Olho no Olho

O livro ou o filme? Interfaces entre Cinema e Literatura

Aline Durães

imagem olho no olho

Quem nunca desejou ver seu livro preferido transformado em filme? Em contrapartida, quem nunca se decepcionou ao assistir à adaptação cinematográfica de um livro? A aproximação entre Cinema e Literatura, embora seja cada vez mais explorada, nem sempre produz resultados satisfatórios para o público.

Na semana passada, foi a vez de “Harry Potter e a Ordem da Fênix”, quinto filme da série adaptada da obra da escritora inglesa J. K. Rowling, suscitar críticas entre os fãs. Apesar de o filme ter arrecadado mais de 70 milhões de dólares, apenas no primeiro fim de semana de exibição nos Estados Unidos, aqui no Brasil, boa parte dos espectadores deixou as salas de cinema desiludida.

Reclamações a respeito da alteração e da omissão de trechos importantes da narrativa original, acarretando perdas significativas para a compreensão do sentido geral da história, não são exclusividade da película dirigida por David Yates. Muitas adaptações anteriores já foram alvo de avaliações semelhantes, o que evidencia as dificuldades de recriar, em linguagem audio-visual, a narrativa literária.

O impasse é evidente: enquanto os autores das obras literárias e parte do público tendem a defender que o filme deve ser uma cópia fiel do livro, os cineastas afirmam que a total transposição da narrativa do impresso para as telas, além de ser uma tarefa quase impossível, não produz via de regra um bom filme.

Para comentar essa questão, o Olhar Virtual entrevistou Fernando Salis, professor de Cinema da Escola de Comunicação (ECO), que expôs as características que um roteiro de qualidade precisa ter, e João Camillo, docente do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras (FL), que explanou acerca das vantagens da Literatura sobre a narrativa cinematográfica. Confira o debate:

Fernando Salis
professor de Cinema da Escola de Comunicação (ECO)

“As dificuldades de adaptação de uma obra para o Cinema dependem muito de que tipos de obra literária e motivações estamos falando. Existem diferentes critérios para a escolha de um livro como inspiração para um roteiro. Pode-se partir de um enredo, de personagens, de um certo estilo narrativo, mas, em qualquer caso, o principal desafio será recriar em linguagem audio-visual a narrativa literária. Em geral, as principais dificuldades estão justamente em recriar a obra, visto que uma transposição me parece impossível na maior parte dos casos.

As melhores adaptações são aquelas que mantêm algum conceito fundamental da narrativa literária, mas não se preocupam exatamente em traduzir o livro. O que é interessante nesta relação é justamente a diferença de possibilidades lingüísticas e semióticas das duas linguagens e não a redução de uma à outra. As adaptações que se desprendem dos critérios miméticos e investem em uma recriação em outra linguagem de aspectos centrais da obra de referência têm mais chances de serem bem-sucedidas. É importante entender que Cinema e Literatura têm diferentes relações com a questão da narrativa.

Me parece que a desilusão dos espectadores ao verem no cinema a história que leram em livro se deve ao fato de que a relação com a produção de imagens seja muito diferente nas duas linguagens. Embora se tenha a tendência de se pensar que a linguagem verbal e o componente imagético e onírico do Cinema são próximos ao da Literatura, o espectador tem muito menos liberdade de o fantasiar no Cinema, após a experiência da leitura. Fatalmente a recepção de uma obra muito diferente no Cinema do que a imaginada previamente gera frustrações."

João Camillo
docente do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras (FL)

“A decepção com o filme que vimos após lermos a obra literária em que o filme foi baseado é proverbial e automática. As razões poderiam ser formuladas a partir da famosa distinção de Marshall Mcluhan entre mídias quentes e mídias frias. Uma mídia é tanto mais quente quanto mais informação fornece e exige menos participação da audiência. Comparado com o Cinema, a escrita é fria. O filme contém informações visual, auditiva, narrativa e imagética: é mídia quente. A Literatura produzida em escrita fonética é abstrata e exige grande esforço de imaginação do leitor. Por outro lado, a maior “passividade” da audiência do Cinema, a maior “eficácia” e imediatez da linguagem cinematográfica, reverte contra ela, já que o “trabalho” imaginativo a que é submetido o leitor confere à obra lida uma riqueza imaginária que o filme, com todo o seu “calor” não pode almejar, nem nunca atingir.

De uma certa maneira somos premiados pelo maior “trabalho” que realizamos. Ou seja, quem perde, neste caso, é quem ganha. Tão simples assim. Mas como as sociedades contemporâneas são constituídas em torno de uma obsessão pelo gozo e pelo prazer sem custo, escolhemos os objetos de gozo que custam menos. O alto valor de uma entrada de cinema é neste sentido irrisório se comparado com o investimento (de tempo, de atenção, de dinheiro) que a leitura de um livro exige.

À medida que a Literatura perde espaço, e as pessoas lêem cada vez menos romances, o Cinema se tornou uma forma de apresentação das obras literárias, que ao serem adaptadas atingem um público imensamente maior do que a versão em livro, e que o livro nunca sonharia em atingir. Com a perda de espaço da escrita diante da imagem visual, sentimo-nos em um impasse. Utilizar-se de adaptações cinematográficas para ensinar Literatura corrobora e aprofunda essa perda de espaço, mas por outro lado, passou a ser uma maneira de re-interessar as pessoas, e até os alunos de Literatura, pela forma literária. Acho, na verdade, benéfica a decepção com o filme daqueles que leram a obra literária em que foi baseado. Mostra simplesmente que o Cinema não conseguirá nunca substituir a Literatura."