Olho no Olho

Rodada de Doha: haverá consenso sobre
o comércio mundial?

 

Camilla Muniz

imagem olho no olhoEm 2001, durante a 4ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Doha, no Qatar, foi idealizada uma série de negociações com o objetivo de promover a abertura do comércio mundial. O projeto, batizado de Agenda de Desenvolvimento de Doha, ficou conhecido simplesmente como Rodada de Doha. Reunindo o grupo dos países ricos e o dos países em desenvolvimento (G20), os encontros — que ocorrem desde o ano de sua criação e se arrastam até hoje — vêm se caracterizando por fracassos sucessivos devido à dificuldade de acordos entre as partes envolvidas.

No último mês de julho, a cidade de Genebra, na Suíça, recebeu ministros de 30 países, entre eles o Brasil, para concluir a Rodada de Doha. Entretanto, após nove dias de reunião, as negociações foram interrompidas devido a um impasse nas discussões sobre a agricultura. O pomo da discórdia foi a criação de um mecanismo de salvaguardas especiais que permitiria aos países em desenvolvimento aumentar suas tarifas aduaneiras caso ocorresse um aumento prejudicial do volume de importações de produtos agrícolas.

Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, tentou salvar as negociações apresentando um pacote de medidas considerado insuficiente pelo G20. Apesar disso, o Brasil mostrou-se favorável ao acordo, criando assim uma situação desconfortável com a Argentina, sua parceira no Mercosul.

Para analisar o possível futuro da Rodada de Doha , que será retomada hoje em Genebra, e as implicações do imbróglio no qual se envolveram Brasil e Argentina no mês de julho, o Olhar Virtual entrevistou Reinaldo Gonçalves, professor do Instituto de Economia (IE/UFRJ), e Franklin Trein, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Confira a opinião dos especialistas.

 

Reinaldo Gonçalves
Professor do Instituto de Economia

Para entendermos até que ponto a Rodada de Doha é válida para promover o desenvolvimento e a estabilidade do comércio mundial, é preciso saber, a priori, que os efeitos da Rodada dependem dos acordos concluídos. Estudos internacionais mostram que os efeitos não tendem, de modo geral, a ser muito significativos se consideramos os parâmetros atualmente existentes. Para determinados países e grupos sociais, os acordos da Organização Mundial do Comércio podem trazer grandes prejuízos. Esta é a razão da suspensão das negociações nos últimos anos.

Um dos principais motivos que fazem a Rodada de Doha se prolongar por tanto tempo é a existência de grandes divergências quanto aos temas de negociação. Estas divergências expressam conflitos de interesses. A Rodada é muito abrangente e envolve o procedimento do single undertaking, ou seja, a conclusão das negociações exige que haja acordos que sejam aprovados por consenso em todos os temas. Naturalmente, isto pode ser superado com compromissos mínimos em temas de maior conflito. Os acordos bilaterais, por seu turno, desestimulam as negociações na dimensão multilateral (OMC). O mesmo ocorre com os acordos regionais (dimensão plurilateral).

No caso dos produtos agrícolas, os países em desenvolvimento rejeitaram as propostas porque elas não admitiam salvaguardas especiais que permitem a imposição de restrições adequadas à importação de produtos agrícolas no caso do crescimento abrupto destas importações. Estes países também querem definir listas de produtos especiais que têm maior proteção. Os países em desenvolvimento também querem autonomia de política para proteger, inclusive com subsídios, os seus pequenos e médios agricultores. Assim, países como Índia, China, Venezuela e Bolívia defendiam os interesses dos seus pequenos e médios produtores agrícolas, enquanto o governo Lula estava em Genebra defendendo o agronegócio multinacional e a grande propriedade agrícola brasileira. Por esse motivo, apesar de o mecanismo de salvaguarda ter sido considerado prejudicial e inflexível pela maioria dos países em desenvolvimento, o Brasil demonstrou posição favorável à proposta.

