• Edição 239
  • 03 de março de 2009

Olho no Olho

Caso Battisti: polêmica entre Brasil e Itália

Júlia Faria

imagem olho no olho

A decisão do governo brasileiro em conceder refúgio político a Cesare Battisti, ex-militante da esquerda italiana, marca desde janeiro deste ano as relações diplomáticas entre Brasil e Itália. Battisti foi condenado à prisão perpétua em seu país de origem sob a acusação de ter cometido quatro assassinatos. O italiano, no entanto, nega a autoria dos crimes.

Cesare Battisti chegou ao Brasil em 2004. O italiano fugia então da França, país que lhe concedera refúgio, mas que no momento não mais lhe representava segurança contra as investidas italianas em busca de sua extradição. Em 2007, entretanto, foi detido durante uma operação envolvendo as polícias brasileira, italiana e francesa. Para não retornar à Itália, Battisti solicitou refúgio político às instâncias brasileiras, porém teve seu pedido negado em novembro de 2008 pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Como permite as leis nacionais, a defesa do italiano levou o caso ao Ministro da Justiça, Tarso Genro, cujo parecer foi favorável à concessão de status de refugiado político a Cesare Battisti. O caso passará ainda por julgamento do Supremo Tribunal Federal.

Para esclarecer a polêmica e elucidar possíveis desdobramentos do caso desfavoráveis à relação entre Brasil e Itália, o Olhar Virtual conversou com os professores Franklin Trein e José Ribas Vieira. Docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), Trein analisa o contexto histórico na Itália da década de 70, quando Cesare Battisti foi condenado, bem como as ideologias que marcam o país ainda hoje. Já Ribas, professor da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ), aponta os aspectos jurídicos que cercam a questão, além do conflito ideológico envolvido nela. Confira a seguir.

 

Franklin Trein
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ)

A questão do asilo político concedido a Cesare Battisti deve ser olhada sob uma perspectiva muito mais ampla do que esta pela qual a tem tratado a opinião pública, tanto no que concerne à imprensa quanto às instituições brasileiras e italianas. É preciso que se levem em consideração todos os fatos que envolvem o caso Battisti, bem como o momento histórico em que eles ocorreram. O período dos anos de 1970 representa uma situação excepcional na democracia italiana, então abalada por uma crise política provocada pela direita e extrema direita. Tal crise gerou na Itália um cenário de tensões sociais e políticas, criando ainda regras de exceção na área jurídica.

Além disso, ao que nos é permitido saber, os assassinatos que se imputam a Cesare Battisti não possuem testemunhas oculares ou provas conclusivas que o apontem como sendo efetivamente o autor direto ou indireto dos crimes. Na pior das hipóteses, o italiano teria envolvimento em apenas um desses casos. E, no entanto, Battisti está condenado à prisão perpétua na Itália.

É preciso notar, então, que há um princípio jurídico consagrado em nossa Constituição segundo o qual o Brasil não pode extraditar uma pessoa caso ela seja condenada em seu país de origem a uma pena superior àquela que se imputaria ao crime pelas leis brasileiras. Isso legitima, portanto, o ato do Ministro da Justiça em conceder o refúgio político a Battisti, uma vez que em nosso país a pena máxima de prisão está estipulada em 30 anos.

A meu ver, esse conflito está agora no campo jurídico, tendo sido levado a ele com o intuito de mascarar uma disputa que na verdade começou no âmbito político. Após a Segunda Guerra Mundial, a Itália teve uma trajetória política marcada principalmente pela presença de forças políticas conservadoras, reacionárias e de direita que não conseguiram dar estabilidade ao país, fazendo com que ele seja na Europa o mais instável política e socialmente. A direita levou a Itália ao desgaste do tecido social, a um empobrecimento e à queda no padrão de desenvolvimento quando comparado aos outros países que como ela assinaram o tratado de formação da União Européia. Ou seja, contraditoriamente, a Itália é rica, mas tem pobreza, o que leva ainda a reações violentas da sociedade italiana frente às pressões direitistas.

