reitora, a professora Sylvia Vargas e eu cogitamos fazer uma segunda edição do livro. Porém, quando comecei a mexer na obra percebi que podíamos fazer uma em comemoração aos 200 anos da Faculdade de Medicina porque as informações contavam a história da universidade. Muitas universidades européias contam sua data de criação a partir da fundação do primeiro curso. Então, na realidade, são os 200 anos da UFRJ que estão sendo comemorados e não só os 200 anos da Faculdade de Medicina.

Olhar Virtual: Quais são os principais aspectos abordados na obra?

No livro, relato todos os decretos de criação da Faculdade de Medicina e, posteriormente, os que deram origem à Universidade do Brasil e à UFRJ.

Em 2 de abril de 1808, foi criado um curso de Medicina que, na verdade, era um curso com aulas de Anatomia e Cirurgia, no Hospital Militar, no Morro do Castelo.

Depois conto toda a trajetória Faculdade de Medicina durante o império, com a criação da Faculdade Nacional de Medicina, em 1832. Passo, então, para a criação da Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, até a criação da UFRJ. Destaco a criação da Cidade Universitária, que teve diferentes projetos até a forma final, na Ilha do Fundão.

Termino o livro com uma parte, em que tive uma importante participação: a criação do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, do qual fui diretor. Conto a história do que foi a transferência da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha para a Cidade Universitária e da divisão de espaço com diversos outros cursos.

No final, não resisti e incluí um capítulo chamado o “Final da Belle Èpoque”, no qual relato a história do tempo em que vivi como estudante. Naquela época, o Rio era, efetivamente, a cidade maravilhosa. As pessoas andavam de madrugada nas ruas sem risco de violência.

Olhar Virtual: Há fatos curiosos da época reportados na obra?

D. Pedro II tinha grande interesse pela cultura e ele freqüentava assiduamente as aulas da Faculdade de Medicina, assistia a exames de alunos. Em sessões muito longas, ele acabava dormindo.

Olhar Virtual: A criação tardia da primeira universidade, no Brasil, foi resultado do processo de colonização?

Aqui a criação foi tardia, assim como em toda América Hispânica. Durante o período colonial, o governo português procurou manter o máximo de obscurantismo cultural.

Somente com a vinda de Corte Portuguesa para o Brasil que esse panorama começa a ser modificado, principalmente, porque D. João VI tinha um conselheiro que era físico-médico – professor na Faculdade de Coimbra, em Portugal – que incentivou o ensino médico no Brasil. Em função desses conselhos, assim que chegou à Bahia, D. João VI criou a Faculdade de Medicina. Chegando ao Rio, criou, em 2 de abril de 1808, o curso de Anatomia e Cirurgia.

Olhar Virtual: Em que circunstância ocorreu transferência da Faculdade, em 1972, para a Ilha do Fundão?

Ao ser definido o local de construção da Cidade Universitária, baixou-se um decreto em que todas as unidades teriam que se transferir para o Fundão. Algumas reagiram. A Escola Politécnica reagiu e conseguiu salvar o prédio. A Faculdade de Direito também e não se transferiu. A Medicina não conseguiu salvar seu prédio. Então, perdeu-se um local belíssimo, onde foram formados muitos médicos.

Olhar Virtual: A demolição do prédio representa a demolição da memória?

A demolição desse prédio para os ex-alunos e professores foi trágica. Havia pessoas recolhendo cacos para guardar como recordação. O amor a esse local era imenso, tanto que na comemoração de 50 anos de formados da minha turma foi distribuído para cada ex-aluno pedaços de ladrilhos que revestiam o chão.

Uma forma de evitar a destruição do prédio era tombá-lo como patrimônio histórico e cultural. Hoje, ele poderia ser um museu da História da Medicina no Brasil, por exemplo.

Olhar Virtual: O senhor relata no livro o período em que a Faculdade ficou alojada na Praia Vermelha (1918–1972), incluindo o período de repressão militar. Como foram os anos de ditadura militar para a Nacional de Medicina?

Naquele tempo, qualquer um podia denunciar um professor ou um aluno. O diretor da Faculdade era responsável por tudo. Se um paraninfo fizesse um discurso contra o governo nas formaturas, a responsabilidade era do diretor. Ele tinha que ler e dar o aval para os discursos. A preocupação maior dos professores era proteger os alunos.

Um momento difícil foi o massacre da Praia Vermelha; na verdade, não houve mortos, mas foi uma exibição extrema de violência e brutalidade.

Olhar Virtual: De que maneira o livro contribui para a memória da Faculdade de Medicina, que completou 200 anos este ano?

Existem poucos livros sobre a memória da Faculdade de Medicina. Essa obra recupera bastante dessa memória. Tenho a esperança de ter contemplado no livro toda a história da Faculdade de Medicina, que sempre teve prestígio nacional e internacional.

 

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