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Edição 271      14 de outubro de 2009


Olho no Olho

China, 60 anos após a Revolução: entre a abertura econômica e o controle político



Aline Durães e Bruno Franco


Há 60 anos, no dia 1º de outubro de 1949, um grupo formado por estudantes, operários e camponeses e liderado por Mao Tse-tung chegava ao poder e instalava a República Popular da China. O país, que até então havia sido dominado por imperadores e senhores feudais, passava agora ao governo do Partido Comunista.
 
Entusiastas de propostas anticolonialistas, os membros do Partido iniciaram mudanças, como a reforma agrária e campanhas contra o comércio e o uso do ópio, que não só produziram substanciais transformações no modo de vida chinês como também contribuíram para fazer da China a terceira maior economia do globo na atualidade.
 
Hoje, a China experimenta uma série de contradições. Apesar de ser apontada como a principal potência emergente do século XXI, o país ainda abriga milhões de pessoas que vivem na pobreza. Seus índices de crescimento são expressivos — no ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) chinês cresceu 9% —, em contrapartida, o governo comunista parece pouco preocupado com as questões ambientais, pauta cada vez mais central para as demais nações.
 
Para refletir sobre as seis décadas da Revolução Chinesa e compreender algumas peculiaridades do país asiático, o Olhar Virtual conversou com Manuel Sanches, cientista político do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), e Carlos Aguiar de Medeiros, professor do Instituto de Economia (IE).

Manuel Sanches
Cientista político do IFCS

“A China, atualmente, não é capitalista ou socialista. É um regime híbrido, como dois sistemas que coexistem em uma só nação."

“Uma ideia clássica na Ciência Política é que grandes estados são governados de maneira centralizada e tudo na China adquire grandes proporções. Qualquer reunião congrega cinco mil, qualquer passeata reúne mais de cinquenta mil pessoas. As marchas forçadas e coletivizações empreendidas por Mao Tsé-Tung levaram à morte mais de 50 milhões de pessoas, um número que, entendido de maneira absoluta, impressiona por superar a quantidade de vítimas da II Guerra Mundial. No entanto, em termos percentuais, o quadro não difere de outros processos revolucionários – de direita ou de esquerda – como em Cuba ou no Chile. Além do plano Grande Salto para Frente, proposto por Mao – que resultou em um fracasso econômico –, a morte de milhões de camponeses levou à instabilidade climática, que é sempre problemática em sistemas agrícolas primitivos, gerando desabastecimento e fome. 
Do ponto de vista econômico, o processo reformador de Deng Xiaoping trouxe  consequências mais positivas, como a melhoria das condições de vida da população,  o aumento dos níveis de renda. Mao planejara uma industrialização massificada a partir do estímulo à siderurgia e à produção de ferro. Embora a produção tenha duplicado, isso ficou muito aquém do que fora inicialmente proposto, além da má qualidade do ferro produzido em fornos de baixa potência. 
A Revolução Cultural, a despeito dos desmandos e perseguições religiosas, trouxe grandes mudanças, facilitando as comunicações entre grupos linguísticos diferentes pela simplificação dos ideogramas. O curso dessa revolução prosseguiu, mesmo após a morte de Mao (1976), pela atuação do grupo dirigente conhecido como Camarilha dos Quatro (formado por Jiang Qing – esposa de Mao Tse-tung –, Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan). 
A China, atualmente, não é capitalista ou socialista. É um regime híbrido, como dois sistemas que coexistem em uma só nação. Ao contrário do que Marx postulava, no caso chinês é a política que determina a economia. Nas áreas litorâneas, há capitalismo com regulação estatal muito forte e o enriquecimento dos capitalistas faz aumentar a influência destes, via corrupção de dirigentes, apesar da repressão a esse tipo de crime. Nas áreas rurais, persiste o modelo de produção coletivista, com latifúndios geridos pelo Estado e controle estrito das migrações internas. 
O vigor econômico chinês, que permite décadas de crescimento econômico tangenciando os 10% anuais, se fundamenta, justamente, nos baixos salários recebidos pelos trabalhadores chineses e pela matriz energética poluente (e barata). O baixo custo de produção atrai investimentos internacionais. Não obstante, Pequim prepara medidas de impacto na área ecológica. O governo firmou contratos com empresas americanas para planejamento e construção de seis novas cidades, com a exigência de que sejam ecologicamente corretas. Como há demanda assegurada em larga escala e estabilidade nas instituições chinesas, as empresas podem fazer altos investimentos em tecnologia que minimizem impactos ambientais. 
A China já  atravessa um período de liberalização econômica e deve experimentar mudanças em sua gestão política, que a aproxime mais do paradigma ocidental, a menos que sua política externa extrapole seu curso habitual e faça do país um foco de tensão internacional. Em conflito, o país reforçaria a autoridade central para garantir a coesão interna, como na fórmula maquiaveliana de usar a figura de um inimigo externo para reforçar a unidade nacional. Mas não acredito nessa hipótese, em curto prazo.”

