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Edição 210      01 de julho de 2008


Olho no Olho

Bolsa Família: aumento real ou ilusório?


Fernanda Fernandes, Seiji Nomura e Cínthia Pascueto - AgN/Praia Vermelha

imagem olho no olhoEntra em vigor a partir de 1º de julho, o reajuste em 8% dos benefícios do Bolsa Família, segundo o decreto publicado dia 27 de junho no Diário Oficial da União. Dessa forma, os 11 milhões de famílias atendidas pelo programa vão receber entre R$ 20 e R$ 182, contra os R$ 18 e R$ 172 estabelecidos anteriormente como valores mínimos e máximos.

O Programa tem três tipos de benefícios: o Básico, o Variável e o Variável Vinculado ao Adolescente, em que os valores pagos variam de acordo com a renda mensal por pessoa da família e o número de crianças e adolescentes até 17 anos.

Segundo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os que acusam o governo federal de uso eleitoreiro do programa “perderam a sensibilidade”. “Estamos dando o reajuste porque temos condições de dar, porque tem, no orçamento, dinheiro para dar este reajuste. Na medida em que puder reajustar mais, vamos reajustar mais fortemente”, disse o presidente.

Para discutir as implicações desse aumento e a eficácia desse tipo de programa assistencial, o Olhar Virtual convidou Giuseppe Mario Cocco, doutor em História Social e professor da Escola de Serviço Social, e Lena Lavinas, pós-doutora em Sociologia e professora do Instituto de Economia.

Giuseppe Mario Cocco
Doutor em História Social e professor da Escola de Serviço Social da UFRJ

Está se dizendo que o ajuste está acima da inflação num período próximo às eleições. Esse discurso das elites é cínico e irresponsável quando a gente pensa a situação social do país, e o que caracteriza essa manifestação social do país em termos de violência.

O fato é que o Brasil está praticamente quase sempre em período eleitoral − a cada dois anos há eleição para presidência, congresso e eleições municipais. Em segundo lugar, a dinâmica da inflação é algo que explodiu no mundo todo, e que no Brasil está chegando logo agora, nos últimos dois meses. O reconhecimento de que no Brasil há um problema de inflação, que, aliás, se traduz em uma política monetária destrutiva, que parte do Banco Central, que todo mundo é a favor, é um reconhecimento atual. Então parece normal que o governo reconheça que, diante da pressão inflacionária, os mais pobres, aqueles que têm os problemas sociais, tenham direito básico do acesso à comida, a uma renda mínima, que devam ser valorizados, seja prioritário. Então, a argumentação de que o aumento é acima da inflação é uma besteira. Deveria ser ao contrário: Que bom que é acima da inflação, deveria ser muito mais acima, porque o Bolsa Família é uma transferência de renda importante, mas limitada, e deveria ser bem mais consistente.

Eles são sempre contra o Bolsa Família. O triste é que uma parte do discurso crítico de esquerda também seja contra. Se o discurso da elite a gente pode prever que seja bem mais cínico do que irresponsável, por parte de uma certa esquerda é completamente irresponsável criticar o Bolsa Família. É como se alguém criticasse a universidade pública pelos limites que ela tem, por exemplo, como uma taxa de exclusão de 96%, e que por isso fosse contra Universidade Pública. Não. A gente critica por ser a favor. Podemos criticar o Bolsa Família por ser a favor que seja pra mais gente e mais dinheiro. O Bolsa Família é um programa fundamental, que deve ser ampliado em termos de transferência, e diminuído ao nível de condicionalidade. Tem que ser o mais universal possível.

Quando a pobreza está nesse nível, a geração de emprego e renda se define pelo fato de você ter um nível de emprego que distribui uma renda digna. Uma parte do público que recebe o Bolsa Família, recebe um salário mínimo e é empregado. Mas o fato de estar empregado e receber um salário mínimo hoje em dia não é garantia de se ter uma renda digna. Dessa forma, o Bolsa Família se justifica também como complementação do salário mínimo, que apesar do esforço feito pelo governo Lula para valorizá-lo, continua extremamente baixo. Então, esse discurso de que deve haver uma porta de saída é um discurso cínico e hipócrita ao mesmo tempo. Pelo contrário, o Bolsa Família participa do esforço que o Brasil faz para valorizar o salário. Inclusive pra valorizar o emprego. Ele é um elemento importante, que, aliás, chegou pra ficar. Essa idéia de que o Bolsa Família é provisório é uma besteira. Em todos os países das economias centrais, onde há muito mais riqueza e o salário é muito mais valorizado, há distribuição de renda, independentemente do emprego.

