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Edição 283      19 de janeiro de 2010


Ponto de Vista

Haiti: da miséria à tragédia

Taysa Coelho

Ilustra: Caio Monteiro

O Haiti, pequeno país situado em uma ilha na América Central, tem sua história marcada pela instabilidade política, inúmeros conflitos civis e pelo maior índice de pobreza do hemisfério - tão miserável quanto o Afeganistão e o Timor Leste. Famoso por ter sido o primeiro país do mundo a abolir a escravidão, o “irmão negro renegado da América” não encontra muitos motivos para comemorar: o país, que possui cerca de 45% de sua população analfabeta, sofreu, no dia 12 de janeiro, um terremoto de magnitude 7 na escala Richter, que destruiu pelo menos 20% do território.

Estima-se que o abalo tenha resultado em 100 mil mortos e 300 mil desabrigados. Dentre as vítimas fatais estão, ao menos, 18 brasileiros, a grande maioria de militares. Isso porque, desde 2004, o Haiti vive sob cuidados da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), criada pelo Conselho de Segurança das Organizações das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de restaurar a ordem no país. Liderada pelo exército brasileiro, as forças de paz conseguiram reduzir, significativamente, os índices de violência no país nos últimos anos.

Entretanto, os índices sociais permanecem praticamente os mesmos desde a entrada das tropas. E o abalo sísmico serviu para agravar a situação e mostrar ao mundo um país sem estrutura para resgatar e curar seus feridos. A professora Sabrina Medeiros, do Programa de Pós-Graduação de História Comparada, que poucos dias antes da tragédia esteve no local, revela uma relação entre militares e sociedade que poucos conhecem, além de expor como deve ficar a situação do país nos próximos anos.

Olhar Virtual: O que uma tragédia como esta pode acarretar em uma região já tão carente?

Sabrina Medeiros: A Minustah foi uma missão muito bem-sucedida, embora não tenha conseguido alavancar os índices do próprio país - de pobreza, analfabetismo, de inserção e número de vagas na escola primária, atendimentos hospitalares, unidades de pronto-socorro. Esses números ainda são bastante baixos e podemos dizer que quase equivalentes aos da entrada da Missão. Isso decorre de ela ter um braço de segurança que era o prioritário nos primeiros anos de exercício da Operação de Paz. O elemento humanitário, o mais civil da operação, estava nesse instante na fase de transferência de poderes, ou seja, em um primeiro momento este componente acaba agindo em nome do governo. Uma missão de paz deste tipo demanda a autorização do Estado.

A segurança era estável. Havia áreas dentro de Porto Príncipe que ainda eram consideradas áreas amarelas e pouquíssimas áreas vermelhas - de acordo com a graduação entre verde, amarela e vermelhas, para áreas cada vez mais perigosas -, mas o perigo, realmente, já havia sido retirado da capital Porto Príncipe e da periferia. Estávamos, então, em uma fase de transferência de poderes para este governo legítimo. Desta forma, a Minustah começou a deixar de operacionalizar algumas das suas ações de segurança, passando-as aos Ministérios ou à Polícia Nacional do Haiti.

Agora, voltou-se à estaca zero, o que chamamos nas Ciências Políticas de “estado de natureza”. Quer dizer, a população se encontra em um estado de sobrevivência imediato, enquanto as instituições que ruíram terão ainda muito tempo para que sejam restabelecidas. A saída deste estado para o de sociedade, além de ser muito improvável em curto prazo, é uma saída muito dificultada pela situação de pobreza do país, pelo fato de este não ter uma equipe de bombeiros - até os incêndios tinham que ser resolvidos pelos batalhões da ONU -, uma equipe de defesa civil em operação e por não contar com unidades das instituições de construção de conhecimento próprio, ou seja, cujas adaptações da realidade são extremamente importantes. Então, centros – como a própria UFRJ, através de seus estudos ligados ao petróleo, da Coppe - inexistem no Haiti. Não havia sequer adaptações mínimas, do ponto de vista tecnológico ou técnico, à realidade do Haiti e aos bens de que eles dispõem.

Olhar Virtual: Como deve ficar a questão da segurança da população de Porto Príncipe?

Sabrina Medeiros: A situação é gravíssima, porque o terremoto atingiu toda a cidade. Não houve um problema localizado em uma periferia específica, em uma cidade menor ou, sequer, apenas no litoral. Mas alastrado por toda a capital. Isso que dizer que as prisões, por exemplo, foram destruídas e, com esse desmoronamento parcial, os criminosos fugiram. Há notícias e imagens de indícios do momento em que eles escaparam. Muitos desses prisioneiros, que se encontravam, atualmente, já julgados pela justiça haitiana - que é muito recente; o sistema judiciário tem sido implementado muito recentemente, da forma como é operacionalizado hoje -, eram uma minoria, inclusive porque há muitos participantes do que nós chamamos de marginalidade social. Eram considerados líderes comunitários, muitos deles braços armados de algumas gangues, que, entretanto, conviviam com a comunidade. É mais ou menos como ocorre também na cidade do Rio de Janeiro. Essas lideranças dispõem de um aparato, de armamentos muitas vezes, bem como dispõem de um controle sobre a sociedade, controle esse cerceador. Então, os pouquíssimos recursos que existem tendem a não ser distribuídos da melhor forma devido a uma violência que controla e faz parte dessa distribuição, inclusive.

