Olho no Olho

Cuba: mito e realidade, 50 anos depois da revolução

Igor de Matos e Isabela Pimentel

Cinquenta anos após a ascensão ao poder do grupo de revolucionários comandados por Fidel Castro, a Revolução Cubana ainda provoca debates acalorados. Com a substituição do antigo comandante-en-jefe por seu irmão mais novo, el chino Raul, uma série de acontecimentos vem tomando conta do país desde o início de 2008. Uma possível reestruturação política no governo suscita a maior reflexão sobre o futuro do socialismo na ilha.

Segundo Manuel Sanches, professor do departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), o papel da revolução deve ser relativizado. Ele explica que quando Fidel chegou ao poder em 1959 não havia consenso entre os revolucionários acerca da adoção do socialismo. “É preciso que as pessoas tenham olhos para reconhecer que a proposta revolucionária era muito mais uma crença quase religiosa do que uma verdade política”, enfatiza.

Já Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História Moderna e Contemporânea do IFCS, acredita que o aparecimento da uma oposição política ao atual regime é um caminho natural. “A ausência de Fidel irá, desde já, criar as condições para o surgimento de grupos de oposição e de disputa pelo controle do aparelho burocrático do regime. É mesmo possível que tais disputas se deem em nome do melhor entendimento da herança política de Fidel”, acredita.

Para entender um pouco mais como os atuais dilemas e contradições vividos pelo país se relacionam à sua história, especialmente após o período revolucionário, o Olhar Virtual conversou com dois especialistas sobre as principais mudanças nos últimos cinquenta anos e os desafios para o futuro cubano.

Francisco Carlos Teixeira da Silva
Professor titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ

“O tipo de liderança exercido, largamente baseado no extraordinário instinto político de Fidel, ao lado de sua constante presença na mídia nacional, somados ao modo de vida simples e à comunicação direta, sempre conseguiram manter a liderança fidelista acima de contestações e da formação de grupos de oposição no interior do governo, do partido ou das Forças Armadas.

Com Fidel em Cuba, o imenso prestígio pessoal do líder da Revolução e a lealdade dos companheiros da época da Revolução permitiram que a ilha passasse por vários e graves transes – invasão estrangeira, bloqueio, crise econômica, colapso do socialismo real no mundo – sem a formação de grupos internos (em relação aos imigrados) de oposição no interior das instituições do próprio Estado e do partido. Mesmo a dissidência de líderes históricos da Revolução Cubana foi sempre pessoal, voluntarista, incapaz de aglutinar em torno de tais figuras um grupo capaz de desafiar, por dentro, o próprio poder revolucionário.

A ausência de Fidel e do seu mando carismático coloca em xeque todo esse histórico do regime socialista em Cuba. Sua ausência irá, desde já, criar as condições para o surgimento de grupos de oposição e de disputa pelo controle do aparelho burocrático do regime. É mesmo possível que tais disputas se deem em nome do melhor entendimento da herança política de Fidel.

A atual discussão no interior do Conselho de Estado (núcleo central do poder executivo federal cubano) e do partido se dá exatamente sobre o caráter das reformas, ou mudanças, que se farão. O próprio Raúl Castro havia, já no final de 2006, proposto uma série de mudanças, com ênfase nas reformas políticas e econômicas. Agora, logo após sua eleição para a Presidência do Conselho de Estado, no seu discurso de aceitação, articulou um recuo tático frente ao anteriormente dito, em especial em face do discurso de 26 de julho de 2006 em que acenava com mudanças políticas. A nova ‘linha’ que parece ter unificado o Conselho e o partido afirma, com grande ênfase, a realização de reformas econômicas, mas nenhuma reforma política.

Assim, não se deveria contar com uma reforma política que venha a ameaçar a hegemonia e o caráter de liderança do partido na condução do Estado e da sociedade na ilha. As reformas seriam exclusiva e minimamente econômicas, centradas na questão da moeda, do seu valor e da sua duplicidade. Ao mesmo tempo, as grandes propostas – apontadas pelo próprio Raúl em 2006 – e a questão do baixo valor dos salários e do estado deplorável da agricultura e da infraestrutura básica da ilha não foram trazidas de volta à baila.”

