Ponto de Vista

O santo chá da discórdia

Rodrigo Baptista

Ilustração: Caio Monteiro

No dia 25 de janeiro, em resolução publicada no “Diário Oficial da União”, o governo federal oficializou o uso religioso do chá Ayahuasca – também conhecido como daime, hoasca, yagê e vegetal. Sem força de lei, o texto, formulado depois de décadas de negociações e estudos realizados pelos órgãos de combate às drogas, define as responsabilidades das religiões oficiais e garante o direito de consumo do alucinógeno a adultos, mulheres grávidas, jovens e até crianças durante os rituais. Por outro lado, ele veta a comercialização e a propaganda do composto feito a partir do cipó mariri e das folhas da erva chacrona, além de sugerir que qualquer tentativa de turismo motivado pelo chá seja coibida. O chá de ayahuasca é uma bebida psicoativa feita pelo cozimento de duas espécies vegetais e utilizada em cerimônias. Ela se popularizou durante os anos 1960 e 1970 com a emergência da contracultura, da cultura hippie e a publicação de livros como os do escritor mexicano Carlos Castañeda, que narrava o emprego de plantas em rituais indígenas no México e nos Estados Unidos.

De acordo com André Leonardo Chevitarese, professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), o Santo Daime — religião que mescla elementos culturais diversos, como as tradições caboclas e xamânicas, o catolicismo popular, o esoterismo e tradições afro-brasileiras — faz parte de um mosaico religioso típico do Brasil. “O país conta com experiências multifacetadas e é bastante polissêmico quando falamos de religião. As manifestações desse tipo unem elementos de diferentes origens e contribuem para essa pluralidade”, explica.

Apesar dessa heterogeneidade, Chevitarese alerta para a forte tendência de singularizar o Brasil como um país cristão, já que o cristianismo é, ele próprio, um espectro cheio de subdivisões, e há uma dificuldade em entendê-lo de forma plural. O professor ressalta ainda a tênue linha que separa religião e Estado no país. “Apesar de se tratar de uma nação laica por lei, há manifestações religiosas que acabam, por diferentes projetos de poder, tornando menos clara essa divisão entre Estado e religião”, observa.

Para explicar as origens da tradição da Ayahuasca e sua ligação com os rituais religiosos, o Olhar Virtual entrevistou o pesquisador Augusto Garcia, orientando de Chevitarese, e interessado em entender o encontro entre a Umbanda e o Santo Daime, a partir da utilização ritual da Ayahuasca. De acordo com Garcia, ainda existe muito preconceito e ignorância em relação ao chá e às religiões que o utilizam.

Olhar Virtual: Como funciona a utilização do chá e qual o objetivo de tal prática?

Augusto Garcia: Existem várias religiões e várias tribos indígenas que o utilizam. Cada uma delas vale-se do chá de uma maneira peculiar, mas sempre com o mesmo fim, que é a experiência religiosa. A bebida é empregada em contexto ritual, com o intuito de obter o transe, conhecido no Santo Daime como Miração. É nesse momento que os ensinamentos espirituais são transmitidos para aquele que ingeriu a bebida.

Olhar Virtual: Qual é a origem da tradição da ayahuasca e sua ligação com os rituais religiosos?

Augusto Garcia: A ayahuasca é uma bebida milenar que remonta aos incas e aos primórdios de uma civilização ainda mais antiga e desconhecida que viveu nas florestas do continente americano. Essa bebida sempre esteve ligada à manifestação religiosa. O princípio de sua utilização é que na natureza não existe apenas alimento para o corpo, como arroz e feijão, mas também alimento para a alma. A ayahuasca permitiria, assim, um contato com o mundo dos espíritos. Em algumas tribos indígenas localizadas no território brasileiro e também peruano, o uso dessa bebida de poder é o único aprendizado espiritual. Não existe uma doutrina com regras pré-estabelecidas, o próprio indivíduo vai recebendo seus ensinamentos a partir da utilização constante.

Olhar Virtual: Quais são os efeitos mais comuns relatados sobre essa utilização?