O que a elite está preocupada, e critica o tempo todo, paradoxalmente encontrando apoio nas posições de extrema esquerda, é que, na verdade, o Bolsa Família torna o controle dos currais eleitorais mais precário, na medida em que setores da população que eram obrigados a negociar seus votos com os cabos eleitorais que participam da manutenção desse sistema iníquo, tornam-se mais independentes, tanto com o Bolsa Família, quanto com outros programas do governo como o REUNI, PROUNI, a valorização do salário mínimo. Essa é a grande preocupação: agora existe um mecanismo que diminui o controle sobre as massas marginalizadas, sobre os pobres, que não têm voz. O Bolsa Família dá certa independência. Mas eles dizem ser clientelismo do governo federal. A única crítica que consigo fazer ao governo é que ele é tímido, poderia fazer mais, poderia distribuir mais. Aí a elite seria ainda mais contrária, porque é contra a CPMF, é contra que os que têm mais dinheiro paguem mais impostos, etc.

Os estudos dizem que o Bolsa Família tem atingido as camadas mais pobres. Mas uma das características fundamentais de uma sociedade tão desigual e violenta, é que aqueles que estão mais vulneráveis são aqueles que sempre ficam mais longe, também, dos programas sociais. Então, nesse sentido, pode ser que aja, na aplicação do Bolsa Família, segmentos de alta vulnerabilidade que nem conseguem ficar no Bolsa Família. Mas isso independe do programa, e sim do funcionamento da sociedade em que estamos.

Desse ponto de vista, uma das maneiras pra reduzir esse problema, ou seja, fazer com que as populações mais vulneráveis também tenham acesso a isso, é reduzir as condicionalidades. O Bolsa Família é condicional ao fato de se ter crianças, e que elas freqüentem a escola, e que a questão da saúde, vacinas, esteja em dia. É claro que as populações mais marginais, mais vulneráveis, são aquelas que têm dificuldades pra manter os filhos na escola. O fato de dizer que eles têm dificuldades pra manter os filhos dentro da condicionalidade, não justifica o fato de que eles não tenham dinheiro pra comer. Que deveria ser um direito básico. Num Brasil que exporta comida pra centenas de milhões de chineses, árabes, comerem o que é produzido no Brasil. E no Brasil tem problema de fome, de miséria. Não deveria existir.

Nós temos que passar a um outro discurso que abandone o direito do trabalho e afirmar o trabalho do direito. Você trabalha porque você tem direito. E não mais você tem direito porque você trabalha. Esse é o grande conceito.

Isso não basta, tem que fazer habitação, o PAC das favelas, transportes públicos, reforma universitária, mas o governo tenta fazer diversas coisas. Mas a sociedade que de toda maneira é iníqua e pobre. A economia tem que crescer, tem que fazer investimentos, políticas para agricultura familiar. A situação atual é muito melhor do que a gente conheceu nos anos 90.

Eu acredito que a maioria dos beneficiários do Bolsa Família gaste o dinheiro com bens básicos. Entretanto, há um fenômeno que acho extremamente positivo: essas famílias têm tido acesso também a bens mais sofisticados, e que são básicos para a cidadania contemporânea. Então, algumas pessoas da elite ficaram escandalizadas porque parece que alguns beneficiados compraram eletrodomésticos. Eu acho isso muito interessante, que mostra como esse programa é conveniente.

Lena Lavinas
Pós-doutora em Sociologia e professora do Instituto de Economia da UFRJ.

Eu queria fazer algumas observações no que diz respeito a esse ajuste no Bolsa Família.

Ele foi criado em 2003 com dados relativos a 2000, do senso demográfico, porque o senso é a única fonte que nós temos para todos os municípios brasileiros. Quando foi feito esse cálculo de 2003 com os dados de 2000 de quantos pobres haveria, nós tínhamos alguma coisa como 55 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza de 100 reais. Em qualquer lugar do mundo, a linha de pobreza e os benefícios têm que ser indexados a índices voltados para o preço, por exemplo, dos alimentos, ou para a inflação média que tem na sociedade. Deve haver algum índice de preços que corrija os benefícios, porque se eu tenho uma linha de pobreza de 100 reais per capita, por exemplo, e eu tenho uma inflação de 4 ou 5% ao ano, ao final de 5 anos temos algo como 30% acumulado. Se eu não ajustar a linha de pobreza e passá-la para 130 reais, eu tendo a diminuir o número de pobres abaixo da linha da pobreza. Então eu, na verdade, tenho não só que ajustar a linha da pobreza, como tenho que ajustar o benefício, porque se eu tenho uma inflação de 30% em 5 anos , e não ajustar o benefício, as pessoas, em termos reais, estão ganhando menos do que ganhavam.

Sendo assim, duas coisas importantes: a cada ano nós temos que ter um deflator para corrigir a linha da pobreza e para corrigir o valor dos benefícios assistenciais. No Brasil nós não temos isso. Então se a gente olhar o que fez o governo Lula, ele ficou de 2003 até 2007 praticamente sem deflacionar, sem ajustar a linha da pobreza. Ela foi reajustada recentemente, de 100 pra 120, a mesma coisa ocorrendo com os benefícios.