Na minha opinião, a suspensão da Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio é um acontecimento positivo para a grande maioria dos brasileiros e da população mundial. O que houve em Genebra foi a derrota de dois grupos de interesses. O primeiro está localizado nos países desenvolvidos e consiste nas grandes empresas dos setores industriais e de serviços que querem a maior liberalização e desregulamentação da economia mundial para aumentar suas oportunidades de lucro e acumulação em escala global. A questão central é de melhores condições de acesso aos mercados, principalmente dos países em desenvolvimento com grande potencial de crescimento. Melhores condições de acesso a mercado envolvem redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias no caso de manufaturados, e tratamento nacional no caso de empresas de serviços. O segundo grupo de interesses é formado pelo agronegócio, ou seja, grandes empresas que produzem alimentos e matérias-primas agrícolas orientados para o mercado mundial e que estão operando em países em desenvolvimento, como o Brasil. O agronegócio é controlado por empresas multinacionais e grandes grupos locais. Além da questão de melhores condições de acesso ao mercado mundial via redução de tarifas e medidas não-tarifárias, o agronegócio exportador tem interesse na redução dos subsídios dados à produção de alimentos nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, principalmente os subsídios para os pequenos e médios produtores orientados para o mercado doméstico.

Estes dois grupos de interesses foram defendidos por governos cujas estratégias nas negociações estavam restritas, fundamentalmente, à troca da maior liberalização nos setores industrial e de serviços pela redução de subsídios para a produção de alimentos. O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, se destacou exatamente na defesa dos interesses do agronegócio. O conflito surgiu quando o Itamaraty aceitou a proposta encaminhada pelo diretor-geral da OMC, que teve o apoio do governo dos Estados Unidos, e envolvia grande assimetria de custos e benefícios em detrimento dos países em desenvolvimento. A posição brasileira na realidade convergia para a posição dos Estados Unidos, mas contrariava os interesses da grande maioria dos países em desenvolvimento.

Tendo em vista os conflitos de interesses, é provável que a conclusão das negociações da Rodada de Doha ocorra em um horizonte de médio prazo (2009-10), com um equilíbrio maior em termos de custos e benefícios para os países-membros da OMC. No caso do Brasil, o processo de negociação na OMC mostrou algumas características próprias da diplomacia brasileira no governo Lula, além da incompetência do Itamaraty. A característica mais importante é que o foco das negociações comerciais multilaterais está na defesa dos interesses estreitos do agronegócio (etanol, açúcar, frango, soja). Nas negociações de Doha, o Itamaraty aparece muito mais como despachante dos interesses do agronegócio (empresas brasileiras e cada vez mais empresas estrangeiras) do que como representante dos próprios interesses de longo prazo do Brasil. Portanto, dependemos da atuação de países como Índia, China e Argentina para defender os interesses da grande maioria do povo brasileiro.

Franklin Trein
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Para analisarmos se o Brasil errou ao ir contra os demais países do Mercosul, devemos examinar, primeiramente, a situação desses países. Hoje, o Brasil encontra-se numa situação muito diferente daquela vivida por seus parceiros, porque o perfil da economia brasileira está apoiado numa base produtiva diferente da base dos outros países do bloco. Temos um setor industrial e de serviços muito mais desenvolvido em relação aos mesmos setores das demais nações do Mercosul, o que faz com que elas fiquem mais sensíveis às questões ligadas à produção do setor agrícola no mercado internacional.

Por outro lado, embora a produção agrícola da Argentina tenha participação expressiva no PIB e no comércio internacional, o país é sensível também às políticas internacionais para os setores industrial e de serviços porque sua economia encontra-se, proporcionalmente, mais internacionalizada que a economia brasileira. Os setores não-agrícolas da economia argentina estão nas mãos do capital estrangeiro numa proporção superior aos mesmos setores de nossa economia. Isso significa que a autonomia da economia argentina, no que se refere à produção para o mercado internacional, é menos nacional que a autonomia brasileira. As decisões no Brasil estão mais nas mãos dos brasileiros — e por isso podem refletir mais os interesses nacionais e estar mais sintonizados com os interesses do mercado interno — do que as decisões na Argentina nas mãos dos argentinos, no que diz respeito a setores não-agrícolas. Por sua vez, o setor agrícola argentino — em função da crise que se arrasta por décadas no país — é altamente sensível às flutuações do mercado internacional para as commodities agrícolas, devido ao fato de que não há no mercado interno um consumidor capaz de provocar a circulação expressiva do capital investido e que permita, portanto, a reprodução desse capital, taxas de reinvestimento e otimização de recursos. Nada disso encontra-se na Argentina no grau que já se estabeleceu no Brasil.

