De Olho na Mídia

E se não fossem Travestis?

Priscila Sequeira

imagem ponto de vista

O escândalo protagonizado pelo jogador Ronaldo Fenômeno foi o assunto principal da grande mídia durante toda a semana passada, sendo manchete não só no Brasil, mas em diversos outros países. O jogador, que possui um contrato vitalício com a  Nike e cujo contrato com o time de futebol italiano Milan se encerra em junho deste ano, denunciou, por tentativa de extorsão, três travestis com quem passara algumas horas num motel da Barra da Tijuca, na madrugada do dia 28 de abril. Na versão do Fenômeno, Andréia Albertini (ou André Luis Albertino) teria pedido R$ 50 mil para não revelar à imprensa o ocorrido e não teria tido relação sexual com os travestis, que pensara, inicialmente, serem mulheres. Já segundo Andréia, o jogador teria lhe dado o dinheiro para que ela fosse buscar cocaína na Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio, e teria se relacionado com suas duas colegas que ficaram no motel.

O caso tomou enorme proporção e Ronaldo tornou-se alvo de chacotas em relação à sua orientação sexual. Se os três indivíduos que estavam com Ronaldo não fossem travestis, mas sim garotas de programa, haveria essa mobilização internacional em torno do episódio?

De acordo com Miriam Goldenberg, antropóloga e professora do Departamento de Antropologia Cultural (IFCS-UFRJ), dois motivos parecem ter chamado a atenção do público para o ocorrido. Em primeiro lugar, o fato de existir uma cultura extremamente machista, moralista e conservadora a respeito da sexualidade masculina; e, em segundo, haver uma cultura em que o homem tem que provar permanentemente que é "homem de verdade". Nessa cultura, qualquer suspeita de preferências sexuais desviantes do padrão acaba levantando suspeita sobre a sua masculinidade.

― No mundo da competição entre homens, como no mundo do futebol, essa cultura é mais exacerbada ainda. Neste caso, o fato de Ronaldo não estar com prostitutas ou garotas de programa, o que seria até valorizado em um meio em que prevalecem valores e comportamentos machistas, criou uma verdadeira comoção nacional e internacional. Como um ídolo, um homem rico e poderoso como Ronaldo, que já provou que pode ter as mulheres mais belas do planeta, estava com travestis? Além disso, não só a masculinidade de Ronaldo foi questionada, mas a de todos os homens que sempre tiveram verdadeira admiração e até identificação com o modelo de "ser homem" que ele representa: o jogador milionário, que namora lindas mulheres, que enfrenta os problemas com coragem etc. Portanto, o caso Ronaldo está provocando todos aqueles homens que insistem em corresponder a um modelo de masculinidade hegemônica, modelo muito bem representado por Ronaldo até recentemente. Não é à toa que seu apelido é Ronaldo Fenômeno, não só de bola, mas de sucesso, poder e prestígio social.  – explica Miriam.

É, justamente, em função dessa notoriedade, do poder, do prestígio e da riqueza que, para o professor João Ferreira, do Instituto de Psiquiatria (IPUB/ UFRJ), o encontro de Ronaldo com os travestis obteve tanta repercussão. Em sua opinião, qualquer ocorrência com ele chamaria atenção e o mesmo teria ocorrido com outros jogadores, como Romário, Ronaldinho Gaúcho e Kaká. De acordo com o professor, no entanto, o aspecto mais importante do caso foi o menos focado pela mídia:

― O único fato público da situação do Ronaldo foi a tentativa de extorsão. Isso é o que menos chamou atenção e foi o único fato ilícito. O resto faz parte da vida privada, não deveria ser motivo de notícia para ninguém, a não ser para o jogador e para quem viveu isso. Ser homossexual não é crime, vender seus serviços, desde que você seja maior de idade e saiba se auto-determinar, não é crime, portanto, ser prostituto homossexual não é crime nenhum. Assim como o Ronaldo comprar esses serviços também não é crime. A única coisa ilícita é a tentativa de extorsão e foi dada pouca atenção para isso, e sim para o fato de que o Ronaldo estaria com travestis, num motel, e teria, possivelmente, usado drogas, o que não ficou provado.

Segundo Miriam Goldenberg, o alarde nos meios de comunicação se deve à cultura das celebridades, que se alimenta de casos "exóticos" para vender jornais, revistas e elevar a audiência dos programas de TV.

― Há quase um prazer sádico em ver pessoas famosas, ricas e poderosas passarem por situações humilhantes ou degradantes. Esse caso denuncia o sadismo embutido nessa cultura da celebridade que se alimenta de fatos como este para denegrir imagens e reputações duramente conquistadas com talento, esforço e até sacrifício. –esclarece a antropóloga.

Essa curiosidade é aliada à veiculação de informações que, para o professor João, ainda são deturpadas e reforçam o preconceito:

― De onde você acha que vem o riso de “Casseta & Planeta”, por exemplo, senão do travesti, do homossexual, do aleijado, do gago, do defeituoso? Qual é o riso que não é feito de escárnio? O jornal vai vender o quê? O Ronaldo estava com as pessoas erradas, no lugar errado, na hora errada, e, para um jornal, ‘the bad news are the good news’.