Ponto de Vista

A França, mais uma vez, despedaçada

 

Tiago Nicácio

 

O presidente francês Nicolas Sarkozy aprovou no último dia 22, no senado, lei que irá estender, por mais dois anos, a idade limite para aposentadoria na França – de 60 para 62 anos. Antes mesmo da aprovação, a lei havia deflagrado uma onda de protestos.
 
Todas as refinarias do país foram fechadas por sindicatos trabalhistas e, apesar das investidas da polícia para forçar a reabertura, nenhuma delas cedeu até agora. Jovens franceses também saíram às ruas e demonstraram desacordo à implementação da lei. Todos rejeitam a ideia de onerar a classe trabalhadora com os gastos extras na previdência.
 
Para comentar a atual situação política da França, o Olhar Virtual ouviu o professor Franklin Trein, coordenador do programa de Estudos Europeus do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais).
 
Olhar Virtual: O problema previdenciário atinge a União Europeia, com o envelhecimento da População Economicamente Ativa (PEA). O corte de gastos neste setor é um compromisso firmado entre os países do grupo. Além disso, pesquisas indicam que mais de 60% da população francesa concorda com as políticas de aumento dos anos de contribuição. Paradoxalmente, cerca de 70% dos franceses apoiam as manifestações. Qual é sua opinião sobre esse quadro?
 
Franklin Trein: A situação da França não é diferente da de outros países da Europa, como Espanha, Itália e Alemanha, só que, em alguns aspectos, é mais aguda. A França tem crescimento demográfico negativo, ainda que menos grave que o da Espanha e Itália, mas tem uma expectativa de vida maior do que aqueles países, principalmente para as mulheres. Em outras palavras, o problema é que haverá menos gente para trabalhar e contribuir para a previdência, enquanto haverá mais gente para receber benefícios. O momento é crítico, porque é de transição. A geração anterior vivia menos e tinha crescimento demográfico que garantia mais gente para trabalhar e contribuir. O problema atual não é de hoje, já, há algum tempo, se sabe que isso iria acontecer. Mas nada foi feito e agora quer se resolver cobrando a conta só dos trabalhadores, isto em nome da estabilidade do capital, uma vez que se a rentabilidade diminuir será mais difícil de competir no mercado internacional.
 
Olhar Virtual: Pode-se dizer que a figura de Sarkozy como um “presidente dos ricos”, que vem se disseminando na França, contribuiu para a força dos protestos?  O senhor apontaria alguma outra razão para a sublevação popular?
 
Franklin Trein: Primeiro, Sarkozy é um presidente que representa os interesses do capital e não dos trabalhadores. Ele se elegeu em circunstâncias muito particulares da história contemporânea da França, apoiado pelas forças nacionalistas e da extrema direita, diante da divisão e do fracasso da esquerda, que não foi capaz de explicar o que significava a globalização e suas consequências para as conquistas sociais da sociedade francesa. Segundo, a sociedade francesa tem tradição histórica de luta, que se manifesta todas as vezes em que o Estado ultrapassa certos limites na defesa dos interesses da classe dominante. É o que acontece neste momento, quando o Poder Executivo quer jogar todo o ônus da reforma da previdência sobre a força de trabalho.
 
Olhar Virtual: Qual seria o valor político para o governo Sarkozy de um recuo na implementação desta lei? Seria uma saída possível?
 
Franklin Trein: Sarkozy não tem como recuar sem trair aqueles que o elegeram.
 
Olhar Virtual: Recentemente, o governo Sarkozy endureceu a legislação contra imigrantes ilegais. A União Europeia cogitou até ação disciplinar contra o país por conta da expulsão de ciganos para a Romênia e Bulgária. Os imigrantes são realmente um fardo ao sistema previdenciário ou podem ser incorporados à PEA do país?
 
Franklin Trein: Não são um fardo, até porque constituem um grupo muito pequeno. A reação de intolerância do governo de Sarkozy para com aqueles imigrantes é só mais face de sua política social. Já integrá-los à PEA implicaria uma perspectiva que Sarkozy não pode assumir, significaria trair a postura ideológica da direita nacionalista que o elegeu.
 
Olhar Virtual: O governo francês decidiu utilizar o recurso do “voto único” no Parlamento para abreviar o processo de aprovação da lei previdenciária. Em um país com um histórico democrático como a França, o senhor acha que esse tipo de atitude pode gerar ainda mais resistência?
 
Franklin Trein: A postura intransigente e autoritária do Executivo francês pode resultar em mais reações dos setores de oposição da sociedade civil. Sarkozy aposta em vários fatores para ganhar esta disputa, entre eles na imprensa conservadora e no comodismo de alguns segmentos da classe média, que se sente ameaçada por um outro problema: a imigração crescente de populações islâmicas do norte da África, que são força de trabalho barata e estão dispostas a fazer trabalhos que não exigem qualificação, mas que vivem em guetos e têm crescimento demográfico entre 34 vezes superior a dos franceses.