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Edição 288      16 de março de 2010


Entrelinhas

Gabinete Ocidental: o espaço dos pensadores

Vanessa Sol

Ficções de um Gabinete Ocidental: Ensaios de História e Literatura é uma coletânea que reúne 30 ensaios de Marco Lucchesi, escritor e professor da Faculdade de Letras (FL–UFRJ). A obra recria o ambiente dos antigos gabinetes, salas de estudos onde pesquisadores, cientistas e filósofos se reuniam para fugir das agitações do mundo e se dedicarem ao culto das Letras, das Artes e do pensamento.

Apaixonado pela liberdade poética que o ensaio permite, Lucchesi utilizou essa forma de expressão para abordar os locais de prestígio entre os intelectuais do passado através da perspectiva ocidental, apontando os erros cometidos pelos ocidentais e tentando propor um diálogo entre Ocidente e Oriente. Para o escritor, essa perspectiva “orienta a reflexão da Literatura e do mundo”.

Lucchesi exalta a Literatura como campo de conhecimento por excelência, ao mesmo tempo em que representa um processo de universalização pela sua extraterritorialidade. “A Literatura é um jogo musical extremamente convidativo ao diálogo, que proponho em meus livros”, destaca. 

Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de escrever o livro?
 
Marco Lucchesi: Há uma paixão minha pelo ensaio, que é compreendido dentro de uma possibilidade extremamente ampla de sonoridades. A forma ensaio sempre me atraiu dentre outras, porque nela cabem outras formas de texto. No ensaio cabe a possibilidade do risco e, por isso mesmo, indagam-se, a partir daquele texto, todas as latências e virtualidades que você vai buscar na leitura dos livros.

Ficções de um Gabinete Ocidental trata indiretamente do valor do ensaio, ou melhor, o exercício do significado do resgate de uma ensaística. Em momento algum ofereço a minha como modelo, mas é aquela que eu possuo, e isso reflete a tentativa de trazer outros elementos para essa forma sinfônica de pensamento.

Olhar Virtual: Como o livro está organizado?
 
Marco Lucchesi: São 30 ensaios que nasceram de demandas internas que coincidiam com demandas externas. Mas o desafio, de fato, era recuperar tudo isso de modo que essa pluralidade pudesse encontrar  ordenação. A estrutura de um livro como este é o que me deixa desafiado.

É mais ou menos o que eu faço com os livros de poesia: reúno uma série de questões coordenadas por situações. Uma parte do livro é toda dedica à obra de Machado de Assis. É claro que todos os ensaios foram revistos do ponto de vista das informações, do conteúdo, do estilo, para que o livro fosse aberto e flutuasse numa abertura determinada, conversasse entre as partes, por mais aparentemente dispersas que elas possam se demonstrar.

Olhar Virtual: Os gabinetes eram salas de estudos dos humanistas no passado. Por que abordar os gabinetes? Como eram esses locais?
 
Marco Lucchesi: Eu escrevi esse livro pensando no Ocidente, daí a ideia de um gabinete ocidental. Esse gabinete pode ser o espaço da biblioteca, do quarto, da rua, do campo ou nem um espaço, inclusive. Essa liberdade de pensar um gabinete para além de seus próprios muros. Portanto, um gabinete ocidental já era a marca, a distinção de uma perspectiva de alguém que está pensando os livros a partir do Ocidente e a partir de um processo bem mais amplo que está nas entrelinhas do Ocidente. Não que o Oriente esteja ausente do livro – há muitos anos venho trabalhando com as questões do mundo oriental, principalmente com o Oriente Médio –, mas abordo as formas de gabinete do Ocidente para demonstrar que existe um ponto de partida e que ele possui  determinada identidade e dialoga para além de si próprio. É a perspectiva praticamente ficcional de um gabinete em cujo centro se orienta a reflexão da Literatura e do mundo. Eu não faço distinção entre o mundo dos livros e os livros do mundo. O fato é que com a leitura do livro você terá olhos exercitados para a leitura, sendo capaz de articular tanto as páginas do livro do mundo quanto as páginas do mundo dos livros, sem que uma prevaleça sobre a outra, mas reforçando e fortificando o diálogo. 
 
