Entrelinhas

Terrorismo em debate

 

 

Aline Durães

 No último sábado, 11 de setembro, o mundo rememorou os ataques terroristas às Torres Gêmeas e ao Pentágono. Ocorridas em 2001, as ações coordenadas por Osama Bin Laden deixaram mais de 3 mil mortos e produziram mudanças significativas na política internacional contemporânea.

Segundo Arthur Amaral, pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), “o terrorismo influenciou, mesmo que indiretamente, as estruturas da política externa dos EUA e acabou por abalar as próprias estruturas da liderança, da legitimidade e da hegemonia dos Estados Unidos”.

Para discutir os impactos das ações terroristas dentro e fora do território norte-americano, Amaral organizou o livro Terrorismo e Relações Internacionais: perspectivas e desafios para o século XXI. Em entrevista ao Olhar Virtual, o professor comenta a obra, fala sobre terrorismo e pontua a necessidade de pesquisadores brasileiros voltarem os olhos para o tema. Confira!

Olhar Virtual: Como foi feita a escolha dos artigos que integram o livro?

Arthur Amaral: As contribuições que compõem a coletânea foram apresentadas originalmente em seminário com o mesmo título do livro e que foi realizado na PUC-Rio, pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI), entre os dias 14 e 16 de agosto de 2006. Os artigos foram recentemente revisados, atualizados e, em alguns casos, expandidos pelos respectivos autores, resultando no volume de 376 páginas que hoje temos em mãos.

Olhar Virtual: O senhor escreveu algum artigo para o livro? De que trata o texto?

Arthur Amaral: Justamente com a professora Mônica Herz, também do IRI/PUC-Rio, fui o organizador do livro e coautor do texto de apresentação inicial dos 13 outros artigos que constam na coletânea, que reúne um seleto grupo de professores, pesquisadores e autoridades de diversas instituições de excelência pelo mundo. Destaco, por exemplo, as contribuições de pesquisadores de prestigiadas universidades estrangeiras, como Stanford, Harvard, London School of Economics and Political Science (LSE), Brown University (EUA) e Al Akhawayn (Marrocos). Além disso, contribuíram para os debates professores de instituições brasileiras, como UnB, UFRGS, PUC-Minas, PUC-SP, PUC-Rio, USP e Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. Os artigos se estruturam em torno de quatro eixos temáticos: “A guerra antiterror e a reorganização do sistema internacional no pós-Guerra Fria”, “Mecanismos de combate ao terrorismo”, “O terrorismo e suas implicações para o direito internacional e os direitos humanos” e “Terrorismo, cultura, religião e mídia”. Nossa contribuição enquanto organizadores e redatores da apresentação foi dar sentido e coerência a um espetro tão rico e complexo de argumento e perspectivas sobre o tema do terrorismo.

Olhar Virtual: Como o terrorismo mudou a política internacional?

Arthur Amaral: O terrorismo já vinha sendo apontado como agenda de relativa importância desde meados da década de 1990, quando se inseria no conjunto de “novas ameaças” junto ao narcotráfico, à lavagem de dinheiro e outras fontes de preocupação de origem não-estatal. Mesmo antes disso, na década de 1970, o terrorismo já atraía a atenção do mundo à medida que movimentos militantes radicalizados ― como a OLP, por exemplo – faziam uso dessa ferramenta para favorecer a promoção de suas “causas”. Mas, sem dúvida, é a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas e o Pentágono que o terrorismo gera seu maior impacto na política internacional contemporânea. Em poucas palavras, o 11 de Setembro serviu como catalisador para as tendências neoconservadoras que se encontravam já presentes, mas ainda latentes em Washington. A partir desse momento que o governo Bush se torna cada vez mais unilateral e admite a utilização do uso da força para promover seu modelo político de democracia liberal, cuja propagação pelos demais países do sistema mundial serviriam como grande panaceia capaz de sanar todos os problemas de segurança do mundo. Dessa virada unilateralista resultou o enfraquecimento da ONU, que foi incapaz de parar os ímpetos intervencionistas da Casa Branca frente ao Iraque. Dessa conjuntura, resultou um crescente antiamericanismo e uma situação geopolítica extremamente delicada para o governo Bush, que se via às voltas com um déficit crescente no plano doméstico, uma crescente desaprovação popular e certo isolamento internacional. O terrorismo influenciou, mesmo que indiretamente, as estruturas da política externa dos EUA e acabou por abalar as próprias estruturas da liderança, da legitimidade e da hegemonia dos Estados Unidos.