Assim, o Brasil tem mais condições de discutir de igual para igual com os países desenvolvidos do que a Argentina. Além disso, a economia brasileira depende menos de seu setor agrícola, embora a participação desse setor na balança comercial seja expressiva. O Brasil tem condições de resistir a pressões sem precisar fazer as concessões que a Argentina estava disposta a fazer nos setores industrial e de serviços para garantir mercado internacional para seus produtos agrícolas. O Brasil pode jogar mais duro. Como diz o ministro Celso Amorim, nós aprendemos a negociar e a barganhar e, por isso, não estamos mais sendo parceiros fáceis nas negociações internacionais. Temos uma capacidade de resistência muito maior do que os outros países do Mercosul.

Acredito que está faltando uma maior sintonia entre os países-membros do Mercosul. Por um lado, falta o amadurecimento da nossa compreensão e, por outro lado, da nossa capacidade de formulação de políticas de um mercado interno do bloco. Se fôssemos capazes de fazer do Mercosul um mercado interno para as economias dos países pertencentes ao bloco, já teríamos formado uma massa crítica expressiva de mercado produtor e consumidor, ainda que com valores percentuais bastante acanhados diante do volume do mercado internacional. Certamente, nossa capacidade de resistência às pressões internacionais e nossa atuação junto às negociações vindouras seriam otimizadas se a articulação do Mercosul fosse melhor. Se nós tivéssemos chegado a um consenso sobre a divisão interna do trabalho e sobre como integrar as nossas políticas monetária, fiscal, tributária, agrícola, industrial e de serviços, estaríamos mais próximos de uma chamada pauta única das negociações internacionais.

Quando o Brasil firma parcerias econômicas com países que não são da região, significa que está buscando uma sintonia mais fina com países cujas condições econômicas estejam mais próximas da economia brasileira em relação às condições apresentadas por seus vizinhos. Então, se desenvolvêssemos uma estratégia de fortalecimento das economias nacionais dentro do Mercosul — incluindo o caso da Bolívia e do Chile, com comércio internacional voltado muito para fora da região —, poderíamos atrair mais a Venezuela, o Equador, a Colômbia e o Peru, sendo os dois últimos aqueles com maiores dificuldades de diálogo dentro da região. Ao meu entender, algum esforço dentro do Mercosul que transbordasse para a América do Sul seria um grande passo que o Brasil poderia dar. É claro que tal esforço deve ser exercido com muito cuidado, já que não pode parecer que nós estamos pretendendo ter hegemonia. Não podemos ter pretensões de mandar e não ouvir, de só falar e não estar disposto a ouvir os reclames dos nossos parceiros.

Acredito que o Brasil deveria estar mais disponível a ouvir nações como o Uruguai e o Paraguai, que está estruturando um governo novo e passando por um momento quase que revolucionário para a história do país. É necessário, sobretudo, que o Brasil seja cauteloso para não ofender as forças derrotadas, chamando a atenção das sociedades desses países para o fato de que está interessado em contribuir para o desenvolvimento da América do Sul. Na minha opinião, um bom referencial de integração é o modelo praticado pela União Européia, que preocupa-se em buscar soluções para as diferenças extraordinárias existentes entre as 27 nações que compõem o grupo, onde há, numa extremidade, a Alemanha, um dos países mais desnvolvidos do mundo, e na outra extremidade, o Chipre, uma ilha dividida sob enorme tensão.

Em relação ao imbróglio no qual se envolveram Argentina e Brasil nas últimas negociações da Rodada de Doha, não houve traição por parte dos brasileiros. O que houve foi a expressão de uma defasagem de interesses em função das condições econômicas e do estágio de desenvolvimento dos dois países. Por isso, acredito que, para o Mercosul, é extremamente necessário superar tais diferenças. Entretanto, creio que o bloco dificilmente enfrentará uma crise desencadeada pelo desentendimento entre Brasil e Argentina. Já quanto ao G20, os interesses que não foram suficientemente observados na reunião em Genebra podem ter criado um certo desconforto. Cabe, nesta situação, que os países que não se sentiram contemplados proponham uma negociação para recuperar o que se julga perdido.

Embora a Rodada de Doha tenha fracassado, aqueles que viram na inconclusão uma solução melhor do que uma conclusão desfavorável devem declarar publicamente que estão abertos ao diálogo para aqueles que se sentiram prejudicados. O Brasil tomou essa atitude, através de Lula e do ministro Amorim. Nos últimos anos, o Brasil aprendeu bastante como o mercado internacional se comporta e quais as posições que deve assumir diante das negoiciações. Isso se traduz no fortalecimento do país como uma nação capaz de decidir seu próprio futuro.