Entrelinhas

Corpus Christi: entre o religioso e o popular

 

Gisele Motta

 

 Beatriz Catão Cruz, professora e pesquisadora do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), lançou em 2005 o livro O Corpo de Deus na América: a Festa de Corpus Christi nas Cidades da América Portuguesa – século XVIII.

O livro veio de uma tese de doutoramento, de 2001, sendo publicado com ligeiras modificações. Trata de uma das festas religiosas mais importantes de Portugal e da América Portuguesa.  

O livro se divide em três capítulos: o Corpus Christi como festa religiosa e cerimônia da monarquia; a unidade e diversidade dentro da própria festa; e a festa com suas características populares.

O Olhar Virtual entrevistou a professora a fim de conhecer melhor o assunto e o livro.

Olhar Virtual: De onde veio a idéia para a tese e, consequentemente, para o livro?

Beatriz Catão Cruz Santos: Já no mestrado eu trabalhava com práticas católicas. Meu primeiro livro O pináculo do temp(l)o: o sermão do padre Antonio Vieira e o Maranhão do século XVII analisava esta prática discursiva oral no século XVII, mas eu queria sair dos rituais do interior do templo, ir para a rua; queria trabalhar com outras práticas não cotidianas, extraordinárias. Queria analisar a relação vida e morte na sociedade colonial e percebi que existiam várias festas que serviam a este propósito, como a Semana Santa (com a Procissão das Cinzas), as exéquias e a festa de Corpus Christi. Percebi, com o decorrer da pesquisa, que o número de festas era demasiado, então decidi me concentrar em Corpus Christi, que era muito importante no mundo ibérico e, particularmente, na cultura portuguesa. É uma festa muito interessante, que pretendia incluir a sociedade como um todo. Ela era uma festa compulsória, que exigia a presença de vários setores da sociedade.

Olhar Virtual: Qual a origem da festa?
 
Beatriz Catão Cruz Santos: Do ponto de vista litúrgico, a origem da festa está associada à rememoração do fato de que Cristo, para os cristãos, morreu para redimir a humanidade. A festa pretendia lembrar esse fato, fazendo um contraponto alegre, festivo à quinta-feira santa, quando se celebra a instituição da eucaristia. Na Idade Média, a festa de Corpus Christi resulta também de formas devocionais que valorizam o Cristo homem, daí uma festa reservada ao corpo de cristo. Na época moderna, a festa foi apropriada pela Monarquia e, por isso, os poderes locais (a exemplo das câmaras municipais) tinham um papel importante na sua organização.

Olhar Virtual: Quais as principais diferenças entre a festa nos países ibéricos e nas cidades coloniais?

Beatriz Catão Cruz Santos: Como qualquer festa, por mais que haja um padrão, um modelo, há diferenças graças à própria sociedade. Neste sentido, os editais e as pautas convocavam a participação, mas o comparecimento dependia da localidade, das circunstancias... que variavam a cada ano, enfim, da sociedade. Vários grupos estavam inseridos na festa como o Arcebispado, as ordens religiosas, os cavaleiros das ordens militares e várias irmandades. Aparentemente, temos a presença das três ordens – Clero, Nobreza e Povo. Mas, o que faz a diferença são os grupos e agentes sociais envolvidos, a sociedade na qual a festa ocorre.

 Olhar Virtual: Qual o papel popular na festa?

Beatriz Catão Cruz Santos: Em primeiro lugar, “popular” no livro, não pode sem entendido no sentido que usamos hoje de “povo” como a maioria da população, ou, os setores de baixo. “Povo” no livro fazia referencia a uma categoria do Antigo Regime. Simplificando, o chamado “terceiro estado”, que era basicamente representado pelos oficiais mecânicos, os homens que trabalhavam com as mãos e que pertenciam às irmandades de ofício. Na época em que fiz o livro, percebi que aqueles homens, em particular os pertencentes à Irmandade de São Jorge tinham um papel importante na procissão de Corpus Christi, na forma como ela representava a sociedade como um todo.

Olhar Virtual: Como a festa mudou desde a época das cidades coloniais até hoje?

Beatriz Catão Cruz Santos: Eu vejo muito mais mudanças do que semelhanças. A festa, por seu caráter compulsório, causava aglomeração, era um grande evento considerando as proporções das cidades coloniais. Hoje em dia, vemos algumas tentativas de recriar a festa em determinadas cidades - São João Del Rei, Parati, Cabo Frio, Friburgo – esta até o ano passado! Veja, por exemplo, os tapetes de flores, de serragem... Essa tradição dos tapetes é bem antiga, localizados na documentação da cidade do Rio do Janeiro desde o século XVIII. Mas, isto não quer dizer que tenham existido durante todos os anos da festa, nem que apontem para semelhanças da festa em diferentes tempos. Ela já foi uma festa de maior importância social, mas hoje em dia não. Mesmo se comparada a outras festas religiosas, festas como a de São Jorge, que consegue reunir muito mais pessoas. Hoje, ela já não produz a aglutinação urbana de antigamente, nem tem o papel de expor as autoridades e hierarquias locais.

A professora termina a entrevista informando sua última contribuição sobre o assunto, o artigo “The Feast of Corpus Christi: Artisan Crafts and Skilled Trades in Eighteenth-Century Rio de Janeiro”, publicado na revista The Americas: a quarterly review of inter-American Cultural History, em 2008.

O livro O Corpo de Deus na América: a Festa de Corpus Christi nas Cidades da América Portuguesa – século XVIII pode ser encontrado por R$27. É publicado pela Editora Annablume e tem 195 páginas.