• Edição 243
  • 31 de março de 2009

Ponto de Vista

“Autorretrato” vence concurso promovido pelo FCC

Lorena Ferraz


“O Hospício Pedro II é um autorretrato da sagrada união entre a Igreja e o Governo em prol dos necessitados do Brasil”. A partir desse fragmento podemos inferir uma importante questão abordada em “Autorretrato”: a dicotomia religião/Ciência. O conto tem autoria de Alexandre Schreiner, psiquiatra do Instituto Municipal Philippe Pinel e da Divisão de Saúde do Trabalhador da UFRJ. Schreiner foi o primeiro colocado no concurso literário realizado pelo Fórum de Ciência e Cultura – FCC.

A proposta do concurso, lançado no segundo semestre de 2008, era a produção de textos inspirados na história do Palácio Universitário. Além de Schreiner, foram premiados Diana de Hollanda, escritora e diretora teatral, com o texto "Não saber da morte", e Henrique Marques Samyn, pelo trabalho "O escritor e o pianista", segundo e terceiro lugares, respectivamente. Os vencedores serão premiados nesta terça-feira, dia 31 de março, em cerimônia conduzida por Aloísio Teixeira, reitor da UFRJ, Beatriz Resende, coordenadora do Fórum, e por representantes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel).

Em entrevista ao Olhar Virtual, o vencedor comenta alguns aspectos abordados em “Autorretrato” e expõe sua opinião sobre o embate entre a Igreja e a Ciência. Confira.

Olhar Virtual: O que o motivou a participar do concurso?

Há bastante tempo venho cultivando a vontade de escrever em prosa. Nesse sentido, um concurso literário era boa oportunidade para exercitar minha escrita. Por ser um psiquiatra, fiquei bastante interessado com o tema do concurso.

Olhar Virtual: O fato de o Palácio Universitário ter sido um hospício o influenciou a concorrer ao prêmio?

Sim. Existe todo um simbolismo por trás da história desse prédio. A fundação do hospício tem a ver com a questão da reestruturação da monarquia no Brasil. Tanto é que o decreto de fundação do manicômio aconteceu no mesmo dia em que D. Pedro II era coroado Imperador do Brasil.

Para além disso, o prédio representa um marco na história da psiquiatria brasileira. Sua construção se baseou na ideia de modernização, suas características arquitetônicas, assim como suas dimensões seguiram um padrão determinado pela ciência europeia.

Olhar Virtual: “Autorretrato” é uma obra de ficção? O Doutor das Neves existiu?

Acredito que ao escrever as pessoas de alguma forma vão beber na fonte de suas experiências. O Doutor das Neves não é baseado em uma pessoa específica, mas uma mistura de várias pessoas com as quais me deparei ao longo da minha vida profissional. A criação desse personagem está relacionada com a questão do exercício do poder e com a forma como um profissional incorpora certo saber e passa a exercer esse saber sobre o outro.

O Doutor das Neves é uma espécie de antítese do Dr. Simão Bacamarte, personagem do conto O Alienista, de Machado de Assis. Bacamarte queria colocar as pessoas dentro do hospício, pois ele constatava alterações mentais em toda a população de sua cidade. Já o Dr. Neves desejava retirar as pessoas do hospício. Segundo ele, o trabalho realizado ali era meramente filantrópico. Através da pesquisa histórica constatei que naquela época a perspectiva do hospício era muito mais filantrópica do que médico-científica.

Olhar Virtual: O Doutor das Neves, diretor do Hospício Pedro II e protagonista do conto, nutre uma enorme admiração por Esquirol. Qual foi o papel de Esquirol na história da Psiquiatria?

Como seguidor do pai da Psiquiatria moderna, Philippe Pinel, Esquirol sistematizou a figura do alienista dentro do manicômio. Para ele esse profissional deveria saber de tudo e de todos, sendo o responsável pela prescrição de remédios, de atividades e pela organização arquitetônica da instituição.

Olhar Virtual: O clímax do texto se dá quando o Doutor das Neves constata que o hospício funcionava como casa de caridade, alojando orfãos e pessoas pobres em vez de doentes mentais. Como era tratada a questão dos alienados no Brasil Império?

A exemplo do que vinha sendo feito nos países europeus, no século XIX o Brasil tentou prestar tratamento diferenciado aos considerados alienados mentais através da criação de instituições especiais para esse público. No entanto, os registros da época relatam a superlotação desses estabelecimentos e denúncias de maus-tratos aos pacientes.

Olhar Virtual: A Igreja representou um obstáculo aos estudos sobre as doenças mentais no país?

Durante a monarquia o hospício era eminentemente administrado pela Santa Casa e tinha um forte lado religioso. A psiquiatria só chegou aos hospícios de forma efetiva um pouco antes da República, entre 1889 e1890. Nessa época os padres e as freiras foram “expulsos” dessas instituições.

Olhar Virtual: Algumas religiões atuais se opõem às pesquisas com células-tronco, ao aborto, aos métodos contraceptivos. Para o senhor a religião representa uma ameaça ao desenvolvimento científico?

Questões desse tipo não estão vinculadas apenas à Igreja católica; outros cultos também têm suas proibições, como aqueles que são contra a transfusão de sangue. O que vemos é que ainda hoje há o embate entre a cultura de uma sociedade, vinculada à religiosidade, e a ciência, que tenta desenvolver um saber visando à promoção de saúde e prevenção de doenças.

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