Ponto de Vista

O índice cresceu, mas a realidade é a mesma

Nathália Perdomo

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Estar no grupo dos países de alto desenvolvimento humano causou entusiasmo em muitos governantes. Os mesmos que pretendem utilizar essa “conquista” em favor de seus mandatos. No entanto, superar a arbitrária barreira de 0,8 (linha de corte), não confere ao país uma sociedade mais igualitária.

O Bolsa Família e outros programas de transferências condicionadas de renda reduziram níveis extremos de pobreza. No entanto, o país evoluiu muito menos do que poderia, ficando atrás de países como a Arábia Saudita e a Albânia no ranking mundial.

Para esclarecer e avaliar os Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil, o Olhar Virtual entrevistou Marcelo Paixão, professor do Instituto de Economia da UFRJ.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pode ser considerado o melhor indicador da realidade de um país?

O IDH é considerado um índice sintético e consiste na fusão de vários indicadores singulares que procuram envolver dimensões da realidade de um povo em determinado país: rendimento, escolaridade e longevidade. A vantagem desse método é utilizar um indicador de classificação que não leve em consideração apenas uma variável de natureza econômica. É possível ter um país com PIB per capita alto e nível de escolaridade baixo ou vice-versa. O objetivo do IDH, portanto, é ponderar a dimensão “rendimento”, por outras duas que são importantes. Muitas vezes um país pobre tem altos indicadores sociais, como é o caso de Cuba.

O IDH tenta alterar a concepção de que o bem-estar do homem depende apenas da renda, mas de dar utilidade ao dinheiro, de ter um padrão mínimo de cultura. Uma pessoa que ganha na loteria, mas não sabe ler, vai ter muita dificuldade devido a sua desfuncionalidade. Sua capacidade de fruição vai ser muito limitada.

O que significa, de fato, a inserção do Brasil no grupo dos países de alto desenvolvimento humano?

O Brasil chegou a um nível considerado alto: 0,8. Mas por que 0,8 é bom e 0,799 não é? Muitas vezes as pessoas utilizam esses indicadores com o intuito de conhecer uma realidade, mas há quem use para fazer propaganda política. Não é a primeira vez que o Brasil alcança esse número. Isso aconteceu em 1998, mas nesse ano, uma mudança metodológica do indicador de rendimento produziu um rebaixamento do Brasil. O então presidente Fernando Henrique constestou, porque ele queria mostrar que em seu mandato o IDH foi elevado. O mesmo está fazendo o presidente Lula. É uma medida como tantas outras e vem ganhando visibilidade muito grande, mas ninguém vai ficar mais ou menos feliz por conta desse resultado. A questão reside em saber qual foi o comportamento recente do país para entender o que é necessário manter ou mudar.

O IDH brasileiro vem subindo ano após ano, o que é uma tendência mundial. À exceção os países que estão vivendo tragédias sociais coletivas (epidemia do HIV, crises econômicas), onde o IDH decresce. No Brasil, ocorreu um aumento da taxa de alfabetização da população acima de 15 anos de idade e da esperança de vida, o que melhorou o indicador de rendimento. Além da revisão metodológica do PIB que contribuiu para a elevação do IDH. Apesar das mudanças, o Brasil não conseguiu acompanhar o ritmo de outros países e caiu da 67º posição para a 70º colocação este ano.

Quais aspectos devem ser priorizados para o Brasil se aproximar do patamar de países vizinhos como Argentina, Chile, México e Cuba?

O Brasil teria que aumentar a longevidade em 4 anos para empatar com a Argentina. Estimativas mostram que jovens, do sexo masculino, perdem, em média, dois anos de vida por conta de homicídio. A epidemia do HIV tem uma alta incidência, principalmente entre as mulheres de faixa etária mais baixa. O nível de mortalidade infantil diminuiu, significativamente, nos últimos 20 anos. Antes girava em torno de 50 por 100 mil e hoje está na casa de 25 por 100 mil. Mas ainda é alto se comparado ao Chile, onde a taxa é de 7 por 100 mil. Se esses indicadores não melhorarem o país vai ficar sempre atrás, até mesmo do México, de contrastes tão fortes como o Brasil. É preciso dar saltos no plano da saúde pública, incluindo os homicídios, que por uma razão ininteligível não é entendido como política de saúde pública e sim como problema de militares. Muitas pessoas ainda acreditam que a redução da violência será feita com guerra e não com medidas profiláticas aliadas à educação. 

No Brasil, os indicadores de escolaridade melhoram, mas os que medem a qualidade do ensino pioram. O Sistema de Avaliação do Ensino Básico, SAEB, por exemplo, desde sua criação, em 1995, revela que as notas de disciplinas básicas, como matemática e português, caem progressivamente. Isso mostra que não há sucesso em combinar uma extensão da rede de ensino com a melhoria da qualidade da educação. Muitos alunos concluem o ciclo escolar sem ter proficiência. Os indicadores podem sinalizar uma realidade que na prática não funciona.

