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Edição 242      24 de março de 2009


Olho no Olho

Crise no Brasil: marola ou onda?

Lorena Ferraz e Vanessa Sol

imagem olho no olho

“Nos EUA, a crise é um tsunami. Aqui é uma marola, que não dá nem para surfar.” Com essas palavras, o presidente Lula definiu o que, segundo ele, seriam os efeitos da crise internacional no Brasil. Para isso, o governo tem adotado um conjunto de medidas a fim de conter a crise, como, por exemplo, o contingenciamento de R$ 21,6 bilhões no Orçamento de 2009 anunciado pelo Ministério do Planejamento na última quinta-feira (dia 19), a manutenção do aumento do salário mínimo e redução da taxa de juros pelo Banco Central.

No entanto, há outros acontecimentos ligados à economia nacional, como, por exemplo, as demissões em massa, as férias coletivas, a possibilidade de cancelamento dos reajustes salariais prometidos aos funcionários públicos, que apontam uma situação bastante diferente daquela descrita na metáfora presidencial.

A crise provocou a primeira queda na aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante o segundo mandato.  De acordo com os resultados da última pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a aprovação do governo caiu 5%. A mesma pesquisa aponta que a candidata do governo à sucessão presidencial, a ministra Dilma Rousseff, tem 11% das intenções de voto, ficando atrás de José Serra (PSDB), com 41% , e Ciro Gomes (PSB), com 16%.

  A fim de entender a maneira como a crise vem repercutindo no Brasil, o Olhar Virtual entrevistou Reinaldo Gonçalves, professor titular de Economia Internacional da UFRJ, e  João Sicsú, professor-adjunto do Instituto de Economia da UFRJ e diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA.Gonçalves faz dura crítica à postura do governo diante da crise e expõe sua visão sobre o futuro da economia brasileira. Já Sicsú defende a postura adotada pelo governo e afirma que o Brasil pode sair da crise com uma taxa de juros mais baixa.

Reinaldo Gonçalves
Professor do Instituto de Economia da UFRJ

A conduta de Lula é marcada pela irresponsabilidade. Sério é o Obama, que declara que as contas dos bancos nos EUA é uma “caixa-prata”. Lula trata o povo brasileiro como se fosse um bando de débeis mentais. O lamentável é que parte expressiva dos analistas é cúmplice e conivente com essas manobras de desvio de atenção, que procuram esconder a vulnerabilidade externa e as fragilidades sistêmicas da economia brasileira, bem como os próprios erros do governo no enfrentamento da crise. Os efeitos da crise são múltiplos: crise real, com forte desaceleração do crescimento da renda e aumento do desemprego; piora acelerada das contas externas; degradação das finanças públicas; queda do investimento; esgarçamento do tecido social; e deterioração das instituições.

Há muito tempo tenho alertado que o Brasil será um dos países mais afetados pela crise internacional. A economia brasileira é um “vagão de 4ª classe” que sofre as conseqüências do descarrilhamento da locomotiva (EUA), das sublocomotivas (França, Alemanha etc.) e dos vagões de classe superior (China, Coréia, Índia etc.). Minha hipótese é que o Brasil será um dos últimos países a sair da crise. No final de 2007 e início de 2008, quando a quase-totalidade dos analistas argumentava que o Brasil tinha blindagem, defendi o argumento de que a blindagem do país era de “papel crepom”. No meu livro, em co-autoria com Luiz Filgueiras, A Economia Política do Governo Lula, um dos argumentos principais é que o modelo liberal periférico implementado por Lula, além dos resultados medíocres, implica crescente vulnerabilidade externa estrutural. Portanto, a reversão do ciclo internacional implica desempenho ainda mais medíocre da economia brasileira.

Quais foram as conquistas sociais das últimas décadas? A gradual melhora da distribuição intra-salarial da renda causada pelo salário mínimo, benefícios da Previdência e políticas assistencialistas? Não podemos esquecer que a distribuição funcional da renda (salários, juros e lucros) piorou ao longo dos anos, com perdas para o trabalhador. Houve, ainda, maior concentração da riqueza. O esgarçamento do tecido social continua, com degradação da infra-estrutura e situação degradante na saúde e na educação. A violência continua aumentando, ao mesmo tempo em que a corrupção contamina cada vez mais as instituições e o ethos da sociedade. O modelo liberal periférico dos últimos vinte anos tem levado ao fracasso do processo civilizatório no Brasil. No meu livro Vagão Descarrilhado, chamo atenção para o processo de “africanização”  do Brasil, ou seja, a crise sistêmica (padrão África subsaariana) que atinge o Brasil.