Augusto Garcia: Os efeitos variam de pessoa para pessoa, mas é importante passar por um período de limpeza material antes da utilização da bebida. No Santo Daime se pede que o fiel fique três dias antes e três depois de ingerir a bebida sem álcool, sexo e qualquer tipo de droga. Isso faz com que nada interfira nos efeitos da bebida.

Olhar Virtual: Como surgiram religiões como Santo Daime, União do Vegetal e outras que utilizam a ayahuasca?

Augusto Garcia: Cada religião tem uma história própria e independente. O Santo Daime é uma doutrina que foi fundada por Raimundo Irineu Serra, mais tarde conhecido como Mestre Irineu, em Rio Branco (AC), em 1930. Incorpora elementos do universo católico, assim como de religiões afro-brasileiras e indígenas. Raimundo Irineu Serra foi para o Norte trabalhar na extração da borracha e lá entrou em contato com a bebida, a partir de relacionamento com índios peruanos. De 1935 a 1940 é que o mestre Irineu desenvolveu os valores do Santo Daime, período em que já estava morando em Rio Branco. Em 1945 fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, o Alto Santo, que reuniu diversos membros e visitantes. Além do Mestre Irineu, mestre Gabriel, fundador da União do Divino Vegetal, também cristianizou a utilização da bebida. Hoje em dia existem várias religiões cristãs que utilizam a ayahuasca em seus rituais religiosos como o Umbandaime e a Barquinha.

Olhar Virtual: Por que encontramos a resistência de alguns setores em relação à legalização da ayahuasca em rituais religiosos?

Augusto Garcia: O principal motivo é o preconceito, fruto da ignorância. A Ayahuasca deve ser tratada como um patrimônio cultural da humanidade. Na década de 1990, quando houve mais uma tentativa de proibir o uso da bebida, foi realizada uma pesquisa que levantou algumas evidencias sociais, que servem para corroborar o fato de que a bebida não é recreativa. Entre elas destaco que não há casos registrados de uso recreativo da bebida, assim como não há indivíduos que se declarem dependentes químicos em ayahuasca. As pessoas atacam a utilização da bebida em contexto ritual, na maioria das vezes, por falta de conhecimento de sua história e da tradição xamânica americana, que sempre utilizou plantas de poder em rituais religiosos.

Olhar Virtual: Quando a Ayahuasca começou a ser utilizada no Brasil?

Augusto Garcia: A ayahuasca é uma tradição dos índios americanos. É impossível dizer com precisão quando começou a ser utilizada no Brasil, mas as religiões sincréticas, como o Santo Daime, Barquinha, União do Divino Vegetal, entre outras, expandiram a tradição da ingestão da bebida para outras regiões do país e também do mundo, principalmente a partir dos anos 1940.  

Olhar Virtual: Como são as cerimônias?

Augusto Garcia: No Santo Daime, as cerimônias são basicamente de dois tipos. No trabalho de Hinário, os integrantes ficam em pé ao redor da mesa e cantam todo o hinário, conjunto de hinos (canções com ensinamentos religiosos). O trabalho de Concentração acontece duas vezes por mês, dias 15 e 30. Nesse trabalho, os integrantes da doutrina ingerem a bebida e, após cantar alguns hinos, ficam sentados em estado meditativo por um tempo, que varia de uma a três horas.

Olhar Virtual: O que pode mudar com a resolução publicada no “Diário Oficial da União”, na qual governo brasileiro oficializou o uso religioso do chá ayahuasca?

Augusto Garcia: Não há como dizer ao certo o que pode mudar, mas a oficialização do uso religioso do chá ayahuasca pode trazer um maior respeito aos adeptos das doutrinas que utilizam a bebida. No entanto, o culto da Umbanda foi descriminalizado em 1944, quando vários umbandistas entregaram ao então presidente Getúlio Vargas um documento intitulado “O Culto da Umbanda em Face da Lei” e até hoje é comum assistirmos atos de violência contra essa manifestação religiosa. O verdadeiro respeito virá na medida em que a ignorância for sendo vencida pelo esclarecimento. De qualquer forma, a regulamentação vai trazer mais segurança para as religiões que utilizam essa bebida e também maiores responsabilidades.