Olhar Virtual: Na apresentação do livro, o senhor enfatiza que “Assim como o desmantelamento da URSS em 1991 não fora previsto, também o 11 de Setembro se impôs como um evento inesperado, embora impulsionador de importantes mutações na política internacional”. A imprevisibilidade do evento somada à necessidade urgente dos países em fazer algo em retaliação a ele produziu reações exageradas e/ou erradas? Quais foram as principais?

Arthur Amaral: Uma das principais “armas” dos grupos terroristas é a utilização estratégica e tática da imprevisibilidade. Governos e burocracias não costumam se preparar para o impensável, certas vezes, se tornando simplesmente incapazes de articular uma reação ágil a eventos inesperados. Consequentemente, por não haver planejamento prévio de “como reagir”, medidas drásticas, que em situações normais nem sequer seriam cogitadas, acabam sendo uma forma de reação desesperada diante de eventos traumáticos. Foi esse o caso do 11 de Setembro. No âmbito da Guerra ao Terror um amplo conjunto de medidas excepcionais foram implementadas, a mais notória delas a Lei Patriota (PATRIOT Act), que previa a interceptação de conversas por telefone e de troca de dados eletrônicos. Em suma, medidas que poderiam violar a privacidade individual e os direitos civis. Além disso, o governo norte-americano adotou técnicas de interrogatório controversas, muitas vezes classificadas como tortura por ONGs vinculadas à defesa dos diretos humanos. Também no campo internacional, adotou-se a prática da Rendition – a captura de um suspeito e sua transposição para países “aliados” no combate ao terrorismo, onde esses indivíduos seriam interrogados. A questão principal é que muitos desses países de destino – como o Egito e o Paquistão – são conhecidos a prática da tortura sistemática como técnica de interrogatório. Assim, foram várias as medidas extraordinárias tornadas possíveis devido ao senso de urgência ao estado de exceção que marcou a Guerra ao Terror.

Olhar Virtual: É possível articular combate ao terrorismo e preservação dos Direitos Humanos?

Arthur Amaral: Sem dúvida, é possível, mas é uma tarefa desafiadora. É isso que o governo Obama tem tentado fazer, pois, segundo suas próprias palavras, “a América não tortura”. Tradicionalmente, a saída mais “simples” – ou talvez simplória – adotada pelas autoridades governamentais para o combate ao terrorismo tem sido iniciar uma ampla repressão, com a missão de perseguir e punir os responsáveis “a qualquer custo”. O que essa visão simplista não consegue entender é que muitas vezes é exatamente isso que o terrorista quer que o governo faça: reagir exageradamente a uma provocação, tomando medidas impopulares e fortemente repressoras, que, no fim das contas, vão minando a própria legitimidade do governo. Assim, por mais que seja uma empreitada nada simples, os governos interessados em minar o apoio a grupos terroristas devem sempre tentar conquistar e manter os “corações e mentes” da população de seus respectivos países e mesmo da comunidade internacionais. E respeitar os direitos humanos é uma condição essencial para manter estável essa legitimidade e constante o reconhecimento de uma determinada liderança global.

Olhar Virtual: O livro contém artigos escritos por brasileiros e norte-americanos. Um dos pontos altos da obra, apontado já na introdução, é a multiplicidade de visões sobre o mesmo tema. Quais as principais diferenças entre a abordagem brasileira e a norte-americana?