Nos anos 1980 o Brasil contava com instrumentos poderosos de atuação que eram as empresas estatais, como a Vale do Rio Doce, as empresas de telecomunicações, CSN, Embraer etc. Essas empresas mobilizavam excedente econômico. O Estado brasileiro não tem, atualmente, uma fração da capacidade de realização de investimentos e gastos que tinha há duas décadas. A privatização destruiu boa parte da capacidade de intervenção do Estado brasileiro, via planejamento e investimento. Nos anos 1980, a Vale e a Embraer não demitiam em massa para manter lucros anormais. No que se refere à questão fiscal, a situação não é significativamente diferente, pois a hegemonia do setor financeiro aumentou ao longo dos anos. O resultado é a política monetária altamente restritiva (juros mais altos do mundo), que compromete as finanças públicas. Qualquer aluno de segundo ano da faculdade de economia sabe disso.

Crises podem ser oportunidades para ruptura. O Brasil tem dois exemplos importantes: anos 1930, com Vargas, e anos 1970, com Geisel. No entanto, para que isso ocorra é preciso que haja determinadas condições. Não vejo essas condições no Brasil de hoje. A degradação dos grupos dirigentes e a anomia que atinge a sociedade são cada vez maiores. Pobre Brasil! Estamos em uma situação parecida com o segundo reinado, quando perdemos quase meio século (1850-89). Penso que o Brasil continuará ainda uma ou duas décadas de “descida de ladeira”.   Pergunta simples:  podemos mudar o Brasil com os grupos dirigentes atualmente encastelados no PMDB, PSDB, DEM e PT?

João Sicsú
Professor do Instituto de Economia da UFRJ

A posição do governo frente à crise está sendo correta. Ele vem tomando diversas medidas visando aumentar a liquidez da economia, manter os empregos e negócios em atividade.
Outras medidas que o governo vem tomando para conter a crise são a manutenção do salário mínimo (12% enquanto a inflação foi de 6%) e criação de duas alíquotas novas de imposto de renda, o que aumenta a renda disponível das pessoas para realizar gastos. O governo também vem aumentando a quantidade de crédito que o BNDES tem para disponibilizar aos empresários. O Banco Central está reduzindo a taxa de juros, ainda que lentamente. Além disso, o governo está ampliando o crédito para as atividades de exportação.

Esse conjunto de medidas começa a fazer efeito de forma mais intensa no segundo semestre. Com isso, temos ainda um primeiro trimestre ruim, mas melhor que o quarto trimestre do ano passado. Conseqüentemente, vamos ter um segundo trimestre melhor do que primeiro, e assim sucessivamente. Vislumbramos ter essa trajetória este ano e esperamos que no próximo (ano) o Brasil já tenha se recuperado da crise.

É óbvio que as medidas podem não ter o efeito total esperado, mas política econômica se faz dessa forma. Tomam-se medidas, das quais são esperados determinados resultados; se esses resultados começam a não aparecer, as medidas devem ser intensificadas. Eu não tenho a menor dúvida de que o governo caminhará nesse sentido.

Injetar recursos financeiros na economia, assim como os Estados Unidos vêm fazendo, é o que deve ser feito em casos de crises como esta. Quando um conjunto de medidas é adotado, é preciso ver quais são os primeiros sinais de resposta da economia para que novas medidas sejam adotadas.

Se a resposta for favorável, as medidas estão sendo tomadas na magnitude correta. Ao contrário, se a reação não está sendo tão decisiva, no sentido de reverter o sinal negativo da crise, então é necessário aumentar o leque de medidas e intensificar aquelas que já foram tomadas para colocar mais recursos na economia.

Uma crise sempre é ruim, mas acredito que o Brasil pode sair desta crise com uma taxa de juros mais baixa, que seja compatível com o mundo em desenvolvimento e o mundo desenvolvido e compatível com um ambiente em que se aceite conviver consumidores, investidores e banqueiros.

Acredito que é possível o Brasil sair da crise com a quantidade maior de famílias saindo da condição de miseráveis, em função da ampliação do programa Bolsa-Família. Espero que haja mais programas de habitação popular, assim como é realizado em qualquer país civilizado. Os programas de moradia popular devem ser programas de Estado, e não programas de governo, ou seja, devem ser programas permanentes. A população cresce e com isso precisa de moradia.

Espero que a crise nos traga a consciência a partir das medidas emergenciais, que são medidas sociais de enfrentamento da crise. Espero que ela traga a consciência definitiva de que o Estado é uma entidade necessária ao bem-estar da sociedade. Estado não é algo que se opõe ao mercado nem à sociedade. Ele é necessário para regular o mercado a fim de que a interação entre este e a sociedade se transforme em bem-estar social. 

Temos que sair da crise com a consciência de que o Estado é imprescindível. A triangulação Estado/mercado/bem-estar é essencial. Nós vivemos, recentemente, com idéia de que o Estado não é necessário e que o mercado se torna responsável por resolver todos os problemas e questões que surgem. O resultado dessa equação é a falta de bem-estar social.

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