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Edição 216      12 de agosto de 2008


Entrelinhas

Nikkeis são brasileiros, não japoneses

Cinthia Pascueto - AgN/Praia Vermalha

capa do livro

No dia 4 de agosto, foi lançado no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ o livro Uma diáspora descontente: cinema, militância política e identidade étnica no Brasil, de Jeffrey Lesser, historiador norte-americano e diretor do Tam Institute for Jewish Studies da Emory University, em Atlanta, nos Estados Unidos.

Lesser é também autor dos livros A negociação da identidade nacional e O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito. Há muitos anos, o historiador tem o Brasil como objeto de estudo. Em Uma diáspora descontente, Lesser analisa, a partir de dados oficiais e de sua experiência pessoal, a relação existente entre nipo-brasileiros e a identidade nacional, no período de 1960 a 1980 – durante a ditadura militar.

Para conhecer um pouco mais sobre as questões levantadas no livro e sua composição, o Olhar Virtual conversou com Jeffrey Lasser.

Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de escrever o livro?

Para A negociação da identidade nacional, livro anterior a este, eu passei muito tempo num centro de pesquisas de imigração japonesa, em São Paulo. Em uma dessas vezes, eu estava conversando com um grupo de senhores idosos e um deles falou: “Eu lembro que houve, há muitos anos, o seqüestro de um cônsul japonês em São Paulo”. Eu pensei que ele pudesse ter se enganado e fui pesquisar, não custaria nada. Para mim, não foi descobrir o seqüestro em si o mais interessante, mas sim descobrir que esse cônsul foi seqüestrado para ser trocado por um militante brasileiro de ascendência japonesa.

E eu pensei: “Puxa, que interessante!”. Porque eu sabia, por exemplo, que não seqüestram um embaixador americano ou alemão para trocar por um brasileiro de ascendência americana ou européia. Comecei a pesquisar e durante o processo passei a perceber, lendo os chamados jornais japoneses ou nipo-brasileiros da década de 1960, a presença de mulheres nipo-brasileiras no cinema brasileiro. Reparei também que, no período da ditadura, há uma representativa participação de nipo-brasileiros nos cinemas, nos movimentos políticos. Isso me levou à pergunta: será que há alguma relação? Assim veio a idéia do livro.

Olhar Virtual: Como foi o processo de pesquisa e composição da obra?

A pesquisa não foi nada normal; foi feita de maneira muito diferente para um historiador. Eu usei fontes tradicionais, fui para o arquivo, trabalhei muito com documentação do DOPS – a polícia secreta da repressão desde a década de 1920 e acabou com o fim da ditadura nos anos 80 – mas também trabalhei muito com propagandas, história oral, entrevistas e passei muito tempo procurando fontes alternativas. Eu não queria escrever um livro chato. Eu acho muitos livros acadêmicos chatos, eu mesmo escrevo livros chatos. Mas pensei: “esse material é tão interessante, tão incrível. Pode ser feito de um jeito diferente”. E então busquei fontes diferentes: pesquisei arquivos da pornochanchada, por exemplo, e fiquei mais interessado em cartazes de “procurado” da ditadura como documento do que num relatório oficial.

Olhar Virtual: De que maneira essa procura por fontes alternativas influenciou a composição do livro?

Isso afetou a construção do livro, porque comecei a pensar que seria interessante revelar ao leitor o processo de pesquisa, incomum em um livro de História. No livro de História, o historiador desaparece. Achei interessante jogar o historiador – ou seja, eu – de volta, o que, em minha opinião, se torna engraçado. Porque o livro tem sua narrativa e, em certos momentos, pára, passa para uma história extremamente pessoal, sobre minha experiência de pesquisa.

Eu não tenho os dados oficiais para relacionar uma imagem de 1971 e uma que eu vejo na rua hoje, mas posso parar o livro e dizer: “Eu estava andando na rua, vi essa coisa e pensei…” Neste caso, eu posso me revelar um pouco. Como exemplo, está no livro a história da minha tentativa de me passar por um jovem nipo-brasileiro de 25 anos para participar de um filme. É uma história louca e engraçada, mas para mim foi muito importante. Então assim é o livro.

Olhar Virtual: E essa experiência pessoal aparece de que forma?