Dentro dessa problemática enfrentada internamente pela Itália, surge o primeiro-ministro do país, Silvio Berlusconi, que tem uma tarefa muito especial nos propósitos da direita. Berlusconi está ligado à imprensa, que é o quarto poder da democracia ocidental e talvez o que seja menos controlado. E essa ligação do primeiro-ministro o fortalece, uma vez que lhe permite se auto-sustentar e promover sua ideologia por meio da mídia que domina. Além de fazer jogo interno, afirmando que realizará justiça contra um suposto terrorista, Berlusconi fustiga a política brasileira, que hoje se diferencia completamente da italiana.

Ao longo dos anos, a direita italiana manteve estreitas ligações com o Brasil. Não apenas pelos processos migratórios que perpetuaram laços entre a Itália e nosso país, mas ainda por ser o Brasil considerado um dos países mais católicos do mundo, tornando-se, portanto, alvo da Igreja cristã instalada no Vaticano. Por meio da Igreja, as direitas italiana e brasileira consolidaram suas relações. Atualmente, estamos em um período pré-eleitoral e o Partido dos Trabalhadores (PT) que governa o país tem forte influência da Igreja. Porém, é também um partido de esquerda. Ou seja, o PT é formado por uma esquerda católica, o segmento mais odiado pela direita católica. Esta, por sua vez, é tolerante com as alas liberais e de centro-esquerda, mas tem a esquerda como ovelha negra. Tal animosidade política faz com que o PT e os demais elementos ligados a ele sejam vistos como grandes inimigos.

A tensão que está sendo criada decorre, portanto, do interesse de Berlusconi em interferir no público interno brasileiro, criando um desconforto que esconde, na verdade, um conflito ideológico. Há um processo de mudança do embaixador brasileiro em Roma, cargo que passará a ser do ex-ministro da Defesa, José Viegas; e eu creio que ele será extremamente hábil para conduzir toda essa questão, evitando que se forme uma verdadeira tempestade em copo d’água e impedindo um eixo entre as direitas brasileira e italiana com o propósito de fustigar o governo Lula.

Sinceramente não acredito que o caso Battisti venha a interferir nas relações bilaterais entre Brasil e Itália. Muito rapidamente este país deve se mostrar cansado da questão e até mesmo Berlusconi deve partir para outros temas. Ademais, o caso é irrelevante para influenciar as relações econômicas travadas entre os dois países, uma vez que as pessoas que mantêm tais laços são suficientemente amadurecidas para se deixarem levar por questões desta natureza. Caso similar ocorre com a comunidade italiana, que eu acredito que não vá modificar suas relações com o Brasil devido a esse episódio. Até mesmo porque certamente haverá espaço dentro da imprensa para que as autoridades brasileiras possam esclarecer suas decisões.

José Ribas Vieira
Professor associado da Faculdade de Nacional de Direito (FND/UFRJ)

A concessão do status de refugiado político está fundamentada na Lei nº 9.474/97, mais precisamente no seu artigo 1º, em que são admitidas três hipóteses para a concessão do refúgio político. São elas: fortes temores de perseguição, por exemplo, por opiniões políticas no país de origem; o indivíduo, não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira retornar pelos motivos da primeira hipótese; e por último, quando ele é obrigado a deixar seu país de origem devido à grave e generalizada violação de direitos humanos. Tal status distingue-se, porém, do de asilado político.

No parecer a respeito do recurso de Cesare Battisti à decisão do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), que em novembro de 2008 negou o pedido de refúgio político do italiano, o Ministro da Justiça Tarso Genro lembra o avanço da citada legislação brasileira ao efetivar o Estatuto do Refugiado previsto na Convenção de 1951. No mencionado parecer, o ministro não é feliz ao mesclar as concepções de refúgio e asilo políticos, ressaltando que é uma tradição brasileira estampada no referido dispositivo da Constituição Federal de 1988 a concessão de asilo.

