• Edição 242
  • 24 de março de 2009

Ponto de Vista

O fim da meia-entrada?

Cinthia Pascueto

O projeto de lei n° 188/2007, de autoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que propõe restrições ao direito da meia-entrada, tem provocado debates acalorados e movimentos estudantis por aí afora. O projeto, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, a princípio barraria a meia-entrada em cinemas nos feriados e finais de semana; em outros eventos, como peças teatrais e shows, o privilégio seria permitido apenas de domingo à quinta-feira. Outra característica do documento é concentrar a emissão de carteirinhas nas mãos da União Nacional dos Estudantes — a UNE —, e não mais nas diversas entidades estudantis.

A proposta, que sofreu alterações, foi recentemente encaminhada para votação na Câmara dos Deputados. Com a mudança, passa-se a limitar a meia-entrada de idosos e estudantes do ensino básico e superior a 40% dos ingressos disponíveis nas bilheterias de cinemas, teatros, shows, eventos educativos, esportivos e de lazer.

A defesa apresentada pelo projeto e por simpatizantes é a de que, dessa forma, o custo total do ingresso seria reduzido, o que beneficiaria outras pessoas — incluindo os artistas e produtores culturais —, em vez de apenas estudantes e idosos. Já a centralização da emissão das carteirinhas estudantis na UNE é justificada como forma de evitar as crescentes falsificações.

Mediante esse quadro, o Olhar Virtual ouviu a opinião de Carol Barreto, estudante de jornalismo da Escola de Comunicação e representante do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFRJ, e Cristina Miranda, professora do Colégio de Aplicação (CAp/UFRJ), sobre o direito à meia-entrada.

Olhar Virtual: Como funcionaria na prática o projeto de lei que controla o direito à meia-entrada?

Carol Barreto: Essa lei sofreu várias modificações. Houve a proposta inicial, de controle durante o fim de semana, mas depois isso mudou, virando uma cota de meia-entrada para estudantes e idosos de 40% das bilheterias de todo evento cultural e esportivo, não importa qual o dia da semana.

Olhar Virtual: Quais seriam os motivos que levaram à sua elaboração?

Cristina Miranda: Na avaliação daqueles que lutam pelo direito à educação e à cultura, o projeto, a despeito de padronizar e regulamentar a emissão das carteiras estudantis, beneficia os empresários e mercantiliza a cultura.

O texto da justificativa do projeto é claro: “O volume das despesas imprescindíveis à realização de um determinado evento, tais como direitos autorais (10%), cachê artístico, aluguel do local do evento, salários, aluguel dos equipamentos de som, luz, palco, transporte aéreo e terrestre, entre outros, bem como a enorme carga tributária, quaisquer expectativas de recuperação do investimento ficaram comprometidas, diante da redução, pela metade, da receita principal.”

Os empresários argumentam que, com a falta de fiscalização das carteiras de estudante, o número de carteiras falsificadas cresceu muito e isso fez com que os estabelecimentos elevassem o preço dos ingressos.

A conclusão dos elaboradores do projeto é de que, por esse motivo, é preciso restringir o “benefício” a uma parcela do total de ingressos disponíveis. Além disso, consta no projeto original a possibilidade de ressarcimento desse “benefício” da meia-entrada aos produtores de espetáculos. Segundo a justificativa, seria importante “permitir aos empresários acesso aos recursos do Programa Nacional de Apoio à Cultura, como ressarcimento da perda de receita em conseqüência da concessão da meia-entrada”. Para os elaboradores, somente assim será “possível aos empresários das atividades de lazer e entretenimento ajustar o orçamento à receita real, fazendo com que voltem a investir, frente ao retorno da possibilidade de auferirem lucro”.

Olhar Virtual: Qual dificuldade esse projeto de lei, caso seja aprovado, traria para os estudantes?

Carol Barreto: Isso é um problema na medida em que qualquer show, atualmente, custa mais de 40 reais. Vinte reais para muita gente já é difícil; pagar o dobro torna-se inviável. O acesso à cultura já é complicado para muitos jovens, pelo preço que é. Se existem pessoas que não podem pagar nem meia-entrada, imaginem inteira! Este é um ataque à juventude que a gente acha importante combater.

Cristina Miranda: Diversos artistas têm se manifestado legitimamente em favor de uma nova regulamentação para as carteiras estudantis, a fim de acabar com o abuso que vem ocorrendo há tempos nas emissões de carteiras por qualquer “estabelecimento”. “Estabeleceu-se (...) uma indústria de carteiras estudantis no Brasil com entidades-fantasma sendo criadas com a única finalidade de vender o documento. Hoje, até empresas privadas que não possuem nenhuma ligação com os estudantes comercializam a tal carteira, induzindo uma enorme margem de fraude no processo de emissão do documento”, diz o Manifesto em Defesa da Regulamentação da Meia-Entrada, assinado por representantes de entidades estudantis e diversos empresários, produtores e artistas em agosto de 2006.

Olhar Virtual: Mas ao limitar a meia-entrada, o valor da inteira poderá diminuir...

Carol Barreto: A crítica que existe é que não há sequer um mecanismo de fiscalização para essa cota. Quem garante, senão o dono do próprio cinema ou da casa de espetáculos, que ele realmente está cedendo os 40%? Isso é muito falho.

