No Foco

Calouro humano

Julia Vieira

foto no foco

Depois de muito estudo e da tensão do Vestibular, os aprovados no Concurso de Acesso aos cursos de graduação alcançam seu momento tão sonhado: a entrada na universidade. O início do ano letivo é uma fase de ruptura, apreensão e novidades, mas, para deixar os calouros ainda mais ansiosos, existe o ritual do trote, que vem sendo amplamente discutido na sociedade.

A história do trote remonta ao surgimento da própria universidade e a sua repressão tampouco é recente. A luta para que não houvesse “taxas de bichos” começou na Universidade de Paris, em 1342. Nas universidades brasileiras, a prática sempre gerou controvérsias e o auge da luta contra os trotes violentos e descabidos foi em 1999 quando Edson Tsung Chi Hsueh, calouro do curso de Medicina da USP, foi encontrado morto na piscina atlética após o churrasco de “confraternização” com os veteranos.

Em lugar de violência, consciência

Desde a morte de Edson Hsueh, as instituições de Ensino Superior de todo o país procuram unir forças para que o trote violento seja proibido. As universidades propõem um ritual diferente, realizado de maneira humanista e solidária, que trabalhe cada vez mais a cidadania e seja capaz de melhorar a convivência no ambiente acadêmico.

No dia 21 de fevereiro de 2000, o então Reitor da UFRJ, José Henrique Vilhena de Paiva, proibiu o trote no recinto da universidade ou fora dela, “podendo aos infratores serem aplicadas as penalidades que vão de suspensão até o desligamento do aluno” (artigo 285 do Código Disciplinar do Regimento da UFRJ).

Apesar da proibição, o trote segue acontecendo na universidade e a ouvidora da UFRJ, Cristina Riche, vem alertando os dirigentes das unidades, a fim de evitar estes ocorridos. “Percebemos na Ouvidoria que há uma preocupação geral com a forma que se dá este rito de passagem. Preocupação não somente de calouros e seus responsáveis, mas também de pessoas da sociedade que se sentem incomodadas por verem nossos alunos serem submetidos a situações vexatórias, pedindo dinheiro pelas ruas. Essas pessoas entendem esta forma de trote como um desrespeito ao calouro”, afirma a ouvidora.

Para Cristina, há um forte senso-comum indicador de que a marca do trote é o bilhete de entrada para o mundo universitário. Alguns estudantes acreditam que ao passarem pelo ritual do trote serão aceitos por seus colegas de faculdade e serão respeitados pelos demais. Com este pensamento, geralmente, submetem-se a atividades que não são, de maneira nenhuma, lúdicas ou saudáveis, não percebendo, assim, a coação realizada por seus veteranos.

O que era para ser apenas uma brincadeira de integração e confraternização acaba muitas vezes passando dos limites, mas como conhecer os limites do outro? Cristina acredita ser muito difícil para os jovens reconhecer a fronteira entre o que é ou não brincadeira nestas situações, porque quando esta distinção não é clara, o que é considerado brincadeira para um, pode ser humilhante para outro. “O que para nós pode parecer apenas brincadeira para o outro pode ser ofensivo e humilhante”, salienta.

O trote vem se configurando como uma atividade não-lúdica, que violenta o calouro física e psicologicamente. Ele precisa ser combatido na universidade que, como ressalta a Ouvidora, é um ambiente comprometido com a cidadania e a humanização. “É extremamente contraditório que essa atividade ocorra nas universidades. O trote, quando não está voltado para atividades sadias, é capaz de produzir conseqüências nefastas”.

Em lugar de humilhação, mobilização

O Trote Solidário tem sido tema recorrente e Cristina Riche acredita que é primordial que se realize um amplo debate com os alunos e dirigentes para que se identifiquem ações de recepção efetivamente adequadas para um ambiente que se quer saudável e humanizado.

A UFRJ tem oito hospitais, todos precisando de sangue em seus bancos, por que não instaurar como trote a doação de sangue para estas unidades? O Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira (IPPMG/UFRJ) atende crianças carentes que necessitam constantemente de leite em pó e fraldas. Por que não pedir aos calouros que revertam suas “cotas” nestes materiais no lugar de bebidas alcoólicas?

Cristina informa de que, mesmo o trote sendo proibido na Escola Politécnica, são realizadas atividades culturais e esportivas para recepcionar os calouros.

Cristina Riche acredita que uma outra opção viável de trote humanista na UFRJ seria trabalhar com os calouros a questão ecológica do Fundão, realizando coleta seletiva de materiais e fazendo campanhas de conscientização ecológica, voltadas para a defesa do meio ambiente.

O trote solidário pode se dar de diversas formas. A ouvidora entende que uma boa opção seria o estímulo à prática dos “contadores de história” na creche universitária e nos hospitais da UFRJ. “É preciso encontrar uma opção harmoniosa e pacífica para a recepção dos calouros nas universidades. Que esta opção propicie uma integração ainda maior entre calouros e veteranos”, finaliza a ouvidora da UFRJ.

Recepção não é só tinta!

Desde 2006, no início da gestão atual, a Escola de Comunicação (ECO/UFRJ) organiza uma semana institucional de recepção aos ingressantes, o ECOmeço. Antes da iniciativa, a recepção era coordenada apenas pelo Centro Acadêmico (CA) da ECO, como ocorrido em diversos centros da universidade.

Segundo Ivana Bentes, diretora da ECO, a existência de uma apresentação institucional é importante para que haja a exibição de um outro ponto de vista, não somente o do CA. A multiplicidade de opiniões é essencial para a Comunicação e é interessante que os calouros tenham acesso a múltiplas idéias logo no primeiro contato.

O ingresso em uma instituição de Ensino Superior simboliza uma ruptura entre a conhecida rotina do Ensino Médio e a nova realidade de universitário, na qual o percurso de cada estudante será por ele decidido. É como poder então caminhar com as próprias pernas, fazer as próprias escolhas, e a semana de calouros ajuda a ambientar este aluno em seu novo universo.

Ivana salienta que neste processo de ambientação não é preciso apenas conhecer os novos colegas, é necessário conhecer a administração da Escola. “É um momento importante para que a ECO mostre a sua verdadeira cara para seus estudantes. É fundamental que o aluno conheça a direção, seus professores e coordenadores para ter pontos de referência aos quais recorrer na universidade”.

A ocasião é oportuna também para sanar dúvidas que os alunos carregam a respeito da ECO. “A idéia é conseguir responder bem a questão que muitos alunos trazem consigo: - O que é a comunidade onde estou ingressando? Procuramos esclarecer essa questão através de uma programação diferenciada, com temas e convidados que consigam mostrar como é, de fato, a Escola de Comunicação da UFRJ”, considera a diretora.

Ainda na questão das dúvidas, Ivana comenta que é importante que sejam indicados os diversos campos de atuação do profissional de Comunicação, já que muitos vestibulandos, ao optarem pelo curso, não têm idéia da abrangência da área.

A iniciativa de fazer uma semana especial para recepcionar os calouros não acontece apenas na ECO. Diversas outras unidades e direções vêm realizando eventos para mostrar aos seus alunos a importância de alcançar um novo patamar em suas vidas e de, especialmente, ingressarem em uma das mais importantes universidades do país. ”Sinto-me muito orgulhosa em caracterizar a semana de recepção da ECO como pouco ortodoxa. O campo da Comunicação é muito amplo e o conhecimento não se detém apenas nas mãos dos mestres e letrados. É essencial que se abra espaço para discussões com distintos atores sociais”, finaliza Ivana Bentes

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