Olho no Olho

Aborto: questão de saúde pública ou agressão à vida?

Nathália Perdomo

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O papa chega ao Brasil trazendo, além de declarações sobre o combate à pobreza, às desigualdades e à violência, uma mensagem que reforça a proteção e o direito à vida. Na cerimônia de boas-vindas, realizada no dia 9 de maio, Bento XVI criticou a legalização do aborto e afirmou que durante a Conferência Geral do Episcopado, espera que seja reforçada a identidade latino-americana que promove "o respeito pela vida, desde a sua concepção até o seu natural declínio, como exigência própria da natureza humana".

Durante sua viagem ao país, o sumo pontífice apoiou a ameaça de excomunhão feita por bispos mexicanos contra os membros da Assembléia Legislativa e o prefeito da Cidade do México, Marcelo Ebrard, por terem descriminalizado o aborto na capital mexicana. Essa enunciação foi vista com maus olhos por muitos cidadãos, que ratificaram a idéia de que, como instituição secular, a Igreja anda em descompasso com a contemporaneidade. Por outro lado, muitos fiéis, dentre eles jovens fervorosos, aprovaram a posição do papa e se emocionaram com a sua visita e com a força da religiosidade no país.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se posicionou, pessoalmente, contra o aborto, no entanto, declarou que como chefe de Estado tem que tratar o assunto como questão de saúde pública. José Gomes Temporão, ministro da Saúde, firme ao expor sua opinião a favor da legalização, chegou a defender um plebiscito para que a questão possa ser votada.

Há muitos anos a descriminalização do aborto está em pauta no Congresso e precisa superar muitas polêmicas para ser aprovada e funcionar efetivamente. Diante da grande repercussão do tema, que comporta uma análise sob vários aspectos — éticos, morais, científicos, jurídicos, teológicos e políticos — a discussão volta à tona e mobiliza os mais diversos segmentos da sociedade.

Para a reflexão sobre o assunto, o Olhar Virtual conversou com Renato José de Oliveira, diretor da Faculdade de Educação (FE), do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ e professor de Filosofia da Educação, e com José Leonídio Pereira, professor, médico obstetra da Maternidade Escola (ME) da UFRJ e coordenador do projeto de extensão Papo Cabeça (www.papocabeca.me.ufrj.br).

 

Renato José de Oliveira
diretor da FE

"O papa tem uma visão muito cristalizada a respeito do aborto, em função de um dogma da Igreja Católica, que vê essa questão como um crime, uma agressão à vida. Eu entendo sua posição, pois a instituição vive em função das verdades absolutas que defende. A visita de Bento XVI certamente vai reforçar as resistências, no entanto, as pessoas têm o direito de contestar.

Há alguns caminhos já bastante comentados que podem promover uma maior compreensão acerca do assunto. O planejamento familiar é um deles e é, sem dúvida, de suma importância para a educação dos jovens, porém, muitas vezes, os pais deixam lacunas que não são preenchidas, seja pela necessidade de trabalharem fora e não terem tempo de discutir sobre sexualidade, por exemplo, seja, simplesmente, por não saberem como fazê-lo.

Eu costumo dizer que as meninas de baixa renda são duplamente vítimas. Primeiramente, pelo fato de não receberem orientação adequada, e também por se submeterem a abortos clandestinos, realizados por parteiras, curiosos, sem a mínima competência médica. Essas meninas compram os abortivos que estão a sua disposição na comunidade e que são vendidos por qualquer ‘camelô’, sem prescrição, colocando em risco a vida da mulher e a da criança, logicamente. Na adolescência, os hormônios estão à flor da pele, portanto, o que esses jovens precisam é de orientação para evitar uma gravidez indesejada ou uma doença.

À população que carece dessa base, não resta outra alternativa senão o apoio do Estado, que deve contribuir com programas sociais, levando profissionais gabaritados, como médicos e psicólogos, a essas pessoas. Contudo, para isso funcionar, deve haver, antes de tudo, vontade política. Apesar de algumas ações, em princípio, significarem ônus para o Estado, deve-se pensar no bônus que os resultados podem gerar a longo prazo. A evasão escolar, que é observada, principalmente, no meio rural, representa, sem dúvida alguma, uma grande perda para o Estado e é um dos obstáculos ao acesso à informação, que pode conduzir à melhoria das condições de vida.

Não adianta a escola querer assumir uma função que não lhe compete unicamente. Ela pode e deve contribuir, mas a educação sexual deve partir de casa. Os ensinos fundamental e médio têm que quebrar o preconceito de que esse tipo de discussão não lhes cabe. Muitas vezes, professores de determinada disciplina transferem a responsabilidade para aqueles que lecionam Biologia. Todo professor, independentemente de ser de Português, de Matemática ou mesmo de Biologia, é, antes de tudo, um educador, que deve se preocupar, e nao se importar, de abordar temas polêmicos. A sala de aula deve ser um espaço para esse tipo de discussão. Contudo, no Brasil, falta investimento na educação e as escolas estão muito abandonadas, a começar pelos professores que não ganham um salário adequado e não são valorizados na essencial tarefa de educar.