Cristina Miranda: Para restringir a emissão indevida de carteiras estudantis, bastavam a regulamentação da emissão e a fiscalização; não é preciso restringir a meia-entrada a 40%.

Olhar Virtual: E a questão das carteirinhas?

Carol Barreto: Se a lei for aprovada, a confecção das carteirinhas será toda centralizada na Casa da Moeda e a distribuição será via UNE/UBES. Provavelmente a carteirinha também será paga, o que é outro problema. Também criticamos isso. É um debate que está sendo feito, estamos estudando as possibilidades.

Olhar Virtual: Qual a importância da meia-entrada?

Carol Barreto: A meia-entrada é fundamental, porque, em primeiro lugar, é um direito histórico, conseguido com muita luta. Na década de 1940 não existia a meia-entrada e os estudantes faziam a fila-boba. Entravam trinta na fila do cinema e perguntavam: “Tem meia-entrada? Tem meia-entrada?” E isso gerou um caos. Chamou a atenção da opinião pública e se conquistou a entrada pela metade do preço para estudantes. Então, esse é um direito muito importante no processo de construção da juventude brasileira. Não dá para abrir mão dele. O acesso à cultura é fundamental, sendo que já é muito restrito na nossa sociedade. A gente já faz um debate defendendo que todo mundo deveria ter acesso à cultura — que está cada vez mais mercantilizada e de difícil alcance. Se as pessoas dificultarem ainda mais o acesso de uma parcela dos estudantes, geralmente adultos, como eles terão essa oportunidade?

Cristina Miranda: O direito à meia-entrada foi estendido aos idosos em 2003 por meio do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro). Com o argumento de coibir as carteiras falsificadas, é retirado mais um direito conquistado, o direito do acesso à cultura.

Além disso, conforme lembrado na justificativa do projeto, a Constituição Federal “obriga o Poder Público a proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; a garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional; a assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização e à cultura; e, conseqüentemente, a suportar o respectivo ônus”.

A formação de um jovem não pode se dar apenas pela escola, mas também por meio do acesso à cultura, que é fundamental na formação de uma nação, sobretudo num país onde há uma profunda desigualdade social e, ainda, uma enorme carência de políticas públicas. A meia-entrada ganhou ainda maior relevância no contexto de crescente mercantilização das atividades culturais, como já denunciado pelos críticos frankfurtianos da Indústria Cultural. Com a meia-entrada, os estudantes podem selecionar aquelas atividades que julgam relevantes e que, pelos preços de mercado, jamais poderiam acessar.

Olhar Virtual: Você acredita que seja possível evitar a aprovação desse projeto? De que maneira?

Carol Barreto: É um tema que vai mobilizar muitas pessoas porque toca no individual, na questão econômica. Uma coisa é você não ter acesso a um direito e construir uma luta para ter, o que é mais difícil. Agora, você tem um direito e perde? Isso tem um impacto muito concreto para as pessoas no dia-a-dia, elas tendem a reagir. Acredito que sim, que vamos conseguir fazer grandes manifestações em breve. Além disso, o projeto foi aprovado no Senado, mas vai ainda para a Câmara dos Deputados. A nossa expectativa é tentar reverter isso na rua, fazendo manifestações. Vamos fazer uma série de atuações ao longo do ano em vários estados, como plenárias sobre a meia-entrada, que unem secundaristas e universitários. Nesta semana, inclusive, teremos uma no dia 24 de março, às 14h, no colégio Pedro II, em São Cristóvão. Vamos discutir os próximos passos da luta.

Olhar Virtual: Que tipo de discussão?

Carol Barreto: De conteúdo, todo mundo já está a par. Temos que discutir as ações que serão tomadas para barrar o ataque à meia-entrada.

Olhar Virtual: Que ações seriam essas?

Carol Barreto: Estamos pensando em várias coisas. Reproduzir a fila-boba, fazer ocupações culturais, manifestações de rua... Algumas idéias ainda estamos trabalhando. No dia 30 de março, por exemplo, vai acontecer uma manifestação geral, contra a crise econômica. Vamos fazer uma coluna dos estudantes, cuja reivindicação será a manutenção da meia-entrada.

Temos também um abaixo-assinado que está sendo feito por vários DCE’s em defesa do direito à meia-entrada. Várias turmas do ciclo básico da Escola de Comunicação assinaram contra a restrição e contra o monopólio das carteirinhas pela UNE, que é um retrocesso.

Olhar Virtual: Qual a importância de medidas como abaixo-assinados, manifestações etc.?

Cristina Miranda: As manifestações contrárias à restrição do direito à meia-entrada são legítimas e necessárias. O debate não pode ficar somente no âmbito do movimento estudantil. É preciso que a sociedade tenha conhecimento do tema e se posicione. Para isso, a mobilização é fundamental.

O movimento estudantil combativo prepara mobilizações tendo como motes a defesa da meia-entrada, mas também a luta contra os cortes de verbas para a educação pública. O governo federal já anunciou um corte de R$ 2 bilhões para as IFES e o governo Serra em SP também anunciou corte de verbas nas universidades estaduais paulistas.

O parco investimento do Estado em educação e cultura, a falta de políticas públicas e de assistência estudantil são temas centrais neste debate.

Olhar Virtual: Qual seria então o motivo principal da defesa pela meia-entrada?

Carol Barreto: Pelo acesso da juventude à cultura, sem restrições.