Apesar de ser uma boa forma para sinalizar investimentos e analisar progressos, o IDH não é garantia de uma boa política.

Programas de transferências condicionadas de renda podem ser considerados medidas eficientes para reduzir a vulnerabilidade da população mais pobre. É possível, através deles, combinar crescimento econômico e melhoria na distribuição de renda?

Não adianta estimular as famílias a procurar determinados serviços e não oferecer qualidade. O cidadão é obrigado a apresentar a carteira de vacinação em dia, mas se não houver saneamento básico ele fica vulnerável a outras doenças. Por enquanto, as políticas têm características positivas, mas pode ser que daqui a uns anos deixem de tê-las. A pior coisa que poderia ocorrer seria a transformação definitiva dessas políticas assistencialistas em mecanismos eleitoreiros, reeditando o coronelismo de forma mais cruel, operando na necessidade extrema dos eleitores em troca de voto.

O Bolsa Família atende 11 milhões de famílias, presta a elas diversos benefícios, o que produz um efeito positivo para reduzir níveis mais extremos de pobreza. Existe ainda, desde a época do FHC, a política de valorização do salário mínimo, que aumentou no mandato do Lula. É um valor que sinaliza os contratos no setor informal. A diarista, o biscateiro, o lavador de carros, muitas vezes estabelecem seus contratos referenciados no valor do salário mínimo.

Se o Bolsa Família é um benefício condicionado, as crianças vão ao colégio e o IDH capta isso. O aumento da escolaridade reflete nas práticas profiláticas (a mortalidade infantil cai se a pessoa aprende que tem que lavar as mãos, por exemplo), mas seus efeitos não são diretos.

Como você avalia o governo do presidente Lula, em termos de crescimento econômico, saúde pública e política educacional?

O número de desempregados diminuiu, a renda do trabalhador aumentou e as relações de trabalho formal cresceram. A economia brasileira, assim como a mundial, está bastante aquecida devido ao “efeito China”. Em contrapartida, as políticas no campo educacional estão muito aquém do que poderiam estar, considerando inclusive a base social do governo, que tem sustentação forte na área da educação.

Os indicadores sociais de educação melhoraram mais intensamente no governo do Fernando Henrique Cardoso do que no governo atual. Taxa de escolarizados, queda do analfabetismo, aumento dos anos médios de estudo. Parece que houve investimento mais eficaz, apesar de o FHC partir de uma base muito pior. Neste caso, a tendência é uma melhoria dos indicadores a taxas crescentes. Mas isso explica pouco, porque os indicadores sociais no Brasil ainda são muito ruins.

Na faixa etária de 7 a 14 anos o acesso à escola é quase universal. Porém, depois dos 14 anos há um alto índice de evasão. Nesse plano, o governo ainda patina, apesar das iniciativas que vieram sendo seguidas. A sociedade brasileira precisa enfrentar de frente a equação perversa que indica que toda vez que um serviço pretende atender a todo mundo ele perde a qualidade. Isso vale para escolas, hospitais e previdência. Por conta disso, as classes médias abdicam dos serviços públicos e investem nos privados, de qualidade duvidosa. 

Segundo levantamento da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), o índice de pobreza na América Latina é o menor dos últimos 17 anos. Você associa esse resultado aos segmentos de esquerda que vêm governando alguns países latino-americanos?

Na América do Sul, há pelo menos 7 países com recortes de esquerda, mas as políticas promovidas por esses governantes não diferem muito do que era praticado nos governos anteriores, de direita. O Lula, por exemplo, estendeu o Bolsa Família, mas a concepção de uma ação focada no combate à pobreza já existia. O crescimento econômico da região também opera nesse combate pela via do mercado de trabalho.

A economia mundial está aquecida e a América Latina, de alguma forma, está surfando nessa onda. A política do Chávez pode ter sido efetiva para reduzir a pobreza, mas em grande medida só pode existir porque em um período recente, com o crescimento da economia mundial, o preço do barril de petróleo chegou a oitenta dólares.

Os governantes do país devem ter mais atenção a alguma questão específica?

As taxas de homicídio são elevadas, principalmente nas periferias dos grandes centros. Neste ponto, o próprio governo emite sinalizações muito contraditórias. Por um lado investe em políticas sociais, mas por outro, aposta na via repressiva. Em 2003, o número de homicídios chegava a 40 mil. Desde então, caiu para 37 mil, mas ainda é alarmante. Em 10 anos, são 370 mil pessoas mortas. Isso é uma patologia social que não está sendo enfrentada com a seriedade merecida. Quando a classe média sofre violência é publicado nos jornais. E a violência oculta? É um sintoma do baixo grau de coesão social. É um indicador que deve passar por uma séria revisão e ser assumido como uma política de estado. A concordância velada da classe média perante os massacres torna potencialmente cada pessoa desse país cúmplice do que acontece.