A diferenciação entre os institutos do refúgio e asilo político está bem nítida no Parecer da Procuradoria Geral da República, de 26 de janeiro de 2009, a respeito da solicitação do relator do processo de extradição de Cesare Battisti, ministro César Peluso, no sentido de que o Ministério Público Federal se manifestasse a respeito da concessão de status de refugiado. Na ocasião, o Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, na qualidade de Procurador-Geral da República, assim opinou sobre a distinção entre as categorias jurídicas de asilo e refúgio: as condições caracterizadoras do asilo são de natureza discricionária. Quanto ao refúgio, sublinhando o que já foi anteriormente apontado, traduz-se em parâmetros legais e fáticos determinados. O asilo apresenta, essencialmente, um contexto político e é “uma perseguição em si”. O refúgio está no universo do temor de perseguição dentro das hipóteses já elencadas anteriormente.

O mencionado parecer do Chefe do Ministério Público Federal observa com precisão para reconhecer a extinção do pedido de extradição devido ao artigo 33 da Lei nº 9.474/94. Havendo a concessão do status de refugiado, encontramo-nos diante de questões fáticas, que se sujeitam a interpretações. O Ministro Tarso Genro, ao acatar o pedido de reconsideração da negativa de refugiado a favor de Cesare Battisti, apontou duas condições essenciais. Mesmo havendo estado constitucional na Itália, o recorrente foi julgado dentro de padrões de leis de exceção e, além disso, o processo judicial transcorrido naquele país sempre recorreu que a motivação dos crimes praticados por Cesare Battisti era “para reversão da ordem social e política constituída”.

Fica patente entre nós certo caráter de subjetividade na definição dos crimes políticos. A extradição a ser concedida pelo STF, e a ordem jurídica brasileira é bastante clara nesta orientação, não pode ser instrumento, por exemplo, de ser apenado por punições não previstas no sistema constitucional brasileiro. Há de garantir-se a integridade do extraditado no cumprimento de pena no seu país. É importante nesse momento lembrarmos que as duas sociedades passaram nos anos 70 do século passado pelos “anos de chumbo”. No Brasil, a luta era bastante cristalina nas forças em conflito no tocante a um poder político não legítimo. Na Itália, havia ainda a presença de segmentos históricos do fascismo italiano e da própria máfia. É nesse contexto complexo que deve ser compreendida a postura de Cesare Battisti.

É importante sublinhar ainda que a Itália está hoje mais capaz de exercer um papel de generosidade do que o Brasil, pois a sociedade italiana apurou os crimes cometidos no período dos anos de chumbo. Em nosso país, a denominada justiça transicional precisa ser completada com a apuração e o julgamento dos crimes praticados pelos agentes do estado pós-64, como seqüestro e tortura. Hoje, devido à atuação do Brasil na libertação dos reféns das Farc na Colômbia, nós somos reconhecidos como agentes de “reconciliação”. E a Itália? Frise-se que, na Alemanha, recentemente, devido ao cumprimento de penas de 30 anos, integrantes do grupo armado Baden Meinhof, dos anos chumbo daquele país, foram soltos. A Chanceler Ângela Merkel teve uma atitude que Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano, não tem – postura de imparcialidade e de cumprimento da lei.

O governo Berlusconi atua para transformar o caso em conflito diplomático. Não obtendo sucesso junto às autoridades da União Européia em Bruxelas, um partido nacionalista ligado ao citado governo italiano conseguiu aprovar uma moção de críticas ao Estado brasileiro no parlamento europeu. O caso da morte assistida na Itália, por exemplo, mostra o nível intelectual e político de Silvio Berlusconi. Não acredito, no entanto, que o refúgio concedido a Cesare Battisti possa prejudicar a imagem do Brasil frente à comunidade italiana, que está consciente da complexidade do caso.

No caso Battisti, estamos diante de questões fáticas sujeitas a um processo interpretativo conflituoso dependendo do ângulo de leitura. Entretanto, o que deve prevalecer é a tendência do Estado brasileiro na ordem internacional, sendo favorável ao apaziguamento de forças em conflitos em outras sociedades.