Segunda questão: os benefícios como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), um outro tipo de benefício assistencial, seguem o piso do salário mínimo. Dessa forma, toda vez que há um aumento do salário mínimo, aqueles benefícios assistenciais vinculados ao salário mínimo são revalorizados. Então, eu não posso ter duas políticas de correção de benefícios distintas. Temos que chegar a uma conclusão de qual é a política de reajuste dos benefícios assistenciais no Brasil.

A terceira questão é: por que existem benefícios assistenciais? Justamente porque se quer melhorar as condições de vida da parcela mais carente, destituída e desprotegida da população. Enquanto nós temos hoje uma inflação acumulada de mais ou menos 3,5%, e que deve chegar a 6% ou até mais no final do ano, portanto acima do limite máximo do intervalo previsto, há uma inflação no item alimentos, que tem um peso muito maior pra essa população mais pobre. A renda dos mais pobres é quase integralmente gasta com duas coisas: alimentos, e em segundo lugar, o pagamento de serviços chamados públicos mas que são privatizados, como pagamento de energia elétrica, aquisição de gás de cozinha, transporte, tarifas públicas importantes. Então, deve-se considerar qual foi a inflação nesses setores de alimentos e serviços públicos básicos (que são privados). A gente chama isso de serviços administrados. Deve-se medir essas duas inflações. A inflação de alimentos em um ano já está em 14%, muito acima do que deveria. E o reajuste dado ao Bolsa Família foi de 8%, sabendo que 80% da renda dos mais pobres é canalizada diretamente pra compra de alimentos.

E há uma última questão. Em países como a Inglaterra, países liberais, não há a incidência de nenhum tipo de tributo em cima dos alimentos. Porque, justamente, a gente não pode julgar que só se deve retirar tributos da chamada cesta básica. Isso é uma idéia quase escravista que se tem no Brasil, de que as pessoas só deveriam se alimentar daquilo que elas podem: arroz, feijão, farinha, açúcar. Não. As pessoas devem ter o direito de comer tudo aquilo que é ofertado no mercado, ou pelo menos aquilo que é o padrão médio de alimentação do brasileiro. E elas se alimentam muito abaixo desse padrão médio. Então, nesses casos de países liberais, o fato de não ter tributo em cima dos produtos, no momento em que eu tenho elevação do preço dos alimentos, ajuda porque a progressão é, evidentemente, um pouco menor. Nós aqui, não pensamos ainda, no âmbito da reforma tributária que está em debate, como é que poderíamos retirar, desonerar produtos e serviços básicos, que têm um grande peso na cesta de consumo dos mais pobres. Isso ainda está em pauta.

Na verdade, todos os jornais do país noticiam na primeira página que houve um aumento do benefício do Bolsa Família da ordem de 8%, aumento linear pra todos os valores, como se isso fosse um escândalo em período pré-eleitoral. A única razão de haver benefícios assistenciais é justamente dirimir a pobreza, e eles têm que ser eficazes nos momentos em que isso é mais grave. Ora, está havendo um aumento da taxa de inflação sobre os alimentos, que é da ordem de 14%. Se essa pressão do ponto de vista internacional continua, se no acumulado até hoje, desde 2003 quando foram criados os distintos valores do Bolsa Família, não foram deflacionados de acordo com a inflação, a única coisa que estamos fazendo é repondo o poder de compra dos mais pobres. A gente tem que fazer isso, senão nem adianta ter política assistencial. A questão é por que nós não somos capazes de discutir qual é o índice que devemos adotar para corrigir os benefícios assistenciais regularmente, automaticamente, todos os anos, como fazemos hoje com o salário mínimo.

Do ponto de vista do gasto, que é o grande debate, na verdade o que é político não é o fato de ter corrigido os valores do benefício do Bolsa Família, o que é político é todo o debate que se faz em cima disso como se o governo tivesse realmente tomando medidas eleitoreiras. Essa é uma visão em cima do gasto. O corte do gasto tem sido grande, o Brasil jamais fez um superávit tão importante como fez nesse momento, o Brasil está economizando muito graças ao crescimento econômico, então não há nada que coloque em risco a questão da estabilidade econômica. Todos os fenômenos ligados à inflação, e não é verdade que ela esteja se disseminando em toda a economia, estão absolutamente vinculados a um fenômeno de oferta maior, a uma queda na oferta, problemas climáticos no sudeste asiático, enfim, problemas realmente de desabastecimento em razão de mudanças climáticas, que diminuíram a disponibilidade internacional de grãos e de carnes. Mas nada disso coloca em cheque a realidade do Brasil hoje, que é um país bastante estável, e onde a inflação, na pior das hipóteses, vai chegar a algo em torno de 6,5%.

Na verdade, são os conservadores que fazem o uso político do aumento do Bolsa Família, e que não tem nenhum compromisso com o bem-estar da população brasileira em seu conjunto.

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