Olho no Olho

Transportes: privatização ou investimento estatal?

Monique Pereira e Philippe Noguchi

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Ganhou força, recentemente, a noção de que os problemas relativos à inflação e ao crescimento sustentado só serão solucionados após o devido ajuste das finanças do setor público. Muitas vezes a saída encontrada pelo governo é a privatização de empresas e serviços estatais, medida divisora de opiniões, há quem nelas enxergue uma saída para a “sucatização”, e há quem não abdique da autonomia estatal nos serviços fundamentais da sociedade.

Esse debate é ainda maior no que refere aos transportes, principalmente no Brasil, onde as BRs representam um setor estratégico da economia, considerando a imensidão territorial. Reunidas as rodovias federais e estaduais, o Brasil apresenta a maior rede rodoviária em quilômetros sob concessão privada no mundo.

Sendo a malha viária um bem, teoricamente, de natureza pública, pelos quais toda a sociedade paga impostos, a cobrança de um pedágio urbano não representaria uma bi-tributação? Para discutir essa questão, o Olhar Virtual entrevistou o engenheiro Rômulo Orrico, professor do Programa de Engenharia de Transportes da COPPE/UFRJ, e Marcelo Paixão, coordenador e professor de Graduação do Instituto de Economia da UFRJ. Confira.

Rômulo Orrico

“Quando se fala em privatização, se fala primeiramente em investimento. Devemos separar o que significa cobrar pelo uso de rodovias e delegar à iniciativa privada esta tarefa. E por trás desta lógica o fundamental é considerar as bases, ou seja, a forma como isto é feito. Esse foi o grande questionamento durante o governo Fernando Henrique, alvo de críticas pela forma dos processos de privatização. Não houve por exemplo um bom planejamento em relação à localização dos postos de pedágios e até hoje temos problemas muito sérios neste sentido, há postos dividindo duas cidades no meio ou etapas da produção industrial, por exemplo. Cobrar pelo pedágio ou pelo uso de infra-estrutura gera uma reação muito natural das pessoas. Ninguém gosta de pagar por algo considerado de seu direito natural. Uma coisa é cobrar e reclamar da ineficiência de governos e governantes, do uso inadequado de impostos que já pagamos. Outra coisa é pagar pelo uso de uma infra-estrutura considerada pública. Em que medida isso é razoável? Esta é a questão central.

As infra-estruturas são de repercussão muito forte na vida de toda a sociedade, ainda mais evidente na infra-estrutura de transporte. Deve-se observar que a sociedade teoricamente mantém essas estruturas como um todo, em todos os impostos direcionados aos cofres públicos; mas há de se reconhecer que essas estruturas de transportes beneficiam mais especificamente alguns, embora sejam de todos.

Pergunta-se, por exemplo, ao fazer despesas na construção de um metrô, quem estaria de fato se beneficiando. Seriam somente os usuários do metrô? Neste caso caberia a eles pagar a conta? Será que os motoristas também não estariam se beneficiando por encontrarem ruas mais livres? Neste caso, se os motoristas não contribuírem para esta conta, os usuários do metrô estariam subsidiando os automobilistas. Seria um subsídio perverso. Dessa forma é plausível uma parte do ônus ser atribuída a quem se beneficia mais diretamente, liberar um pouco da carga sobre toda a sociedade que não utiliza freqüentemente deste bem, nem mesmo grau; isso, por si só, já justifica uma tarifação.

Não significa, porém, que esta tarifação encontra-se livre de regulamentação. Não é permitido dentro da legislação brasileira uma empresa ter controle absoluto sobre esses preços, pois desta forma ela atuaria em monopólio. Nas economias ocidentais somente o poder público está apto a monopolizar algum serviço. Por razões diversas, não é possível termos mais de uma empresa oferecendo determinado serviço e, nestes casos, o poder público é obrigado a exercer um controle muito mais forte, para evitar uma ação monopolista desmedida.

Há vários tipos de controle. Um controle estrito estabelece as coordenadas exatas às empresas, com o cuidado de não imputar prejuízo. Outras situações têm uma faixa de atuação que estabelece limites de ação, de forma independente.

Numa situação na qual o usuário tem pouca ou nenhuma opção viável, o poder público deve garantir que esse contrato com a iniciativa privada gere uma rentabilidade razoável e ao mesmo tempo seja justo. Isso é possível, iniciado no processo licitatório, em tentar modelar um processo competitivo e sistemas de regulamentação e controle que também sejam verificadores desta competência da empresa para que ela se comporte como estivesse em ambiente competitivo embora não esteja. A questão trata, portanto, de não ferir um preceito fundamental da legislação, a proibição de monopólio.

Marcelo Paixão

A economia brasileira, a partir dos anos 1940, tinha no Estado o seu carro chefe. O governo se responsabilizava pelos investimentos de longa maturação, isto é, de retorno econômico não imediato. Foi assim estabelecido porque se sabia, esse tipo de investimento não atrai a empresa privada.

Nos anos 1980, quando o Brasil entrou na crise depois do Milagre Econômico, o Estado perdeu capacidade de investimento e o setor privado não demonstrou disposição para ingressar no plano de desenvolvimento do Brasil. Logo, toda a infra-estrutura do país foi se deteriorando.

Durante os anos 1990, especulou-se que o controle da inflação poderia ser o fator de estímulo para investimentos do poder privado. A proposta do governo Fernando Henrique foi isentar o Estado de certas obrigações e repassá-las às Agências Reguladoras, autônomas em relação ao Estado, cumpridoras do papel de fiscalizadoras do investidor privado e detentoras do poder de controle deste.

Já a proposta do Governo Lula tentou incrementar a infra-estrutura produtiva do país, equacionando esse problema com parcerias mistas —Estado e empresa dividem o investimento — ou privatizações, originárias do governo anterior.

Aparentemente, a novidade está em o governo conseguir montar um equacionamento um pouco mais amigável na questão dos consumidores, isto é, garantiu condições de competição no leilão das estradas federais de tal maneira que grupos específicos de determinados cartéis não suplantassem a concorrência e impusessem preços maiores.

Porém, comprar uma estrada já pronta significa investimentos voltados para a manutenção dela, portanto o retorno econômico é rápido. O problema é saber até que ponto esse novo procedimento surtirá efeito em investimentos de longo prazo. Enquanto o empresariado brasileiro possuir uma mentalidade tão imediatista como sempre apresentou, dificilmente o setor privado servirá de carro chefe nesses investimentos de longa maturação.