Manuel Sanches
Professor do departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)

“Quando a revolução aconteceu, vivia-se em um mundo de Guerra Fria, no qual havia duas alianças possíveis: de um lado, os Estados Unidos e, de outro, a antiga União Soviética. Então, a história de Cuba vai estar, a partir de dado momento, claramente vinculada à da União Soviética.

Havia muitos investimentos americanos na ilha, ligados a atividades marginais, como em cassinos, jogos, hotelaria turística vinculada ao jogo, criminalidade, lavagem de dinheiro. Algumas dessas atividades foram alvo de uma pressão governamental, em especial no sentido de nacionalizá-las, gerando divergência com o governo americano.

Fidel então se aproximou da União Soviética. Era inimaginável, do ponto de vista da geopolítica internacional e também americana, que houvesse um país com atividades militares especialmente associadas à União Soviética. Isso mais tarde vai gerar a crise dos mísseis, aprofundando ainda mais as divergências entre o governo americano e Fidel.

A aproximação de Fidel com a URSS criou uma tensão cada vez maior com os Estados Unidos, que impuseram um bloqueio econômico contra Cuba, adotando medidas retaliativas caso algum país infringisse a proibição de negociar com a ilha. Isso foi um erro do ponto de vista da diplomacia americana. Cuba, como qualquer país de seu tamanho, não tinha capacidade econômica grande, o que o fez acelerar a sua produção de açúcar. Entretanto, esta não poderia ser feita em minifúndios – como era, a princípio, a proposta da política agrária de Fidel. A solução foi a coletivização com a presença do Estado, modelo adotado na União Soviética após a morte do Lênin.

O país precisava gerar receitas que não fossem oriundas do turismo, já que a prostituição e as drogas eram parte do modelo de Batista. Houve então a meta de produzir cada vez mais para apenas um mercado consumidor: a União Soviética. A exigência dos russos era uma submissão de caráter político. Enquanto a URSS perdurou, Cuba também perdurou. No momento em que um entra em colapso, o outro também entra.

De forma geral, houve ganhos nas áreas da Saúde e Educação. No entanto, isso deve ser relativizado, pois tais melhorias vieram muito mais por conta de outros aspectos do que da gestão socialista cubana. O principal avanço foi em relação às desigualdades sociais. Quando se parte da tentativa de reduzir as diferenças sociais em um país com baixa capacidade produtiva, acaba sendo feito um nivelamento que não cria condições econômicas efetivas. Cuba é uma sociedade muito menos desigual do que os demais países capitalistas da América Latina, mas, em compensação, vive-se uma vida economicamente ainda precária.

Nesse processo, o governo cubano conseguiu mobilizar a sociedade, em especial o pequeno grupo intelectualizado originário das oligarquias, no sentido de estimular a educação, o que faz com que a sociedade cubana seja toda alfabetizada, com segundo grau pelo menos, de altíssimo padrão. Não do ponto de vista tecnológico, mas do ensino.

Um segundo processo de melhorias é o da saúde pública, que é básica, mas atende às necessidades de um país pobre. Pode-se falar em setores em que Cuba tem atuação de ponta, como vacinas e cirurgia. Todavia, o que faz a medicina de hoje não é sua gestão política, mas sim sua tecnologia. E para se ter medicina sofisticada, é preciso um conjunto de equipamentos eletrônicos que Cuba não tem.

Educação e saúde foram as áreas que se desenvolveram com maior rapidez, o que criou a ideia de que Cuba é o que há de mais espetacular nesses setores. O país é um exemplo importantíssimo de como se faz medicina e ensino democrático popular, mas nada além disso. Porém, Cuba não pode ser essa potência porque não tem um parque industrial desenvolvido.

Havia muita expectativa em relação à Revolução Cubana. Mas ela foi uma ilusão que deixou poucos resultados. Eles existiram e foram bons: democratizaram-se a educação e a saúde e nivelaram-se por baixo as desigualdades sociais. Mas eu pergunto: era essa exatamente a expectativa do mundo socialista?”