Ponto de Vista

Ensino superior: um problema de acesso

Sofia Moutinho – Agn Pv


Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que 73,9% dos alunos de ensino superior no Brasil são oriundos de escolas particulares. Na região Sudeste, onde se concentra a maior parte dos universitários do país, esse índice chega a 81,4%. Existe hoje uma série de tentativas do Governo Federal de democratizar o acesso ao ensino superior, dentre elas a implantação do novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Nos últimos anos, implantou-se desde política de cotas até projetos como o Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece bolsas em universidades particulares.

A história do ensino superior no Brasil teve início em 1808, com a chegada da Família Real, quando foram criadas as primeiras universidades: Escola de Cirurgia, em Salvador, Escola de Anatomia e Cirurgia e Academia Real da Marinha, no Rio de Janeiro. E foi somente durante a República, em 1911, que o governo passou a exigir um exame para ingresso de candidatos. O modelo de vestibular seguiu sem muitas alterações até o período da ditadura militar, quando os processos seletivos foram unificados. Somente em 1996, as universidades conseguiram, por lei, garantir sua autonomia para formular modelos próprios de vestibular.
Atualmente, segundo dados do Ministério da Educação (MEC), apenas 12,1% dos jovens entre 18 e 24 anos estão matriculados no ensino superior. Esse índice é menor que o das nações de primeiro mundo e inferior até mesmo ao de países em desenvolvimento, como a Coreia do Sul, que possui 89% dos jovens em universidades. Para discutir o acesso ao ensino superior no Brasil, avaliar o modelo atual e as possíveis alternativas democráticas, o Olhar Virtual entrevistou o educador Marcelo Corrêa e Castro, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ.

Em 2006, o senhor declarou que, em relação aos diferentes tipos de concurso de acesso à universidade que o Brasil já teve, os sucessivos governos têm se preocupado mais em verificar o processo da aprendizagem do que em aperfeiçoar o produto. O senhor mantém essa posição?

Marcelo Corrêa e Castro: Mantenho. Acho que o governo, adotando iniciativas como o Novo Enem, está preocupado com essa plástica de controlar a saída do ensino médio, mas não está interessado em melhorar o ensino médio. Deveria tirar o foco da prova e colocá-lo na formação do aluno.

O vestibular é a melhor forma de acesso ao ensino superior? Existem alternativas melhores?

Marcelo Corrêa e Castro: O cenário ideal seria universalizar a oferta do ensino médio e ir também mais atrás e melhorar a educação infantil. O fundamental é melhorar o ensino, e não se preocupar com a prova de ingresso ao ensino superior. As escolas de ensino médio estão totalmente abandonadas e não dão conta da procura por vagas. Faltam vagas no ensino médio. Em qualquer país com um ensino superior de qualidade, como os EUA e alguns da Europa, o sistema funciona como um todo. A questão não é fazer um sistema de seleção bom, mas alinhar todo o processo educacional. A gente não tem um sistema de formação básica eficiente e o nosso ensino médio não atende a todo mundo. Se a situação fosse diferente, a forma de acesso deixaria de ser importante.

Qual a sua opinião sobre a substituição do vestibular tradicional pelo Novo Enem? Seria um modo mais democrático de acesso ao ensino ou apenas uma medida paliativa?

Marcelo Corrêa e Castro: O Novo Enem descaracterizou o Enem, que era um mecanismo de avaliar o ensino médio a partir de uma série de questões de conhecimento geral. Nesse sentido, ele era coerente e poderia servir para formular políticas públicas na área da educação. Agora, reformular isso e agregar rapidamente conteúdos a esta prova é complicado. O Novo Enem é um exame que não foi nem testado.

O senhor acredita que a preocupação com a seleção dos estudantes que estão aptos a ingressar no ensino superior desvia a atenção dos governantes sobre a qualidade do ensino médio?

Marcelo Corrêa e Castro: O governo tinha que formular políticas para melhorar a qualidade, pagar bem aos professores, garantir e equipar as escolas, dar merenda para as crianças. O ensino médio é feito pelas escolas. A seleção de ingresso ao ensino superior é uma questão que as universidades decidem com bastante critério. Mas escolas de ensino médio são solenemente ignoradas nesse processo. Não se costuma avaliar o trabalho delas. Quem pode colocar em prática o novo ensino são as escolas. Mudanças como o Novo Enem apenas farão como que as pessoas se adaptem ao modelo de prova, e o ensino não vai melhorar com isso.

Nos anos 40, a então Universidade do Brasil mantinha o Colégio Universitário, que preparava os alunos recém-saídos do Colegial (antigo ensino médio) para a universidade. A volta dele seria uma alternativa para o fortalecimento do ensino de base?

Marcelo Corrêa e Castro: Acho que os colégios de universidades, de aplicação, não devem ter como função preparar para a universidade, mas desenvolver um projeto pedagógico de ensino. Caso contrário, os alunos só aprendem aquela fórmula para passar. Não acredito nessa figura com essa função de apenas preparar para o vestibular de  determinada universidade.

O senhor acha que as universidades devem ter  autonomia para decidir a sua forma de acesso ou a seleção deve ser regulada pelo governo, como aconteceu nos anos 70 com o vestibular unificado?

Marcelo Corrêa e Castro: Sim, as universidades devem ter sua autonomia. Quando o vestibular foi unificado, os resultados eram insatisfatórios e, além disso, conferia um poder tremendo ao Estado. O modelo isolado tem se mostrado mais criterioso e mais eficiente. Um modelo de autonomia é o ideal, até porque as universidades sabem fazer exames muito melhor que o governo.

Nos últimos 30 anos as universidades particulares se multiplicaram pelo país e hoje são vistas como uma alternativa para aqueles que não conseguem ingressar na universidade pública. Atualmente, 71% das universidades do paíssãoparticulares e 29% federais. Por que as instituições particulares ganharam esta força?

Marcelo Corrêa e Castro: As particulares ganharam força porque nem todos têm o mesmo acesso à universidade pública. É uma lei de mercado: existe a procura e, então, se criam novas ofertas.

O que acha de iniciativas do governo, como o ProUni, com o objetivo de criar vagas públicas em universidades particulares?

Marcelo Corrêa e Castro: Sou bastante rigoroso neste aspecto e acho que o dinheiro público não devia subsidiar nenhuma atividade privada na área de saúde e educação. A educação deveria ser oferecida em todos os seus níveis gratuitamente pelo Estado. A educação privada deveria existir apenas como sobra do público, como uma opção a mais. O Estado contratar serviço, ainda que seja assim, não deveria acontecer. Medidas como o ProUni são, no máximo, paliativas.

Como desenvolver um critério de ingresso ao ensino superior que seja totalmente democrático?

Marcelo Corrêa e Castro: Através de um bom sistema de formação básica para que as pessoas tenham a condição de escolher seu caminho. No melhor dos mundos, haveria a orientação dos alunos sem ser necessária a seleção por exames. Como nos EUA, através de uma análise do currículo do candidato.

Enquanto não se consegue resolver o problema do ensino básico, qual seria o modo mais eficaz de  acesso ao ensino superior?

Marcelo Corrêa e Castro: O vestibular atual é muito melhor que o do governo. As universidades podem incorporar algumas medidas do governo, como a Uerj e a UFRJ fizeram com o Novo Enem, mas a autonomia das universidades não vai morrer porque a gente faz melhor.