Ponto de Vista

Quem cuida dos seus filhos?

Júlia Faria

No mundo contemporâneo, as dinâmicas que compõem a estrutura familiar adquiriram um novo formato. Agora, por exemplo, não apenas o pai é responsável pelo sustento do lar. A mulher, que há muito já superou os entraves que a prendiam à vida exclusivamente doméstica, também ingressa no mundo do trabalho para complementar, ou muitas vezes formar, a renda familiar. Nesse processo, pais e mães precisam dedicar bastante de seu tempo ao trabalho, o que causa uma incompatibilidade com as necessidades de atenção e cuidados demandadas pelos filhos. A solução é então recorrer ao serviço de terceiros, seja o de uma babá ou de uma creche.

Esse fenômeno é visto por muitos como um elemento comprometedor da educação infantil, estando associado à idéia de ausência dos pais e, por conseguinte, delinqüência dos filhos. Para Dores Lacombe, fundadora da Associação Saúde Criança Recomeçar, que presta assistência a pacientes de baixa renda do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG/UFRJ), a questão tem outras nuanças. Dores não critica a contratação de babás, porém ressalta a importância dos pais em dialogarem e transmitirem a seus filhos os valores intrínsecos à família. Confira a seguir a entrevista concedida ao Olhar Virtual.

Olhar Virtual: Hoje em dia, é comum que crianças cresçam desde cedo sob os cuidados de terceiros, como babás ou em creches. Ao que a senhora atribuiria essa terceirização?

À vida moderna. É impossível que os pais conciliem cuidado integral com os filhos e dedicação ao trabalho. Ou a pessoa se dedica à função de pai ou mãe ou se dedica ao trabalho. As duas coisas não batem. O que bate é a culpa. A mãe se sente muito culpada, pois precisa trabalhar para manter o padrão de vida. Ela se culpa por ter perdido coisas corriqueiras na vida do filho, como o dente que caiu, por exemplo. Porém, como os pais precisam sustentar a casa, a terceirização é algo que eu acho muito necessário à vida moderna. Eu morei na Europa por quatro anos e meio e lá, quando a mulher, que é dona de casa, vai em busca de um emprego, a primeira coisa que ela vai observar é a possibilidade de ficar com as suas crianças. E tem como. A mãe durante o expediente tem a possibilidade de dar a papinha para a sua criança ou de se ausentar para vê-la. Nós não temos isso aqui no Brasil. Raríssimas instituições têm essa dinâmica. Essa facilitação não está ainda presente na nossa cultura.

Olhar Virtual: A senhora acredita então que a terceirização dos cuidados com as crianças é uma tendência atual?

Sem dúvidas.

Olhar Virtual: A senhora vê conseqüências nesse processo?

Não vejo nenhuma conseqüência. Eu falo pelos meus netos, por exemplo, que foram cuidados e não foram assistidos integralmente pelos pais. O que eu fiz quando fui mãe é de uma violência tamanha e é algo que hoje ninguém mais faz: deixar um bom emprego para cuidar dos filhos. O emprego lhe dá uma base financeira para que você tenha no fim do mês um espaço para respirar.

Olhar Virtual: E a senhora não acredita que a criança sinta a ausência dos pais?

Aí é um problema dos pais. Claro que a criança sente a ausência. E ela é tão inteligente que vai tentar manipular os pais de todas as maneiras para chamar a atenção deles. Mas é uma questão de ser forte e de fazer a criança sentir que é para o bem dela. Os pais devem fazer a criança entender que vão passar o dia inteiro longe dela, mas que, quando eles retornarem à noite, o reencontro será uma festa. É uma questão de os pais e os filhos trocarem figurinhas.

Olhar Virtual: Porém, em alguns casos a criança passa tanto tempo com a babá que a chama até mesmo de “mãe”. A senhora acha que esse tipo de situação pode afetar a relação entre mãe e filho?

Chamar a babá de mãe é algo que eu acho errado. A babá pode ter um nome carinhoso, mas “mamãe” nunca. A criança deve entender o que essa babá, que é uma cuidadora, representa e que a própria babá está deixando alguma coisa para estar ali cuidando dela. E é bem importante que os pais também tenham essa conscientização, que eles entendam que há uma troca muito além do dinheiro. Uma babá bem paga hoje em dia custa mais de R$1.800, e ela se sacrifica por esse dinheiro. Quando você encontra uma cuidadora carinhosa, ela está deixando de dar todo esse afeto para outra pessoa em troca de dinheiro.