Olhar Virtual: O senhor considera sua obra um olhar sobre a História e a Literatura?

Marco Lucchesi: Há alguns sentimentos que subjazem a construção do livro. Eu me formei em História e depois prossegui pela Literatura e pela Filosofia. Essa demanda temporal é extremamente agradável porque dá, em certo sentido, um horizonte importante: a materialidade do processo histórico, que não quero perder de vista. A Literatura ao mesmo tempo se articula dentro do tecido histórico e não é necessariamente filha da História. Então, essa relação de dois rostos, o rosto da Literatura e o rosto da História, produz um terceiro rosto, que é o complexo encontro dos dois anteriores. 
 
Olhar Virtual: São 30 ensaios retratando o momento de reclusão de vários pensadores, escritores, entre outros. Quais o senhor destaca nesses ensaios?

Marco Lucchesi: Da História brasileira, há Machado de Assis e Euclides da Cunha, mas existem autores como Jorge de Lima, Guimarães Rosa, entre outros. Escrevi ensaios sobre esses autores porque eles me sensibilizam. Todos eles fazem parte de uma pátria particular, de um endereço que me é próprio, eu os habito e eles me habitam. É uma escolha intelectual e afetiva. Quando era muito jovem, recebi uma carta de Drummond que tinha uma frase “sentimento-ideia”, com hífen, sem cisões, sem abismos; acho que isso explica a presença das pessoas que estão no livro, desde as vivas, conhecidas por mim, às mortas, que são mais vivas que as de hoje.

Olhar Virtual: O senhor escreveu sobre o gabinete através da perspectiva do Ocidente. Que perspectiva é essa?

Marco Lucchesi: De fato, durante muitos anos eu tenho me dedicado ao estudo do mundo árabe, das culturas orientais, sobretudo dessa parte geográfica e ideológica. Tenho lutado durante muito tempo, e com armas literárias sempre, pelo diálogo entre o Ocidente e o Oriente. Parto daquela belíssima concepção de Goethe que diz: “Deus é o Oriente. Deus é o Ocidente”. É claro que eu faço uma defesa muito arraigada da alteridade, do lugar do outro, sobretudo desse outro oriental. Porém, reconheço e tenho criticado com veemência todos os erros que o Ocidente produziu ao longo dos séculos. No entanto, é impossível me imaginar fora de um horizonte ocidental, mesmo com todas as críticas que faço ao Ocidente, com todas as contradições, senão cairia numa espécie de irracionalismo, negando o que lhe é próprio, negando grandes conquistas de envergadura intelectual notáveis que o Oriente conseguiu realizar. Por isso, não obstante todos os aspectos, é um gabinete que fala da parte ocidental do mundo, não para defender o Ocidente, mas, com os valores ocidentais, relativizá-lo a fim de que diálogos com outras partes possam ocorrer de forma mais honesta, firme e madura. Não se faz um diálogo em busca de compreensão mútua aniquilando as diferenças que te constituem. É preciso localizar de onde está falando esse gabinete, mesmo que ele trate em algumas partes do livro do Oriente.

Olhar Virtual: Então, em Ficções de um Gabinete Ocidental, o senhor faz um diálogo entre Ocidente e Oriente?

Marco Lucchesi: Isso não é, necessariamente, a parte mais forte deste livro, mas remonta outros livros meus, como Olhos do Deserto e Caminhos do Islã. O que me interessa não é a questão política, mas o diálogo poético, mesmo que isso possa parecer utópico ou desnecessário. Eu falo sobre o gabinete do ponto de vista da poesia e tenho certeza de que num processo mais amplo de paz entre Ocidente e Oriente o diálogo e a poesia não serão pequenos. Ao contrário, são sinalizações importantes.

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