Não é necessário criar uma disciplina a parte para tratar de educação sexual. A Filosofia, a Sociologia e a Psicologia da Educação — todas de cunho pedagógico — podem articular essas questões. O argumento, defendido por alguns desinformados, de que falar sobre determinado assunto acaba incentivando a prática do mesmo é bastante equivocado. Não discutir sobre o aborto, por exemplo, é hipocrisia.

Não cabe à Igreja problematizar sobre o aborto, que está muito ligado à saúde pública. Pelos mesmos princípios, ela se posiciona contra o uso de contraceptivos e contra a eutanásia, que toca, a fundo, na questão da vida. A instituição precisa ser respeitada, mas não deve ser entendida como expressão máxima da verdade.

O aborto não é condenável. É preciso formular critérios para regulamentá-lo, a fim de evitar uma liberalização indiscriminada, um laissez-faire. No entanto, a legislação do país poderia ser mais flexível. O direito à vida precisa ser defendido, porém, não se deve deixar de problematizar determinados assuntos, para preservar um conservadorismo, diante da realidade atual do país "

José Leonídio Pereira
professor da FM

“Há um texto de Fernando Magalhães*, a respeito do aborto terapêutico, que embora tenha sido escrito em 1911 é muito pertinente e atual. Há um trecho em que se constata que a primeira conduta de esvaziar do útero, terapeuticamente, para salvar a vida de uma mãe, aconteceu em 330 a.C. O catedrático argumenta: ‘Na prática mesmo definida a educação do aborto terapêutico há que vencer, em alguns casos, a intransigência sectária que insurge contra a noção rigorosamente científica. A feição religiosa do assunto intervém prejudicando a ação profissional, com o princípio da proibição eclesiástica ao processo de esvaziamento do útero. Começa a doutrina por interessar de modo geral, no que se refere ao momento em que a alma anima o embrião’.

A partir dessa doutrina foi criado o dogma da inviolabilidade da vida embrionária e ‘tão rigorosa é a opinião eclesiástica que nenhuma excessão se admite’. Ele prossegue: ‘não é possível reconhecer na autoridade canônica, competência em matéria de obstetrícia. Com o simples enunciado do decálogo não matarás resolvemos sectários a conduta do prático em qualquer emergência clínica. A doutrina é errônea e desumana. Há casos de manifesta incompatibilidade entre a mulher e o embrião e o estado de gravidez persistente acaba por sacrificar a vida da gestante e o médico, fiel às regras do decálogo assistirá, impassível, à morte da mãe e do embrião (...) O médico, que livre do sentimento ortodoxo, age cientificamente, interrompendo a prenhez, é mais humanitário do que se obedecesse à fórmula eclesiástica’.

É claro que a medicina evoluiu e as doenças que eram incuráveis no tempo de Fernando Magalhães, hoje, têm cura. Em relação às limitações do aborto, a primeira delas é a questão da morte da mãe, além das previstas em lei, como o estupro. A assistência obstétrica, em caso de aborto na adolescência, prestada pelos hospitais privados é muito pequena. Já os hospitais públicos — do Sistema Único de Sáude (SUS) — atendem 98% desses casos, que acomentem meninas de baixa renda, que não têm assistência privada.

Para esconder a gravidez da família e da sociedade, essas meninas tentam quaisquer métodos abortivos. Introduzem um talo de mamona ou um comprimido de permanganato na vagina, porque vai sangrar e muitas pensam que isso é sinal de menstruação, o que não é verdade. E se forem parar no hospital, já foram orientadas a dizer que caíram da escada, por exemplo, caso contrário, serão maltratadas. À medida que se aumenta a morbidade e a mortalidade e que não há um processo educativo nas escolas, passa a ser, sem dúvida, questão de saúde pública. As mulheres de maior poder aquisitivo saem dessa estatística porque procuram serviços de maior qualidade, embora clandestinos também.

Nos países onde o abortamento é legalizado, como Cuba, o tratamento é humanizado. A mulher passa por um assistente social, um psicólogo, com quem ela conversa, para que o problema não se torne um fardo pesado e eterno.

Hoje em dia, os pais pensam controlar seus filhos virtualmente, através do celular. Não há mais diálogo, troca de valores. As meninas de quatro anos usam roupa apertadinha; com sete dançam funk, que é um resumo do kama sutra; e com 11 já estão bastante erotizadas. Durante esse processo, a família não reflete sobre essa erotização precoce e acredita que orientações sobre sexualidade devam ser oferecidas pela escola. A instituição alega, por vezes, que não discute esse tipo de questão para não incentivar os alunos. Aí fica um buraco. A escola não fala, a família não fala, mas os jovens praticam. Com que orientação?

Na cidade do Rio de Janeiro, a maior incidência de aborto, entre adolescentes, se dá na faixa etária dos que freqüentam o ensino fundamental, que é uma etapa escolar de responsabilidade do município.

O Ministério da Educação está com um curso para professores do ensino fundamental para tratar de assuntos como gravidez na adolescência e diversidade sexual. Entretanto, a resistência é muito grande, inclusive por parte das secretarias de Educação. Só vai haver uma atuação efetiva na questão do comportamento quando houver uma mudança no conceito das pessoas."

*Fernando Magalhães – Reitor da Universidade do Brasil (UFRJ). Catedrático de obstetrícia e diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ. Diretor da Maternidade do Rio de Janeiro (Maternidade Escola) e ministro da Educação.