Olhar Virtual: A babá deixa de dar esse afeto a seus próprios filhos?

Exatamente. Isso tem que ser muito trabalhado, mas dá certo. Dá muito certo. Eu, quando fui mãe, deixei de trabalhar, mas ainda assim precisei do auxílio de uma babá e tive a sorte de encontrar uma pessoa com a qual estabeleci uma relação maravilhosa e que se tornou integrante da família. Quando são boas cuidadoras, as babás são capazes até mesmo de entender a própria mãe.

Olhar Virtual: É preciso então ter a sorte de encontrar uma boa cuidadora?

Sim. Hoje em dia isso está até mais fácil. Há firmas que preparam pessoas para essa função.

Olhar Virtual: E quando a família não tem condições de contratar uma profissional e é o próprio filho mais velho, ainda criança, que cuida dos irmãos? Qual a conseqüência para essa criança que assume o papel de cuidadora?

Aqui na Recomeçar, eu vejo essa situação acontecer com freqüência. Mas é algo para o qual não me parece haver solução. A mãe me fala: “Eu preciso trabalhar. Se eu não deixar os menores com o mais velho, eu vou deixar com quem?” A coisa mais engraçada é que quando as mães vêm para cá, elas precisam trazer todos os filhos. Quando chegam, elas vão para seus trabalhos na oficina e as crianças ficam na recreação. E você consegue perceber que aquele filho mais velho ajuda a recreadora. Eles já estão “minados”, já entrou no DNA deles o valor do cuidar.

Olhar Virtual: A senhora acredita que, diante da necessidade de legar os filhos aos cuidados de terceiros, há a possibilidade de os laços familiares se perderem?

Se os pais são cuidadores, eu não vejo como. Quando você se descobre cuidadora, você engole o mundo por aquilo que está cuidando. Filho então é algo que não se explica. O amor que vai nessa relação não tem fim.

Olhar Virtual: A senhora acha que hoje em dia os jovens de uma maneira geral estão preparados para serem pais?

Eu acredito que sim. Quem me dera ter sido mãe agora, pois se tem uma gama de informações que no meu tempo eram obtidas num livrinho. Hoje em dia os pais têm mais acesso a seus deveres e obrigações. Nós temos a Internet e é possível encontrar literatura sobre cuidados com os filhos em uma banca de jornal.

Olhar Virtual: Em sua opinião, existe uma conexão entre a ausência dos pais logo no início da vida infantil e a delinqüência?

Não, eu acho que isso é uma exposição de mídia. Ocorre uma exposição errada do valor de herói. Hoje isso tudo está muito confuso. Você não acha um absurdo esse programa em que o Pedro Bial começa falando “Nossos heróis...”? É uma meia dúzia de gente, que eu diria até indigente, se expondo completamente. E eles são chamados de heróis. Os exemplos de pessoas que temos hoje estão muito confusos. A idéia que nos passam é que hoje todo mundo que rouba se dá muito bem. No nosso escalão brasileiro chamado Governo está concentrada uma gangue e nós todos sabemos.

Olhar Virtual: É possível notar diferenças no comportamento de crianças que crescem sob o cuidado de terceiros em relação àquelas cuja mãe pode se dedicar integralmente à criação?

Não, na vida moderna, não. Eu acho até que a mãe que fica 24 horas por dia com uma criança precisa estar muito preparada. A babá tem a vida dela. Ela tira 50% do envolvimento. Por exemplo, quando a criança está com febre, a babá liga para a mãe e é esta que vai assumir a preocupação. A mãe que passa o dia inteiro com a criança está mais suscetível a se estressar. É ela que possivelmente vai gritar com a criança em uma situação de estresse.

Olhar Virtual: Como fazer, então, para conciliar a condição de pais com os compromissos com o trabalho?

É preciso dosar e saber trocar com a criança. Os pais, nos momentos em que podem estar com os filhos, devem priorizar as atividades relacionadas a eles. Se fosse hoje, eu não teria tido filhos logo que me casei. O casal deve curtir o casamento, para que ao se programar para ter filhos, seja possível se sacrificar pela criança. Porque você, como mãe ou pai, precisa se sacrificar pelo bem da criança. Mas vale a pena. Família e filhos são tudo na vida de uma pessoa.