Os capacetes azuis - soldados e oficiais das forças armadas, agentes da polícia civil e pessoal civil de muitos países - ainda são raros porque, afinal de contas, são sete mil homens tentando ajudar uma população que, em Porto Príncipe, deve estar estimada em quatro milhões de pessoas. O Haiti não é qualquer país que enfrenta um terremoto. Mas, sim, um que saiu de um estado falido para ser um de estado de intervenção, mesmo com a precariedade da estrutura da ONU por lá. Essa é uma particularidade deste caso, que necessita de uma ajuda humanitária expressiva.

Olhar Virtual: Este desastre pode ser uma oportunidade para que o mundo possa notar o Haiti como ele é, deixando de lado a imagem maquiada do país?

Sabrina Medeiros: Perfeitamente. Pode ser que dentro desta perspectiva absolutamente pessimista exista uma janela de oportunidades para poder tornar o Haiti um lugar onde há um projeto constante, um projeto de longo prazo. É necessário que haja a reunião de líderes que está sendo proposta pelo governo brasileiro, para que possa provocar, primeiro, a maior capacitação das frentes que estão operacionalizando a ajuda humanitária. Em segundo lugar, o aumento da verba e, por fim, a criação de um mecanismo de fiscalização - uma das maiores barreiras para que a ajuda financeira chegue ao país é o fato de este ser um dos mais corruptos do mundo na listagem de Transparência Internacional. Se não forem criados mecanismos das organizações internacionais eficientes e capazes de dar transparência dessa ajuda, seja ela de governos ou de pessoas, não será possível administrá-la em um longo prazo. Então este auxílio será temporário, ou seja, tão logo passem as notícias, quando já não interessarem mais à grande imprensa, esse apoio vai se tornar escasso.

Olhar Virtual: A Minustah aos olhos do mundo é um ato heroico, ao ajudar a levar estabilidade a um país que até pouco tempo vivia em constante conflito. Entretanto, as ocupações militares estrangeiras não são novidade para o povo haitiano. Como eles veem a atual missão de paz?

Sabrina Medeiros: Esse é um dado muito relevante. Na literatura internacionalista se fala em uma nova maneira de realizar missões de paz, à brasileira. Isso está gravado e foi dito à nossa equipe pelo embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman. Ele comentou também que existia algo ocorrendo por lá que não se pode explicar, que nenhuma outra nação conseguirá fazer, devido à índole dos brasileiros. É impressionante notar as unidades que os brasileiros instalaram - algumas das estratégias mais bem-sucedidas foram as que são chamadas de pontos fortes. Pode-se fazer uma comparação com as UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) cariocas por serem unidades militares que ficam dentro das comunidades mais violentas, mais carentes. Estas trazem para si um apelo enorme da própria comunidade. As crianças ficam na porta querendo falar incessantemente com os militares e isso provocou um movimento absolutamente grande de crianças e adolescentes falando plenamente português.

Os militares brasileiros - e isso não é um dado oficial porque eles não podem anunciar, mas fico livre de dizer isso – possuem um ou mais filhos adotivos dentro do Haiti. O que ocorre é a quase inexistência de escolas públicas, principalmente para crianças a partir de 10 anos, que precisam ir às privadas. Entretanto, as famílias têm uma cultura que prioriza o homem e, portanto, quando a comida é escassa, por exemplo, alimenta-se primeiro o homem, seguido da mulher e depois dos filhos, sendo os caçulas os últimos. Deste modo, há um número enorme de famílias que se vêm obrigadas a realizar escolhas, e parte dos filhos frequenta a escolha e outra, não. Os que não frequentam são escravizados e possuem uma expectativa de vida de 16 anos de idade. Esses são chamados de restavec - proveniente do francês rest avec -, são os restos da sociedade mesmo. O que os militares brasileiros fazem é pagar, com os próprios salários, e não com a verba brasileira, os estudos destas crianças - inclusive, não apenas elas -, e são chamados pelas escolas para acompanharem o boletim. Então, tornam-se responsáveis civis mesmo por estes meninos.

A proximidade entre os brasileiros e os haitianos é muitíssimo grande. Nós não apenas somos fiéis cumpridores do direito internacional humanitário, por sermos treinados pelo Comitê Internacional Cruz Vermelha, como nunca disparamos um tiro, apesar da pacificação ter ocorrido.

Olhar Virtual: Quanto tempo você acredita que o Haiti vá demorar a se recuperar completamente?

Sabrina Medeiros: Há a necessidade imediata da retirada dos corpos das ruas, pois se houver uma chuva, por exemplo, essa putrefação dos cadáveres pode fazer com que haja uma epidemia em grande escala. Em segundo lugar, deve-se começar o processo de remover os entulhos - algo em médio prazo, já que, estima-se, este só deve ser concluído em agosto deste ano. Por fim, há a necessidade de reconstrução institucional. Em um ano, se espera a chegada importante de especialistas e representantes da ONU - dado que 150 pessoas desapareceram. Novos gestores da organização terão que ser capacitados para poder resolver na ausência do governo ou com o governo os problemas mais imediatos.

O país está quase 20% destruído e, obviamente, essa reconstrução é necessária no longo prazo. Estima-se que se voltou atrás cerca de 10 anos no que se refere à economia. Então, em mais 10 deve ser possível chegar ao que hoje existia. Vale lembrar que o Haiti não possuía indústrias, nem agricultura efetiva e ainda vivia, em grande parte, de ajuda internacional. Então, esse estado da arte que nós tínhamos em dezembro pode ser recuperado em cinco anos e a reconstrução mínima em um. É o que se espera, porque senão a reestruturação do país nas próximas duas, três décadas será muito dificultada.

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