Ponto de Vista

Educar: fazer o que se diz e dizer o que se faz

Priscilla Bastos

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A mídia brasileira, e mais diretamente a carioca, deu ênfase ao caso dos jovens de classe média que espancaram, na Barra da Tijuca, a empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto, quando deixava seu local de trabalho. Não houve um motivo e nenhuma explicação concreta foi dada para a atitude, uma vez que os rapazes nem sequer conheciam a vítima. A situação reacendeu a discussão sobre a impunidade, a má educação e, principalmente, inclusão. No caso de Sirley, não se pode dizer que os agressores são excluídos socialmente. Para procurar entender e analisar a questão, o Olhar Virtual conversou com a professora da Faculdade de Educação (FE/UFRJ), Mônica Pereira dos Santos, que finalizou uma pesquisa de dois anos sobre a formação de futuros professores com relação a uma orientação inclusiva em educação.

"Certamente há uma carência de limites na educação que esses jovens que agrediram a empregada doméstica receberam. Qualquer teórico da aprendizagem mostra que uma educação sem limites não é uma educação completa, porque não socializa apropriadamente o sujeito. Deveria fazer parte de nossa educação social, por assim dizer, aprendermos os padrões sociais de certo e errado e os códigos morais de nossa sociedade para que, a ela, possamos pertencer e dela possamos participar apropriadamente.

Em um primeiro momento, os jovens disseram ter batido na doméstica por acharem que se tratava de uma prostituta. Este tipo de declaração revela, sem dúvida, atitudes preconceituosas, uma vez mais decorrentes da falta, ou possivelmente, de uma distorção, de uma educação para os valores sociais e morais. Os pais destes atuais jovens são todos frutos de uma educação militarista reinante entre os anos 60 e quase 90, em que a hipocrisia, o poder pela força, pelo dinheiro e pela influência política imperaram. De certa maneira, isso ainda não terminou, ao contrário. Vivemos, desde a colonização, mas especialmente desde o militarismo, uma inversão em que deixamos de ter nosso puro valor como seres humanos para sermos cada vez mais valorizados por aquilo que temos, materialmente falando.

A educação que um aluno recebe na escola pode minimizar uma ruim que ele receba em casa, mas não pode, nem deve, substituir. É fundamental que a família seja chamada a cumprir o seu papel, em parceria com a educação escolar. O problema é que vivemos hoje, como já afirmei, uma inversão total de valores e uma distorção absurda no que diz respeito às obrigações de cada um. No entanto, mais do que o acompanhamento dos pais no processo de amadurecimento dos filhos, falta exemplo. Se os pais lhes dão até uma boa educação moral em palavras, mas são hipócritas e agem de modo absolutamente incoerente com esta educação, o que prevalece são os exemplos. O que as teorias da aprendizagem mostram é que, na educação, em geral, e na doméstica, em particular, só fazer ou só dizer não resolve. O que se precisa é ser coerente: fazer o que se diz e dizer o que se faz.

Além disso, vivemos, igualmente, uma impunidade histórica; isso é muito grave. Lidamos com o outro como se fossem mercadorias, tal como lidamos com coisas e objetos, que, nesta cultura ocidental exacerbadamente capitalista, tornam-se descartáveis, meros brinquedos e marionetes nas mãos dos que detêm a posse, o dinheiro, a influência, o poder. Pessoas são descartáveis, porque não têm “valor” — refiro-me a esses valores inversos —, ou seja, por não serem donos de posses, por não deterem influência sobre nada ou ninguém. Junte-se a isso a impunidade à qual me referi, e pronto: está “ok” espancar, matar, zombar, excluir, descartar os despossuídos.

A inclusão na universidade, em geral, não é trabalhada, nem abordada. Quando sim, é equivocada: associada somente a alunos com deficiências, o que não seria o caso. Este alunado também deve ser motivo de preocupação, mas não pode, nem de longe, ser o principal motivo. A exclusão por que passam nossos alunos, deficientes ou não, é de ordem muito mais genérica: falta de dinheiro para passagens, ter que estudar e trabalhar ao mesmo tempo, acesso a facilidades como computadores, banheiros limpos e funcionando, água, bandejão etc. Sem falar na que considero a principal, que é a atitudinal. Nossos funcionários, os mais criticados pela nossa amostra, adotam atitudes execráveis para com os alunos. Segundo alguns de nossos relatos, seriam excelentes motivos de processo judicial, para dizer o mínimo. Nosso professorado, igualmente, e salvas as exceções, é totalmente despreparado para lidar com a diversidade e a diferença em sala de aula — ainda vêem os alunos como se fossem todos um ser só, ainda acreditam naquilo que nunca foi fato: que a turma é homogênea e que todos aprendem da mesma maneira. São professores que não inovam, não se preocupam em perceber que o aluno é o motivo pelo qual existe o ensino, portanto não diversificam sua pedagogia, sequer têm alguma estratégia pedagógica.

Quanto aos alunos, estes recebem muito bem a idéia de inclusão. A maioria se viu, ou se vê, em nossa pesquisa, em situação de exclusão em um ou outro momento de sua trajetória acadêmica e acredita que somente uma preocupação “oficial” com tais questões por partes das instituições de ensino poderia mudar alguma coisa a seu favor. No entanto, lamentavelmente, muitos deles são descrentes de que tais mudanças possam acontecer de verdade. O que pretendemos com esta pesquisa é justamente mostrar que a mudança é possível, ainda que seja dolorosa. Dolorosa porque mexe, inevitavelmente, com a cultura, as políticas e as práticas institucionais. Quando se mexe na cultura da instituição, mexe-se em seus valores e naquilo que há de mais arraigado, e que nem sempre é explícito. Isso “dói” porque provoca mudanças e reflexões para as quais nem sempre as instituições e seus respectivos membros estão preparados.

A pesquisa teve por objetivo investigar a formação de futuros professores com relação a uma orientação “inclusiva” em educação, ou seja, saber se os atuais alunos e futuros professores estavam manifestando preocupações com os esforços, visando minimizar as barreiras que pudessem estar prejudicando sua plena participação na vida acadêmica. Utilizamo-nos de várias técnicas de coleta de dados para tal (análise documental, observações, questionários e grupos focais) ao longo de dois anos, e concluímos que a universidade ainda tem muito o que rever em seu cotidiano para diminuir a enorme distância entre sua administração, suas práticas e seus estudantes."