Ponto de Vista

Prêmio por mérito escolar desvia a escola de sua essência

 

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Nas últimas semanas, um decreto sancionado pela prefeitura municipal do Rio de Janeiro causou polêmica. Trata-se de um prêmio em dinheiro para alunos dos últimos três anos do ensino fundamental (terceiro ciclo de formação) com bom desempenho escolar, com conceito Muito Bom (MB) em todas as disciplinas, durante este período. O Mérito-Escolar, como também é conhecido o benefício dedicado aos estudantes, varia de 2 a 12 salários mínimos.
De acordo, com a prefeitura municipal do Rio de Janeiro, o Mérito-Escolar foi criado para estimular o estudo e conter a evasão escolar. Em princípio, a premiação será dada pela secretaria municipal de Educação (SME-RJ) por intermédio de um cartão individual de bancos gestores das contas do município. 
O decreto é tão polêmico que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB- RJ) entrará com uma ação de representação de inconstitucionalidade contra a prefeitura do Rio pelas mudanças no sistema educacional. Na visão do Sindicato Estadual do Professores do Rio (SEPE-RJ), a medida negligencia as reais necessidades do sistema.
Para enriquecer o debate a respeito de um tema tão controverso, o Olhar Virtual convidou a professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, Ana Maria Monteiro, a opinar sobre o tema e contribuir com o debate. Segundo a professora, a medida não foi amplamente discutida com os professores da rede municipal, atores fundamentais deste processo, que receberam a notícia abruptamente e devem estar aturdidos com a mudança.

Segundo a prefeitura municipal do Rio de Janeiro, o Mérito- Escolar foi criado para estimular o estudo e conter a evasão escolar. Esta medida, de fato, alcançará estes objetivos?
Não podemos ver esta medida isoladamente. Ela faz parte de uma política contínua implantada nas escolas da rede municipal pública de educação. Desde o início do ano passado, a SME-RJ implantou um sistema com três ciclos de formação para todo o ensino fundamental, que implica a reorganização de todo o processo de ensino nas escolas de ensino fundamental do Rio de Janeiro. Então, ao invés de séries, temos ciclos de três anos de escolaridade e processo de avaliação é todo redefinido sendo, inclusive, eliminada inicialmente a possibilidade de reprovação. Essa medida, embora tenha sido discutida, não foi suficientemente debatida e encontra muita resistência por parte dos professores.
Agora, com esta nova decisão, a prefeitura parece tentar impor alguma forma de valorização no ensino defendido por ela. Antes, a reprovação era utilizada por muitos professores para forçar o aluno ao estudo; se a possibilidade de reprovação deixa de existir, conseqüentemente, o aluno pode resolver deixar de se empenhar nos estudos.
Deduzo, então, nesta medida da prefeitura, uma forma de estimular o aluno a estudar e querer aprender, já que a escola tem que atuar para que o aluno fique na escola, para que não se sinta excluído e tenha um desenvolvimento pleno.

Esta medida reforça a lógica meritocrática?
Num primeiro momento, fiquei chocada e contrariada por acreditar que esta medida trará para a escola uma lógica capitalista em que o aluno só estudará porque vai ganhar um valor em dinheiro. 

Este prêmio pode distorcer, de algum modo, os valores éticos dos estudantes?
Sim, a educação tem um valor em si mesma. A escola é a instituição responsável pela educação na nossa sociedade, e o valor da escola tem que ser trabalhado do ponto de vista ético, do conhecimento e do saber como fonte de desenvolvimento do ser humano. No momento em que você estuda para ganhar dinheiro, isso traz uma distorção complicada de se solucionar e capaz de trazer para a escola uma disputa em que o estudante só faz aquilo que é pago com dinheiro. Parece que o estudo virou mercadoria. Com isso, o foco de atenção, o estudo, é deslocado. Ao invés de mostrar ao aluno o estudo como fonte de aprendizado e de melhorias para a formação dele, é incentivada a disputa pela premiação.
Se o professor, principal agente desta história, não estiver convencido de isso ser bom para o estudante a mensagem vai ficar truncada. O aluno pode acabar achando que o professor é obrigado a dar o conceito MB (Muito Bom). Os alunos acham que é o professor quem dá o conceito, mas na verdade são eles que alcançam ou chegam a um determinado conceito.

Faltam políticas públicas no ensino público fundamental?
Com certeza. Este tipo de política que se quer implementar desvia o foco para um problema pontual, deixando de lado o principal: a instituição escola como instituição pública e lugar de educação pública.
Quando se oferece uma bolsa para um aluno de conceito MB, você não está interferindo nas condições de oferta desta educação, só está desviando o foco. Ou seja, não há como uma medida desta natureza ter sucesso.
Outra questão emergente: de onde vem a verba para pagar o prêmio? Por que não valorizar a escola e oferecer melhores condições de trabalho aos professores e de estudo aos alunos, construir bibliotecas, melhorar a infra-estrutura das unidades? Qual criança não quer ir para uma escola agradável, com boas instalações, onde ela será bem tratada? 

Seria então um problema de gestão?
Também, mas, principalmente, um problema de concepção de educação pública e de como ela deve ser desenvolvida. Atualmente, há uma concepção valorizadora do esforço individualista, não se prioriza mais o todo, não só de uma escola, mas de todo um sistema. 

Você acredita numa concepção de educação que estimulasse a coletividade?
É um erro achar que se pode manter a criança na escola por um estímulo individual. Isso reforça esta concepção hoje predominante na nossa sociedade, a da competição.   
Acredito no potencial da instituição escola. Ela, principalmente a pública, é espaço democrático dentro da sociedade contemporânea. É o espaço para discutir suas questões, possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico, trazer as informações, contextualizá-las e dar caminhos para o aluno buscar mais conhecimento. Além disso, é o lugar de sociabilidade de jovens, adolescentes e também de difusão sócio-cultural.
A escola deve ser valorizada pelo seu potencial de emancipação e de desenvolvimento da cidadania. É necessário pensar o valor da educação. Hoje, existe uma quase universalização do ensino fundamental, mas com qualidade precária. A questão é: como valorizá-lo? Investindo nas escolas a fim de elas oferecerem condições de trabalho aos professores, de ensino, esporte, lazer e cultura aos alunos de forma consistente.