Olho no Olho

Aumenta incidência de bullying em escolas do Rio

 

Júlia de Marins e Thais Carreiro

Ilustração: Diego Novaes

O bullying, gíria em inglês que vem do termo “bully” (valentão), forma de abuso  comum entre crianças e jovens no período escolar, consiste em atitudes de agressividade física ou verbal, praticadas por um ou mais indivíduos de forma repetitiva e intencional sem motivo aparente, com o objetivo de humilhar a vítima. Recentemente, a discussão sobre o assunto voltou a ganhar atenção da mídia, após a divulgação do jornal O Globo dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Informa sobre a incidência do fenômeno nas escolas do Rio de Janeiro.

De acordo com o estudo, 84,5% dos alunos entrevistados já sofreram ou conhecem alguém que tenha sofrido bullying no colégio. A situação é mais grave nas escolas municipais entre os estudantes do ensino fundamental. A pesquisa aponta ainda que há diferenças na prática do bullying de acordo com o gênero: as meninas utilizam geralmente agressões verbais que levam ao isolamento da vítima, enquanto os meninos costumam apelar para agressões físicas.

A busca por uma causa para a prática do bullying divide opiniões. Afinal, por que o bullying existe? O que leva crianças e jovens a cometerem agressões uns contra os outros? Para debater o assunto, o Olhar Virtual conversou com a professora Marta Rezende Cardoso, do Instituto de Psicologia  (IP-UFRJ), e a professora Mônica Pereira dos Santos, da Faculdade de Educação (FE-UFRJ).

Marta Rezende Cardoso

Professora associada do Instituto de Psicologia pelo Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

“Do ponto de vista da Psicanálise, por constituir resposta defensiva caracterizada por violência atuada, o fenômeno que vem sendo denominado bullying não pode ser dissociado de outras modalidades de defesa de tipo igualmente radical. Porém, quando falham violentamente os recursos como dimensão de ligação e simbolização, o ego vê-se ultrapassado e ameaçado pela irrupção de excesso pulsional em seu território, podendo passar ao ato, apelando, por exemplo, à agressividade como tentativa extrema de responder a um transbordamento pulsional que fere a sua integridade, que transgride suas fronteiras.

Nesse sentido, o bullying, como ato repetitivo de heteroagressão, sinaliza, de forma mais geral, o aprisionamento e a cristalização do funcionamento psíquico no eixo mecânico e imediatista da ação/reação, implicando significativa prevalência da polaridade elementar ativo-passivo. Este tipo de recurso visa, dentre outras determinações inconscientes, à afirmação de uma individualidade, e que aqui parece se ancorar numa pressão imperativa a libertar-se do domínio inescapável de um outro que, em última instância, habita o interior do sujeito, e cuja figura a ele se apresenta como um ‘estrangeiro’ radical. Entendido assim, o ato de agressão exercido contra um outro externo, resultaria, de fato, de uma projeção no exterior que, articulada ao mecanismo da inversão no seu oposto, faz com que sujeito venha a se colocar contra um semelhante sobre o qual parece ter caído a ‘sombra’ de um ameaçador estrangeiro interno. Mas essa ‘diferença recusada’ é justamente aquilo que foi originariamente incorporado e não assimilado, ou seja, o que, internamente, revelou-se violentamente refratário à representação, à interiorização.

O exercício do bullying, como recurso brutal e violento de agressão contra um semelhante, acaba por promover, estranhamente, o estabelecimento de uma separação em relação ao outro, mas que paradoxalmente se configura como transgressão de limites, precisamente, dos limites do outro. Estamos aqui diante de uma luta ferrenha pelo estabelecimento de uma ‘diferença’ e, ao mesmo tempo, diante da compulsão a uma ‘aproximação’ radical, transgressiva, quase usurpação do espaço do outro.

No plano da dinâmica pulsional dos sujeitos em questão parece haver forte carência de meios de representação, assim como precariedade quanto à realização de efetivo trabalho psíquico capaz de fazer frente à ação disruptiva dos impulsos destrutivos. Quando ultrapassado pela intensidade de suas sensações, o sujeito corre o risco de perder a capacidade de se diferenciar do outro, de distinguir o dentro e o fora. Assim, a violência exercida contra o outro pode funcionar como tentativa extrema de expulsão, a qualquer preço, de uma excitação insuportável. Aquilo a que o sujeito não consegue escapar no mundo interno passa a ser ‘controlado’ no mundo externo sob a forma de ‘dominação’ do outro.”


Mônica Pereira dos Santos

Professora adjunta do Departamento de Fundamentos de Educação e coordenadora do LaPEADE – Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e à Diversidade em Educação


“Vários fatores podem levar à pratica do bullying. Acredito que os dois principais são o exemplo da família e a convivência social. O primeiro deles é explicado pelo fato de o lar ser o lugar onde a criança aprende como deve ser um cidadão, como se comportar em meio às outras pessoas, pois a casa é a primeira experiência de mundo dela.  Porém, este fator é fortemente dependente do segundo, da questão social, já que a maneira como os pais educam seus filhos é marcada pela forma como os mesmos foram educados por suas famílias e pela própria sociedade.

Por isso, penso que esse grande número de casos de agressões e humilhações que acontece tanto nas escolas como em outros ambientes, sendo a própria universidade um exemplo deles, comprova que vivemos hoje uma ‘sociedade bullying’. O segundo fator causador dos casos explica-se pelos exemplos de relações sociais que temos, pois a naturalidade com que a desigualdade entre as formas de vida é vista se reflete na vontade de exercer o bullying, de praticar a violência para imposição de poder de forma direta entre as pessoas. Por esse contexto, culpo, em particular, o capitalismo, por alimentar a cultura da vontade de ser melhor do que os outros, do crescimento individual e egoísta.

Nesse contexto, acredito que somente uma mobilização geral de toda a sociedade poderia evitar e tratar o bullying. A falta de preparo das escolas seria a primeira coisa a ser mudada. Juntamente com as famílias e o governo, as instituições educacionais precisam definir uma política escolar para cuidar especialmente dos casos de bullying e identificar o que causa e permite as agressões, pois, se elas existem, há algo de errado acontecendo na escola como um todo. Deve ser feito um trabalho em conjunto, em que o Estado passe a ser mais atuante na punição e na erradicação dos problemas que causam o fenômeno, criando políticas ‘antibullying’ e dando suporte e informação às escolas e famílias.

Por fim, acredito que o bullying, sendo um problema de ordem social, só pode ser vencido se todos assumirem seu compromisso individual por este mundo tal como ele é para que depois possam se juntar numa luta geral. É preciso que o coletivo tome consciência de que tudo o que acontece em nossa sociedade é nossa responsabilidade.”