Carlos Aguiar de Medeiros
Professor do Instituto de Economia

“O problema chinês hoje é a concentração da renda que não tende a se reduzir com o crescimento econômico. Ao contrário.”

“Com a exceção do período marcado pela Revolução Cultural, iniciado na segunda metade dos anos 60, a China apresentou nessas seis décadas um extraordinário crescimento econômico. Este foi essencialmente liderado pelos investimentos industriais que transformaram uma economia essencialmente agrária, com mais de 80% da população no mundo rural, num centro manufatureiro mundial. Os deslocamentos da mão de obra rural para o emprego industrial e urbano foram, a partir dos anos 70, um fator essencial para o crescimento da produtividade e da renda do país. Ao lado da expansão do mercado interno e dos investimentos industriais e de infraestrutura – base da expansão chinesa –, as exportações tiveram um desempenho excepcional: a China é hoje o segundo maior exportador mundial. Essas exportações foram, em grande parte, decorrentes da afirmação do país no centro da cadeia produtiva da indústria leve de consumo e da indústria eletrônica asiática. E, nos anos mais recentes, consequências do crescente investimento tecnológico. O crescimento das exportações permitiu à China ampliar sua capacidade de importar não apenas máquinas e equipamentos, mas, nos últimos anos, petróleo, matérias-primas e alimentos. A adoção de uma política cambial benéfica às exportações, de uma política de crédito centrada em bancos públicos e de estímulo aos investimentos produtivos e controle sobre os fluxos especulativos permitiu à China enfrentar as turbulências financeiras dos anos 90 e dos atuais, explicando desta forma a estabilidade do seu crescimento. A revolução de 1949 realizou um imenso esforço de industrialização, nivelamento social e eliminação das classes agrárias tradicionais. Foi a partir desta realidade que as reformas liberalizantes se deram.

Quando se fala em política chinesa, existe uma comparação inescapável com a ex-União Soviética. A China manteve-se unificada sob a direção do PC e do exército de libertação popular, que teve uma importância histórica muito grande na sustentação da unidade institucional. As transformações ocorreram no país de forma gradual e através de diversos mecanismos de controle. O governo central manteve a sua liderança sobre o processo de mudança. Sob a liderança do mesmo partido, as mudanças institucionais foram profundas, alterando as bases sociais e os mecanismos de representação política. A sociedade chinesa é hoje muito mais aberta, a propriedade privada é constitucionalmente definida e as liberdades civis ganharam mais garantias.

A China hoje, com uma população de 1,3 bilhão de pessoas, possui uma expectativa média de vida de 73 anos, bastante superior à da Rússia, e praticamente todas as crianças em idade escolar estão matriculadas na escola primária. A pobreza é ainda muito alta e decorre da baixa renda na agricultura. Apenas a persistência do desenvolvimento e da difusão dos bens sociais poderá eliminá-la, como aconteceu nos países hoje industrializados. Mas devemos reconhecer que na China houve uma grande queda nos últimos anos. O problema chinês hoje é a concentração da renda, que não tende a se reduzir com o crescimento econômico. Ao contrário. Certamente a questão ambiental é um desafio para uma economia em que a base energética ainda está concentrada no carvão. Existem diversas políticas chinesas em torno da busca de uma ‘sociedade harmoniosa’ que busca atacar os dois problemas.”