Arthur Amaral: Os autores norte-americanos que contribuíram para nosso volume são membros da academia e, muitas vezes, tinham visões até mesmo críticas sobre as políticas adotadas por Washington. Nesse sentido, permeia a maioria dos artigos a premissa de que a Guerra ao Terror e as variadas formas de violência que se manifestam nas relações internacionais contemporâneas não são algo natural e ao qual não podemos escapar. Ao contrário disso, são frutos de nossas escolhas políticas. Assim, consequentemente, nos tornamos responsáveis pelos resultados dessas escolhas. A principal diferenciação entre os autores se dá nos temas que eles abordam a partir dessa premissa comum. Da mídia ao direito, da al-Qaeda à estratégia de combate ao terror do governo norte-americano, são diversos olhares sobre esse mesmo fenômeno tão crucial para a agenda internacional moderna.
A título de informação – embora esse debate não esteja evidente no livro – valeria mencionar que há uma diferenciação substancial entre as posturas dos governos norte-americano e brasileiro sobre o tratamento e a classificação do que é ou deixaria de ser o terrorismo. Muito resumidamente, poderíamos dizer que os Estados Unidos, assim como a União Europeia, optaram por criar unilateralmente listas onde são reunidas todas as organizações consideradas terroristas. Além disso, têm em comum o fato de definições do que é terrorismo restringir esse rótulo a atores não estatais, excluindo a possibilidade de se falar em terrorismo de Estado. O Brasil, ao contrário, classifica atos como terroristas e não organizações, o que lhe permite falar em terroristas de Estado. E quanto ao conceito de terrorismo, o governo brasileiro, segundo sua tradição diplomática, tem como preferência adotar uma definição que fosse votada multilateralmente na Assembleia Geral da ONU. Contudo, não foi possível se chegar a uma noção consensual, devido principalmente às divergências entre a dupla EUA-UE e a Liga Árabe.

Olhar Virtual: O Brasil ainda não tem uma obra vasta sobre o terrorismo. O que explica o fato de os pesquisadores brasileiros não se interessarem pelo tema? Nesse sentido, qual a importância do livro que o senhor organiza?

Arthur Amaral: De fato ainda há um grande déficit na produção nacional de conhecimento sobre o terrorismo. Só depois do 11 de Setembro é que houve um despertar de maior interesse sobre o tema. Mas, mesmo assim, ainda há muito pouco se comparado a tradicionais centros de pesquisa, como a Europa e os Estados Unidos. Acredito que esse “desengajamento” tenha uma explicação relativamente simples: o Brasil ainda não foi vítima de atentado terrorista internacional. Diversas vezes, políticos e autoridades governamentais classificam os mais variados atos – alguns associados ao crime organizado, por exemplo – como terrorismo. Mas está obvio que isto é mais consequência de um exercício de “elasticidade” conceitual ― para não dizer imprecisão – do que propriamente de uma classificação rigorosa. Em suma, o Brasil ainda não se dedica ao estudo mais aprofundado do terrorismo porque ainda não tivemos nosso “11 de Setembro”, nem nosso “Osama Bin Laden”.
Agora que conquistamos o direito de sediar a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, é imprescindível que todos nós – sobretudo as organizações de segurança do Estados, mas também a academia e demais setores que atuam na formação da opinião pública – ampliemos o entendimento do fenômeno. Para que estejamos preparados para o imprevisível e não repliquemos os equívocos de outros que subestimaram a ameaça, é necessário antes de qualquer coisa que nos informemos sobre o assunto, que conheçamos em detalhes a questão do terrorismo internacional. E que façamos isso de modo autônomo, sim, mas que estejamos abertos ao diálogo e ao aprendizado com outros atores internacionais relevantes, como os próprios Estados Unidos ou Israel, os quais, por motivos óbvios, têm mais experiência desse campo do que nós.