Olho no Olho

Alguém já mexeu no seu bumbum?

Kadu Cayres

imagem olho no olho

Calma! Mediante o título, gostaria de ressaltar que a reportagem a seguir não contém nenhum teor pornográfico. Esta frase foi retirada de um questionário, distribuído e criado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Caetano do Sul (São Paulo), que tinha como objetivo descobrir se crianças e adolescentes de escolas públicas eram vítimas de abuso sexual. Isso gerou, nos pais, certa revolta, pois os mesmos defenderam a postura de que as perguntas eram pesadas demais.

As crianças de primeira a quarta série teriam que responder questões como: Você já viu alguém pelado? Alguém já mexeu no seu bumbum? Quem foi?

Para os adolescentes, perguntas sobre a orientação sexual. Você é homossexual ou heterossexual? Já sofreu algum tipo de discriminação por ser gay ou lésbica?

Interessado em debater o assunto, o Olhar Virtual convidou a professora da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ), Rosana Morgado e alguns pais, para debaterem a questão.

Os pais

“Essa é uma situação muito delicada. As perguntas feitas às crianças são indiretas, logo podem ser mais fácies de responder, podem facilitar a descoberta através de um questionário (...) Já com adolescentes é diferente. A adolescência é uma fase muito complicada. São inúmeras descobertas, curiosidades à tona. Acho que jamais responderiam sinceramente por medo ou preconceito (...) Se na escola da minha filha de 7 anos fosse aplicado um questionário desta natureza, acharia muito estranho e não concordaria” — Sandra Cristina, vendedora.

“Não concordo com esse tipo de pesquisa. Acredito que a existência de profissionais qualificados e capacitados nas escolas para a percepção do problema, a presença de uma escuta adequada seguida da valorização da fala da criança, a observação atenta a mudanças de comportamento e uma relação muita próxima dos responsáveis através da criação de fóruns de discussão sobre o tema são algumas formas mais adequadas de detectar e notificar os órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente a respeito desses casos de violência.

A pessoa vítima de abuso sexual precisa de confiança, segurança e apoio para que a situação de violência seja externalizada.

Se esse questionário fosse aplicado na escola do meu filho, discordaria de imediato. Acredito que seria necessária uma ampla discussão com esclarecimentos sobre o objetivo da pesquisa para que os responsáveis pudessem opinar contra ou a favor da sua aplicação” — o entrevistado pediu para não ser identificado.

Rosana Morgado
professora da ESS

“O abuso sexual como uma das expressões da violência doméstica é um fenômeno que atinge crianças e adolescentes de todas as classes sociais em todas as sociedades, das menos as mais desenvolvidas economicamente. Contudo, ainda é um fenômeno que por acontecer no âmbito das relações familiares, com ou sem laços de consangüinidade, apresenta-se encoberto pelo “muro do silêncio” que tem como um de seus objetivos, proteger a instituição família. Os Conselhos de Direitos têm assim um papel fundamental na formulação e acompanhamento de políticas públicas de proteção. A preocupação, portanto, é procedente e de extrema relevância, mas a iniciativa mostrada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Caetano do Sul, não parece a mais adequada.

O questionário é um rico instrumento de investigação para a obtenção de dados, mas inadequado para a identificação deste tipo de fenômeno. Perguntas que visam identificar violência sexual, precisam ser cuidadosamente elaboradas por profissionais treinados, pois podem induzir a criança a uma resposta que não corresponda plenamente a verdade, o que já desqualificaria seu depoimento juridicamente. Além disso, elas (as perguntas) devem ser feitas em um momento isolado e realizadas em ambiente que garanta a privacidade.

Crianças e adolescentes que sofrem abuso sexual experimentam sentimentos ambíguos quanto a denunciarem seus agressores, pois na maioria das vezes o agressor ocupa um lugar privilegiado de confiança e de poder em relação a elas. Por vezes, já fizeram a denúncia para outros familiares e mesmo professores ou médicos e não foram “escutados”, foram desqualificados. Além disto, muitas vezes sentem-se culpados e envergonhados, internalizando uma culpa que não têm, mas que lhes é atribuída.

Existem outros métodos para se fazer esse tipo de pesquisa. Penso que devemos trabalhar com várias iniciativas de forma articulada. A criança que está na escola é a mesma que em algum momento usa os serviços de saúde e pode também demandar serviços no âmbito da assistência. Estes campos devem trabalhar de forma integrada entre si e junto aos Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos e o campo jurídico, desenvolvendo ações de prevenção, proteção as crianças e adolescentes e suas famílias, e responsabilização dos agressores. A qualificação, principalmente, de professores e médicos para identificação do abuso sexual e de outras formas de violência é outra estratégia de fundamental importância.

O trabalho interdisciplinar e intersetorial garante, assim, consistência e continuidade no acompanhamento dos casos de violência, permitindo uma base sólida para a estruturação de políticas públicas”.