Ponto de Vista

Quer saber o que é privacidade? Leia os jornais

Kadu Cayres

imagem ponto de vista

O prefeito Cesare De Martin, da cidade de San Fior, na Itália, recentemente anunciou a intenção de dar câmeras digitais a policiais e instruí-los a fotografar qualquer carro que pare para abordar uma prostituta. Segundo ele, o objetivo da ação é envergonhar os clientes e assim coibir a prática através da publicação das fotos nos jornais locais.

Atitudes como essa acendem a discussão sobre invasão de privacidade, distorção do público e do privado, e contribuição para marginalização de práticas existentes há milênios como, por exemplo, a prostituição. Visando discutir e aproximar essa realidade para o contexto nacional, o Olhar Virtual entrevistou o professor Evandro Vieira Ouriques, que é especialista nas relações entre Comunicação, Subjetividade, Cidadania e Governança, e coordena o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Escola de Comunicação (NETCCON/ECO/UFRJ).

1-Mesmo a prostituição considerada crime na Itália, isso pode ser visto como invasão de privacidade?

Esta questão de criminalizar a prostituição já é em si complexa, na medida em que passa por cima das razões psicossociais que demandam tal prática. Portanto há uma sobreposição de camadas de ocultamento que gera uma contradição cada vez mais difícil de ser resolvida. Vejamos: (1) proíbe-se o que os cidadãos por algum motivo estão querendo; (2) tolera-se durante no mínimo centenas de anos tal prática; (3) a prática cresce no contexto da globalização dos objetos; (4) tenta-se pelo desespero fotografar as pessoas.

2- Até que ponto o público e o privado estão sendo distorcidos na sociedade?

Esta é uma questão decisiva. Em nossa sociedade fundada sobre uma base dualista, onde sujeito e objeto são entendidos como exterioridades absolutas uma em relação à outra, o público e o privado estão divorciados de alto a baixo. Esta é a razão pela qual praticamente toda a vida pública tornou-se o espaço do saque, uma vez que organizada pelo reconhecimento do capital, os cidadãos vão para o espaço público à busca de obterem o máximo de capital e poder para investirem em suas vidas privadas.

No mesmo sentido, essa visão dual ajuda a fabricar uma irresponsabilidade que se expressa tanto a nível da Teoria Social quanto ao da prática cidadã: insiste-se em entender que a crise só pode ser superada pela via do social e que o papel de mudança, que o cidadão pode exercer, inexistiria. Entendo, e é este justamente a base de motivação do programa acadêmico que sustentamos no Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência (NETCCON/ECO/UFRJ). A autonomia que a pessoa tem para mudar o jogo social, transformando-se de vítima em protagonista de uma sociedade comprometida com solidariedade, com a cooperação.

3- Qual a contribuição da sociedade burguesa nessa distorção?

Prefiro usar a categoria reconhecimento pelo capital, na qual o sujeito tenta estruturar-se a partir do reconhecimento pelo outro, pelo julgamento que o outro faz dele. Isso, sim, mais do que contribui, define isto que você chama de distorção. O problema vem exatamente da falta de voz própria por parte dos sujeitos. Os sujeitos não estão instalados como tal. Ou seja, vivemos uma época de exibição de gozo, na qual tornou-se dramático não apenas gozar a qualquer preço, mas mostrar ao outro que está se gozando. Isto sem dúvida é central nesta questão da prostituição.

4- Ver a prostituição como algo maligno, leva a sociedade a agir igual aos meninos que espancaram a empregada doméstica pensando que ela era prostituta?

Em nossa sociedade doente, o mal é sempre uma exterioridade absoluta. É o outro. É isso que ocorre, por exemplo, com o tráfico no Rio de Janeiro. O bandido não é um cidadão que incorreu em uma falta, mas uma alma portadora do mal, sem qualquer possibilidade de recuperação. Por isto o sistema penitenciário é uma fábrica de criminosos.

A questão é que, desconectados de seu próprio processo psíquico, desinstalados como sujeitos, os cidadãos são atravessados pelas vozes de seus inconscientes, que falam e sentem por ele. Como sabemos que com o rompimento da unidade original da psiquê, como mostrado por Castoriadis (um ódio de si e um ódio do outro) a decepção potencial que o sujeito sente, precisa ser encaminhada pela família e pela sociedade.

Mas sabemos que o ocorre é exatamente o contrário: reforça-se a idéia do ódio, enfeixada no axioma de que a vida é cruel, que ser bom é ser bobo, etc., etc., etc.. Temos assim uma fábrica de horror, pois se a tendência do sujeito é em toda a sua vida buscar recuperar aquela experiência de sentido (que muitas vezes busca encontrar na relação com uma prostituta, por exemplo), ele encontra na sociedade justamente o contrário. As tentativa de reeencontrar esta unidade original, seja em uma teoria social, em um produto ou em uma pessoa, vê-se condenada ao fracasso, o que apenas aumenta a carga de ódio.

É por isto que da maneira “titanic” que a sociedade está vivendo em sua maioria é produtora de cada vez mais meninos, meninas, homens, mulheres, adultos e idosos executores de crimes hediondos com os quais tentam dar conta do ódio imenso e crescente que sentem dentro de si, dar conta da dor imensa que sentem dentro de si e que é aumentada por uma sociedade que acredita devocionalmente que a vida é cruel e que valores como solidariedade e cooperação são meramente utópicos.

5- O senhor concorda com a atitude do prefeito? Qual seria a repercussão se isso fosse aplicado no Brasil?

Essa decisão é uma tragédia. Como propus inicialmente que pensássemos, por que a prostituição é cada vez mais necessária em nossa sociedade? Ao ponto de se tentar reprimí-la como este prefeito ou como fizeram estes meninos? Certamente Zygmunt Bauman tem razão ao afirmar que nossa época é organizada pelo amor líquido, pela dificuldade que as pessoas encontram em manter relações sólidas de afeto em um regime que tem como pressuposto axiomático perceber o outro como inimigo de si mesmo.

Ocorre-me um trecho de Guy Debord a respeito da Sociedade do Espetáculo, e peço que meditemos sobre ele: “1. Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. 2. As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. (...) A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. (...) Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada. 4. O espetáculo (..) é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário -- o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente”.

Certamente teremos outra coisa a fazer do que este italiano gesto patético quando nossa vida é vivida de fato. Quando tornamo-nos responsáveis por nós mesmos. Quando, com Mattelart, dominamos o processo de formação da vontade, de maneira a que a liberdade torne-se a verdadeira e vivamos em solidariedade e cooperação, por arriscarmo-nos corajosamente a superar aquela tal da “natureza humana” que nos obrigaria a sermos egoístas, vingativos, invejosos e capazes de atacar, inclusive com fotografias, a dor de quem busca reencontrar a unidade aberta da vida.