Acho – e cada vez estou mais confortável para dizer isso – que minha experiência pessoal tem uma influência no resultado final da pesquisa. É pessoal, muitos historiadores não vão gostar dessa idéia e eu entendo isso. Para mim, no entanto, a experiência de pesquisa é, de certa forma, uma experiência pessoal. Decidi, nesse livro, em vez de listar os dados de uma maneira fria, fazer o contrário e admitir abertamente que “eu” estou analisando os dados. Entende a diferença? Existe “eu”. Por outro lado, eu sou tradicional. Eu não queria escrever um livro sobre minhas neuroses psicodramáticas, mas escrever um livro que convença acadêmicos, intelectuais, alunos e professores sérios de que o final é legítimo, a fala é uma coisa séria, não é um romance escrito por Jeffrey.

Foi exatamente por esse motivo que eu criei essa brincadeira.

Olhar Virtual: Pode-se dizer que existe um conflito na relação de identidade dos nipo-brasileiros?

Não digo que sim. Não posso falar de nipo-brasileiros. Eu posso falar dos sujeitos desse livro sem afirmar que eles representem todos os nipo-brasileiros. Existem muitos nipo-brasileiros e muitas experiências. Eu não acredito em tornar essencial uma experiência nipo-brasileira. Posso dizer: minhas fontes sugerem que tem certo gap entre o imaginário nipo-brasileiro pelo não nipo-brasileiro – e vice-versa – e um imaginário do nipo-brasileiro e do não nipo-brasileiro sobre eles mesmos.

Nesse sentido, é muito interessante como o não nipo-brasileiro imagina que o Japão é muito importante na vida dos nipo-brasileiros. Achei surpreende na minha pesquisa, com os meus sujeitos, é que o Japão não foi somente desimportante em suas vidas, mas também houve um discurso de ódio ao Japão. Enfim, foi uma diferença muito grande.

A pessoa imagina que o descendente de japoneses ama o Japão, mas ele tem ódio ao Japão. Acredito que essa característica pode ser encontrada em várias minorias no Brasil. O imaginário do grupo não-minoritário e um outro imaginário, por dentro, que às vezes não combina exatamente.

Outro ponto relevante é que os sujeitos expressaram múltiplas identidades, com muito conforto. Em certo momento, eu tive que tomar uma decisão. Se por exemplo, alguém fala “Ser nipo-brasileiro não tem a menor importância na minha vida” e depois vai dizer exatamente o contrário, eu precisava decidir tratar isso como uma forma de loucura identitária ou não. E decidi tratar essas formas identitárias como normais, pois todos nós temos múltiplas identidades. Nesse sentido, eu também não acho que seja um conflito. Não gostaria de utilizar essa palavra.

Olhar Virtual: Que palavra o senhor sugere?

Eu trato meus sujeitos por brasileiros. Acredito que sejam brasileiros e normais. São brasileiros de ascendência japonesa, mas o próximo poderia ser brasileiro com ascendência alemã. O outro, brasileiro e gay. Ou talvez o próximo um brasileiro que encontra sua vida em ser corintiano. Penso que essa é a grande diferença no livro. Ele não começa com a idéia de que “temos um grupo de japoneses com problemas de identidade”. O livro começa com “temos um grupo de brasileiros, vamos estudá-los”. Esse é um jeito muito diferente de pensar sobre isso.

Olhar Virtual: Em Uma diáspora descontente, o senhor fala de militância étnica. O que isso significa?

Eu acho essa expressão complicada aqui no Brasil, porque não trabalhamos com esse conceito. Nesse livro, essa expressão não tem necessariamente a ver com militância política. Para mim, militância étnica é o momento que uma pessoa insiste, quando colocada como não-brasileira, em sua brasilidade. E a militância dessa pessoa é afirmar sua identidade brasileira numa sociedade como o Brasil, onde existe certa resistência à agressividade na esfera pública.

Por exemplo, foi muito interessante na parte da pesquisa sobre cinema, falar com as atrizes nipo-brasileiras sobre as cenas de sexo, como elas entenderam interpretar essas situações como parte da carreira artística delas. E elas falaram coisas assim: “Olha, meus pais são militantes japoneses muito rígidos e sempre falaram que uma boa moça japonesa vai casar apenas com japonês, vai comportar-se desta e daquela forma. Mas todas as minhas amigas são brasileiras, como eu. E brasileiras são fogosas, ousadas. Eu sou brasileira. E, para mim, fazer cenas de sexo é uma forma agressiva – militante – de dizer para a geração dos meus pais: Eu sou brasileira”.

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